Mário Scheffer e Ligia Bahia: Decisão do STJ a favor do rol taxativo da ANS é prova cristalina da força do lobby dos planos de saúde
Tempo de leitura: 4 minDECISÃO DO STJ GERA MAIS CONFUSÃO NA SAÚDE E LEVA DISPUTA ENTRE PLANOS E PACIENTES PARA UM TERRENO PERIGOSO
Por Mário Scheffer e Ligia Bahia, Blog Politica&Saude, Estadão
Em decisão ambígua, o STJ afirmou, por um placar de 6 votos a 3, que a lista de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) deve ser seguida à risca, mas serão admitidas exceções em julgamentos caso a caso.
As situações sobre coberturas assistenciais negadas pelos planos de saúde, que congestionam tribunais país afora, têm duas características: 1) foram avaliadas previamente pelas operadoras como indevidas; 2) foram recomendadas formalmente por profissionais de saúde.
Ou seja, tudo ficará mais ou menos como antes.
O plano nega e o Judiciário analisa a necessidade de acesso e uso de ações de saúde, auscultando os responsáveis diretos pelo atendimento dos pacientes.
A imprecisão da sentença do STJ não passaria de uma peça burocrática sem uso, não fosse o julgamento ter chamado para a briga entidades que representam pessoas com deficiências e doenças crônicas.
A gana das operadoras, ANS e Ministério da Saúde pelo “rol taxativo” tem como objetivo restringir terapias para crianças com transtorno do espectro do autismo, síndrome de Down e outras condições exigentes de cuidados frequentes e intensivos.
Diante de uma sociedade que avança aos tropeções para reconhecer direitos e acolher a diversidade, empresas privadas, inacreditavelmente apoiadas por instituições públicas, não vacilaram, puxaram a marcha da civilidade para trás.
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Famílias e indivíduos, já às voltas com dificuldades extremas, foram tachadas como transtorno. Por existirem, prejudicariam o equilíbrio financeiro de empresas situadas entre aquelas que possuem indicadores de desempenho econômico excepcionalmente elevados.
Repudiaram as crianças “gastadoras”, sob a alegação de uma “injustiça” relativa a preços.
Quem consome mais não pode pagar o mesmo que os “saudáveis”, foi esse o brado retumbante do STJ.
A divisão entre ricos e pobres, doentes e sãos, retrocede séculos, para um período em que não existiam mutualidades nem associações baseadas nas contribuições de todos para socorrer aqueles que precisam.
Sem os seguros, a pergunta sobre o valor adequado para atividades de saúde tem uma resposta unívoca: será o preço cobrado por quem atendeu.
O Brasil ainda conserva resquícios desse passado. Mas, com impostos e planos de pré-pagamento, não se pode mais mencionar preços e gastos sem associá-los à quantidade de uso.
Entre os inúmeros clientes de uma empresa de planos de saúde, uma parcela não consome, outra faz uso frequente de procedimentos de baixo valor de remuneração, e um terceiro grupo utiliza muitos serviços caros.
Portanto, o preço, necessariamente, é calibrado pela relação entre doentes e não doentes.
Esse “desconto”, possibilitado pela coletivização do risco, é repassado para os preços pagos pelas operadoras a médicos, profissionais, laboratórios e hospitais. É por isso que valores de atendimentos particulares são maiores do que os pagos pelos denominados convênios.
Entre os arrazoados do STJ a favor e contra a “taxatividade”, ficou implícita a possibilidade de um pagamento extra, para quem quiser escapar do rigor do racionamento das coberturas.
A ideia, extraída diretamente do senso comum do comércio de coisas, não resolve os problemas dos julgamentos nos tribunais que se deparam com necessidades de saúde de gente.
Os planos de saúde não são um produto homogêneo, há diferenças gritantes de preços e redes credenciadas.
Até aqui o rol foi considerado mínimo. Se o seu caráter taxativo valer agora para todos, pacientes com contratos “top” ou “premium” terão um decréscimo no padrão de acesso?
A decisão do STJ vai causar mais confusão e conflitos.
De cristalino mesmo, o que se tira do episódio, é a força do lobby dos planos de saúde.
O teor da tese vencedora não era desconhecido, votos já vinham sendo antecipados em eventos financiados pelas operadoras nos últimos anos, nos quais ministros do STJ, favoráveis ao rol taxativo, além de assíduos frequentadores, eram apresentados como estrela principal.
Até mesmo no tradicional Congresso Brasileiro de Magistratura, em sua última edição, em maio passado, em Salvador, uma associação de planos de saúde desfilou entre os patrocinadores.
A intimidade das empresas com bastidores do Judiciário chegou a fazer escândalos, como um encontro de juízes em resort na Praia do Forte, na Bahia, em 2009, bancado por planos de saúde; e o “Posto de Saúde Suplementar”, inaugurado em 2019 pela Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), dentro do Fórum João Mendes, na cidade de São Paulo, com o objetivo de influenciar decisões judiciais.
Outo método consistiu em aprovar enunciados pró-operadoras em jornadas do Direito à Saúde, promovidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Ocupados com as pautas do mercado, ministros do STJ ignoraram que o processo de avaliação de novas tecnologias para a saúde no Brasil desmoronou.
Nas decisões sobre o que entra ou não no rol dos planos ou na lista do SUS há hoje sobreposições, amadorismos e ingerências.
A Conitec, que pariu a cloroquina, tem composição para lá de suspeita.
A Cosaúde, guardiã do rol da ANS, inclui sociedades médicas, associações de pacientes, mas também operadoras, ministérios, Procon, CUT, Força Sindical e outras entidades destituídas de expertise para decidir sobre saúde.
Uma agência reguladora capturada e magistrados que não compreendem o sistema de saúde brasileiro são aberrações até mesmo no momento de maior horror nacional.
Dois erros, definitivamente, não fazem um acerto.
Comentários
RiaJ Otim
corre o risco de na próxima semana esse rol só tenha uma doença: dedo quebrado
João de Paiva
TODAS as agências “reguladoras”, criadas com o neoliberalismo privatista e entreguistas do governo FHC, são dominadas por lobbies. Eu as chamo, por essa razão, de agÊncias lobbiladoras.
RiaJ Otim
o fato é que os pagam para que possam receber salários fabulosos não é pobre que não pode pagar nem uns R$ 200.000,00 por uma cirurgia
Zé Maria
Judiciário de Mercado.
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