Giuliana Alboneti: Inverno potencializa a exploração das mulheres, em especial as negras e pobres

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Por Giuliana Alboneti

Amor materno é o nome da escultura que fica no centro do chafariz do Jardim Botânico de Curitiba. Foto: @alfradiqueluuud

Por Giuliana Alboneti*

No centro de um chafariz, no jardim estilo francês do Jardim Botânico de Curitiba, a neblina densa emoldura junto com um canteiro repleto de flores a estátua de uma jovem mulher com um bebê no colo.

A desigualdade, que toda crise política potencializa sobre o corpo das mães, pode ser lida a partir deste registro fotográfico, Amor materno é o nome da escultura e o clique é do @alfradiqueluuud

Quem já sentiu na pele o frio do Sul do país sabe bem o tamanho do desafio que é enfrentar os longos dias gelados que o inverno nos dá sem falhar.

Independente disso, a morte já ronda a população vulnerabilizada, pois a ausência de direitos não depende das quatro estações. Porém, tudo fica pior nesta época do ano, notadamente atual conjuntura.

Via redes sociais, os pedidos desesperados por agasalhos e calçados para crianças se multiplicam.

Já temos uma pessoa em situação de rua encontrada morta na Praça Tiradentes, marco zero da capital paranaense, dias atrás.

O frio congelante entra pelas frestas dos barracos nas ocupações e nas favelas, e a caridade neoliberal encontra um campo vasto e fértil para semear seu assistencialismo oportunista e corrupto.

Não estou falando da boa fé de grupos da sociedade civil que se desdobram para preparar refeições diárias e servir ao povo faminto nas praças. Aliás, se não fossem essas pessoas, com certeza o caos seria ainda maior.

Estou falando de quem tem o poder de gestão, de gente com autoridade, que pode e deve organizar políticas e ações que efetivamente dêem conta dos impactos sociais causados pelas desigualdades sociais e potencializados pelo frio.

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Localizar e visibilizar as mulheres no meio desta neblina da ausência de direitos é urgente, especialmente as mães, as avós, as tias, todas aquelas que estão envolvidas em atividades de cuidados domésticos e com mais ênfase ainda as mulheres classe trabalhadora.

Aquelas que precisam esticar a mistura, o gás, os produtos de limpeza.

Aquelas que secam roupas sobre o fogão a lenha e atrás da geladeira. Que andam de bazar em bazar procurando mais uma jaqueta para os filhos, sobrinhos, netos.

Mulheres que têm cor, pretas. Não temos dados recentes sobre a porcentagem da população negra no país.

O censo de 2010 apontou que, em Curitiba, somos 19,7% da população.

O governo de morte, que paira sobre nós, inviabilizou o censo demográfico usando a pandemia como desculpa em 2020. Ano passado, 2021, a justificativa para suspender, mais uma vez, foi não ter previsão orçamentária.

Mulheres que trazem em seus rostos, braços e mãos a ancestralidade afrolatina.

Empobrecidas pelo sistema que segue devorando corpos, especialmente pretos. Elas não têm tempo de reclamar, precisam correr para fazer um bico na casa da comadre e na volta passar na padaria para pegar seis pães.

Na hora de buscar a criançada na escola, aproveitam para assuntar com as vizinhas se alguém sabe de taxa para fazer em alguma cozinha por aí.

Parêntese. Taxa é uma expressão típica do curitibanês (rsrsr).

Significa uma diária em bar, restaurante, em geral nos dias de mais movimento.

Os contratados não dão conta do serviço e o dono do comércio chama, então, gente pra trabalhar dez, doze horas direto por uma taxa, que aqui varia entre 70 e 120 reais.

Normalmente é cozinha pesada. Lavar, lavar, lavar até…Fechando o parêntese.

As mães pobres, não brancas, da base popular, precisam sobreviver sob a tensão de administrar a economia doméstica no sul do mundo.

Essas mulheres estão nuas, expostas, vulneráveis, por dentro e por fora, carregando em suas costas o peso normalizado das sucessivas crises do capital.

Importante destacar que todo percalço econômico gera resultados extraordinários para a classe dominante. Logo, tudo segue “perfeito”.

Por exemplo, a rotina da fábrica, com o deslocamento de trabalhadores num determinado horário de entrada e saída, só é possivel porque as mulheres estão nas suas casas fazendo parte imprescindível para o funcionamento de todo o sistema.

As mulheres estão nas fábricas, ocupando as piores funções e recebendo menos que os homens, pois no acumulado dos prejuízos a desigualdade de gênero também entra no cálculo da folha de pagamento.

No ápice das “crises”, com milhares de homens desempregados, elas se submetem a serviços precarizados, aceitando-os sem pestanejar, pois precisam garantir a comprinha do mês.

Sim, o dinheirinho suado é contado. Pagar a parcela do crediário para, a cada doze meses, comprar uma coisinha.

Ah, elas são mulheres simples, não têm vaidade. Nos classificados, quando se destacam e são indicadas, é corriqueiro elogiarem dizendo que são um pé de boi para o trabalho.

Podem até estudar um pouco além do esperado, fazer quem sabe até mestrado, mas nestas bandas não basta.

Por aqui, além do currículo e dos contatos, o corpo precisa combinar com a mobília do lugar.

Banhadas num embranquecimento estético até conseguem entrar na sala para servir o jantar. Mas quando o último par de talheres marca doze horas a volta para a cozinha está decretada.

É a lei. Aqui no Sul os obstáculos são históricos, sejam os sociais e os climáticos. Eles se somam num frio de séculos corroendo corpo e alma.

Volto para a estátua da mulher com o bebê no colo. Sim, uma obra de arte. Sim, uma bela paisagem e também retrato de uma constatação sofrida.

As mães, especialmente as negras pobres, estão literalmente assim, envoltas pela neblina da exploração, e as flores, aos montes pelos canteiros da cidade, enfeitando a vida de poucas e maquiando a subvida cruel da maioria.

*Giuliana Alboneti é advogada. Ajuda mulheres a fazerem valer seus direitos, refinando atitudes para alcançarem sucesso profissional e relaciomanentos de valor. É feminista

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Giuliana Alboneti

Advogada em Curitiba (PR) e feminista.


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