Marina Lacerda: O marxismo cultural entre Olavo de Carvalho e os militares

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Doutrinas importadas dos Estados Unidos e anticomunismo nos quarteis brasileiros. Quando eles se aproximam, o que há é uma conjunção de espíritos predispostos a se unirem. Fotos: Redes sociais

Marxismo Cultural: entre os militares e Olavo de Carvalho

Por Marina Basso Lacerda*, especial para o Viomundo

A Intentona Comunista de 1935 deu origem a uma celebração anticomunista sistemática nos meios militares [1]. A influência das Forças Armadas norte-americanas nas brasileiras, decorrente da 2ª Guerra Mundial, se acentuou com a posterior Guerra Fria, o que fez com que o anticomunismo fosse ainda mais cristalizado na corporação.

Com a emergência da Revolução Cubana em 1959, essa ideologia foi incrementada com a Teoria da Guerra Revolucionária, vinda da França, que visava a combater o marxismo-leninismo. A Teoria desenvolveu-se com a derrota francesa na Indochina em 1950 e com a revolução na Argélia em 1954 – o que significou a vitória de forças alinhadas a União Soviética.

Seu marco é livro Guerras Insurrecionais e Revolucionárias, de Gabriel Bonnet, publicado em 1958 no original e pela Biblioteca do Exército no Brasil em 1963, pouco antes do golpe efetivado em nome do combate à suposta ameaça comunista.

Há evidências de que a doutrina francesa permaneceu como ponto de referência no interior das Forças Armadas brasileiras: o Inquérito Policial Militar 709, que investigou o comunismo no Brasil, publicado em 1967, se dedicou à evolução da guerra revolucionária nos anos de 1960 no país.

Com a decretação, em 1968, do Ato Institucional nº 5, os militares deflagraram uma máquina de inteligência e de repressão usando essas táticas. Entendia-se que os inimigos precisavam ser derrotados no campo das ideias: daí a suspensão de direitos civis e a censura [2].

Em 1985 foi publicado o livro Brasil Nunca Mais, promovido por setores democráticos, revelando a extensão da repressão política e da tortura no Brasil.

Os militares, particularmente do Exército, mantendo a linha da Teoria da Guerra Revolucionária, decidiram contrapor a narrativa dos setores progressistas, iniciando o projeto Orvil (que significa “livro” ao contrário), para falar da sua versão dos acontecimentos, centrada na ideia de que o regime combateu o terrorismo comunista [3].

Naquele contexto, documentos do Centro de Informações do Exército [4], já de 1989, apontam os supostos perigos da nova esquerda e do processo revolucionário influenciado por Antônio Gramsci, que procuraria fazê-lo através da interferência na educação e na cultura.

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O então Presidente da República José Sarney vetou a publicação do Orvil. Como consequência do veto, o documento passou a circular clandestinamente nos quarteis e inspirou outras publicações. É o caso do Verdade Sufocada, de Carlos Alberto Brilhante Ustra – o primeiro a ser reconhecido pela Justiça como autor de atos de tortura. Na edição de 2007, Ustra incluiu trechos de Olavo de Carvalho. Ter Olavo como uma das referências é resultado de um processo.

Astrólogo, ex-líder de uma seita, propagador de valores anti-iluministas e contra a democracia [5], Olavo de Carvalho é pedra fundamental na formação paulatina da extrema direita no Brasil contemporâneo, desde que fundou em 1998 o blog Sapientiam Autem Non Vincit Malitia e que suas ideias foram expandidas principalmente pelo Orkut e pelo site Mídia sem Máscara [6].

Paralelo a isso, também desde os anos 1990, Olavo passou a dar palestras nos quartéis. Heloísa de Carvalho lembra de um aniversário do seu pai, naquela época, com a presença de muitos militares.

Em 1999, O Globo publicou artigo de Olavo de Carvalho chamado A História Oficial de 1964, que trata o que ocorreu em 31 de março daquele ano como revolução, e argumenta que suas práticas repressivas foram brandas e justificáveis – em síntese, a narrativa do Orvil.

Em 1999 – o mesmo ano do artigo n’O Globo – Olavo ganhou a Medalha do Pacificador. Participou de eventos para organizações militares desde 2001, integrou o projeto “História Oral do Exército Brasileiro na Revolução de 1964”, em 2002 – projeto que foi uma reação à primeira tentativa de revisão da interpretação da Lei da Anistia.

Com a eleição de Lula, o autointitulado filósofo começou a frequentar o Clube Militar, já falando sobre a hipotética conspiração entre O Foro de São Paulo e as narcoguerrilhas das FARCs [7].

A persistência da interferência de Olavo no ambiente militar é ilustrada pela dissertação de conclusão do curso de Especialista em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, apresentada pelo major Alexandre Treinta.

Intitulada “O globalismo e seu aparato ideológico: impactos na sociedade brasileira”, é dedicada a um padre, a um general e ao “professor Olavo de Carvalho”, “por terem arrancado o véu que obscurecia” as vistas do autor.

O trabalho analisa a relação do globalismo com o marxismo, “sobretudo o cultural”, “permitindo atestar que o ideário das doutrinas esquerdistas” catalisa um “processo de dominação mundial”.

O especialista em ciências militares faz mostrar que esse campo do saber, no Brasil, se destina ao combate ideológico contra a esquerda. Coloca relevo também em um dos pontos centrais do repertório de Olavo de Carvalho, que é a luta contra o “marxismo cultural”.

Conforme o resgate feito pelo pesquisador inglês John Richardson [8], essa é uma teoria conspiratória que foi cunhada por Michael Minnicino [9] e desenvolvida e popularizada pelo paleoconservador William Lind.

Richardson explica que o trabalho sobre o “marxismo cultural” é direcionado para explorar e explicar as origens históricas do politicamente correto e seus aparentes efeitos deletérios na cultura americana.

Antônio Gramsci seria o autor que estaria na origem desse problema: para a revolução comunista, a educação, a mídia e o campo da cultura deveriam estar impregnados pela visão marxista.

Segundo Richardson, a teoria do “marxismo cultural” rapidamente foi adotada por comentaristas e organizações de todo o espectro ideológico de direita – incluindo cristãos fundamentalistas e evangélicos, paleoconservadores e mesmo organizações racistas.

Olavo de Carvalho, que viveu nos EUA e que manteve vínculos com o Partido Republicano e outros setores da direita naquele país, foi uma das pessoas que adotou essa teoria. Em 1994, escreveu A nova era da revolução cultural: Frijof Capra e Antonio Gramsci, em que argumenta que existe uma hegemonia gramsciana capitaneada por intelectuais da esquerda e do PT.

Como mencionei anteriormente, pesquisas mostram que a preocupação com versões dessa guerra no campo da cultura já vigia entre os militares desde a adoção da Teoria da Guerra Revolucionária, e foi aguçada com o projeto Brasil Nunca Mais – inclusive com menção a Gramsci.

Olavo de Carvalho, por sua vez, bebia em fontes norte-americanas, adotando a concepção de que era necessário combater o “marxismo cultural”. Quando Olavo e os militares se aproximam, o que há é uma conjunção de espíritos pré-dispostos a se unirem.

E foi uma união duradoura e com muitos frutos, particularmente desde o momento em que os militares, em 2014, ungiram Bolsonaro – que já era um seguidor de Olavo  – como seu candidato [10]. Paulatinamente, essa união fez com o repertório comum a esses atores —  defesa da tortura e do autoritarismo contra a esquerda –, com o uso de estratégias no campo da opinião, saísse do campo do esdrúxulo e ganhasse a presidência da república.

Atritos vieram depois disso: em 2019 Olavo proferiu uma série de insultos contra os militares, e depois contra o próprio Bolsonaro; seus ministros perderam postos para o Centrão e em decorrência das pressões contra a má gestão da pandemia; Bolsonaro afrontou militares.

Mas essas tensões devem ser lidas como disputas por poder dentro de um mesmo campo político, campo político esse com raízes na sociedade e nas instituições, e que deve perdurar como força relevante independentemente do resultado das eleições de 2022.

*Marina Basso Lacerda é doutora em ciência política, autora do livro O Novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro

Notas

[1] Piero LEIRNER, Brasil no espectro de uma guerra híbrida: Militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica (São Paulo: Alameda Editorial, 2020).

[2]  João Roberto MARTINS FILHO, “A influência doutrinária francesa sobre os militares brasileiros nos anos de 1960,” Revista Brasileira de Ciências Sociais  (2008); Eduardo COSTA PINTO, “Bolsonaro, quartéis e marxismo cultural: a loucura como método,” in Os Militares e a Crise Brasileira, ed. João Roberto MARTINS FILHO (São Paulo: Alameda Editorial, 2021).

[3] Lucas FIGUEIREDO, Olho por olho – Os livros secretos da ditadura (Record, 2009). Marcelo GODOY, “O general Leônidas está de novo no caminho de Bolsonaro,” Estadão (2019). https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-general-leonidas-esta-de-novo-no-caminho-de-bolsonaro,70002948976.

[4] Lucas PEDRETTI, “Os ecos do Orvil em 2021, o livro secreto da ditadura,” A Pública (2021). https://apublica.org/2021/08/os-ecos-do-orvil-em-2021-o-livro-secreto-da-ditadura/.

[5] Heloisa CARVALHO and Henry BUGALHO, Meu pai, o guru do Presidente (Curitiba: Kotter Editorial, 2020); Benjamin R. TEITELBAUM, Guerra pela Eternidade – o retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista, trans. Cynthia Costa (Editora Unicamp, 2020).

[6] Camila ROCHA, Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil (São Paulo: Todavia, 2021).

[7] LEIRNER, Piero. Brasil No Espectro De Uma Guerra Híbrida: Militares, Operações Psicológicas E Política Em Uma Perspectiva Etnográfica. São Paulo: Alameda Editorial, 2020.

[8] John E.  RICHARDSON, “‘Cultural Marxism’ and the British National Party,” in Cultures of Post-War British Fascism, ed. John E.  RICHARDSON and Nigel  COPSEY (London and New York: Routledge, 2015).

[9] Michael MINNICINO, ‘The New Dark Age: The Frankfurt School and “Political Correctness”’, Fidelio, Winter 1992. Available at: www.schillerinstitute.org/fid_ 91-96/921_frankfurt.html [Accessed 5 Jul. 2013].

[10] LEIRNER, Piero. Brasil No Espectro De Uma Guerra Híbrida: Militares, Operações Psicológicas E Política Em Uma Perspectiva Etnográfica. São Paulo: Alameda Editorial, 2020.

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Arnon Paiva

É uma boa carreira.

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