Farmacêuticos avisam: Tem remédio eficaz contra propaganda enganosa de medicamentos
Tempo de leitura: 5 minPara Propaganda Falsa tem Remédio
Por Debora Melecchi, Maria Eugênia Carvalhaes Cury, Maria Eufrásia de Oliveira Lima, Ronald Ferreira dos Santos e Alice Portugal
A recente manifestação de membros da CPI da Covid sobre possível pedido de indiciamento do presidente da República por curandeirismo e charlatanismo devido à sua reiterada defesa do uso de remédios comprovadamente ineficazes para tratar a doença reacende o debate sobre a propaganda de medicamentos no Brasil.
Aliás, o depoimento de Jailson Batista, diretor da farmacêutica Vitamedic, à CPI na quarta-feira passada, 11/08, só fortalece a necessidade de se ampliar essa discussão junto à sociedade.
A Vitamedic é uma das principais produtoras de ivermectina no Brasil.
Jailson admitiu que a empresa patrocinou a publicação de um informe publicitário da associação Médicos pela Vida, defendendo o tratamento precoce, conhecido como “kit covid”, que incluía o antiparasitário ivermectina, que é ineficaz contra a covid019.
Vitamedic pagou R$ 717 mil por essa propaganda veiculada em jornais de grande circulação no País.
Em plena crise sanitária, social e econômica, nos vemos diante de um projeto político nacional que atua intencionalmente contra as vidas.
O incentivo ao uso incorreto de medicamentos contra a covid-19 se traduziu em: aumento da produção de cloroquina; nota do Ministério da Saúde orientando o seu uso; propaganda por parte do presidente da República; e ausência de campanhas esclarecedoras sobre os riscos da automedicação.
Embora a propaganda de medicamentos no Brasil seja lícita, é uma atividade sujeita a regras específicas, conforme previsto na Constituição Federal em seu art. 220 – parágrafo 4º.
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Afinal, os medicamentos não são bens de consumo comuns, mas, sim, bens de saúde, fundamentais para o tratamento de doenças e prevenção de agravos, como as vacinas.
O Estado brasileiro, ao regular a propaganda de medicamentos, exerce a sua função de mediador de assimetrias de informação e de interesses entre a indústria farmacêutica e os consumidores.
O direito à liberdade e à livre iniciativa da indústria de divulgar informações sobre os seus produtos não pode estar acima da garantia à população do seu direito à saúde, expresso na redução de riscos no uso inadequado de medicamentos.
A obra “Vendendo Saúde: A História da Propaganda de Medicamentos no Brasil”, de Eduardo Bueno e Paula Taitelbaum, editada pela Anvisa em 2008, traz uma importante análise sobre o direito à saúde expresso no contexto de Estado social em que se enquadra a Constituição de 1988, onde é possível perceber que a saúde está vinculada a vários outros temas e, por isto, transcende ao expresso na seção da saúde da Constituição (no artigo 196).
Assim, para interpretar a proteção à saúde é necessário atentar para todo o contexto constitucional.
Essa análise nos leva à reflexão de que o direito à “dignidade da pessoa humana”, expresso no artigo primeiro da Constituição Federal, tem primazia e orienta os demais valores sociais do trabalho, da livre iniciativa, dos direitos individuais e da ordem econômica.
Por isso, o que temos acompanhado em relação à propaganda de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19 atenta contra a saúde e à dignidade das pessoas.
Caracteriza-se como propaganda abusiva, na medida em que explora o medo em relação à pandemia e induz as pessoas a se comportarem de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde.
Também trata-se de propaganda enganosa, quando emite informação falsa e induz o consumidor ao erro de se achar protegido do vírus e abandonar os cuidados de proteção, expondo-se à infecção.
A constatação dos riscos relacionados ao uso inadequado de medicamentos pode ser observada pelos dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) que demonstram que os medicamentos ocupam o primeiro lugar entre os agentes causadores de intoxicações e o segundo nos registros de morte por intoxicação.
No ano de 2016 foram notificados 32.311 casos de intoxicação por medicamentos, correspondendo a 33,17% do total de todos os registros.
A luta pela promoção do Uso Racional de Medicamentos passa, também, pela atenção às práticas relacionadas à propaganda desses produtos.
A Resolução RDC/ ANVISA n°96/2008 define propaganda como o conjunto de técnicas utilizadas com objetivo de divulgar conhecimentos e/ou promover adesão a princípios, idéias ou teorias, visando exercer influência sobre o público através de ações que objetivem promover determinado medicamento com fins comerciais, exercendo impacto nas práticas terapêuticas e no comportamento das pessoas em relação ao uso.
Segundo a página do CEE-Fiocruz, em matéria publicada em agosto de 2017, a “Exposição a medicamentos sem eficácia comprovada, risco de submissão a tratamentos inadequados, suscetibilidade a efeitos colaterais e ao agravamento de quadros clínicos são possibilidades criadas pela preponderância do viés publicitário e mercadológico no cuidado com a saúde”.
A preocupação com os malefícios da propaganda de medicamentos no Brasil tem sido uma pauta central dos farmacêuticos e farmacêuticas por meio da atuação da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar).
Em 2005, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Federação Nacional de Farmacêuticos (Fenafar) e a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) fizeram uma parceria com o objetivo de reduzir os efeitos do mau uso de medicamentos.
Assim, iniciaram uma ação conjunta para coibir a propaganda de medicamentos, que resultou na realização de quatro seminários regionais e no Seminário Nacional Sobre Propaganda e Uso Racional de Medicamentos.
O seminário nacional aprofundou o debate sobre medidas para proibir a propaganda de medicamentos nos meios de comunicação e regular a divulgação de folhetos promocionais.
Também na formulação de um plano de ação nacional para a inserção do Uso Racional de Medicamentos nas práticas dos profissionais prescritores e dispensadores, e que ganhou materialidade em uma série de processos no setor público e privado que envolvem o uso de medicamentos.
Nesses processos, os papéis dos profissionais de saúde, gestores, prestadores de serviço e meios de comunicação são estratégicos para a promoção do uso racional de medicamentos ao cumprir o seu fazer, no atendimento às necessidades e bem estar das pessoas.
O SUS estabeleceu a Saúde como direito, e com o advento da Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), em 2004, o medicamento passou a ser um insumo garantidor desse direito.
Assim, mais do que responsabilizar criminalmente aqueles que buscam lucrar ou beneficiar-se politicamente de forma vil, inescrupulosa e negacionista da demanda por um “remédio” para a covid-19, a sociedade brasileira precisa reforçar os mecanismos que a protegem da tirania na política e da ganância do mercado, que desconsideram e desprezam as necessidades e bem estar das pessoas, a ciência e a vida, que passa pelo fortalecimento do SUS e a submissão dos setores complementares e suplementares, na sua regulação e planejamento, incluindo a farmácia, que a partir de 2014, passou à condição de uma unidade de prestação de serviços destinada a prestar assistência farmacêutica, assistência à saúde e orientação sanitária individual e coletiva.
Formulações acerca do uso racional de medicamentos estão sendo oferecidas à sociedade brasileira quase ao mesmo tempo das formulações das diretrizes assistenciais e gerenciais de como garantir o funcionamento do SUS, público, universal e integral.
É necessário reunir forças técnicas e políticas para que as diferentes atividades econômicas da saúde atendam de fato ao interesse público e não a manutenção ou ampliação de poderes e lucros.
E definitivamente não é apenas discurso, mas inúmeras iniciativas, se já implementadas, poderiam ter evitado as nefastas consequências ao povo brasileiro.
A CPI do Senado tem evidenciado essa questão que se traduz na necessidade de concretizar ações, tais como:
— desenvolvimento de campanhas de conscientização da população e ação conjunta dos gestores públicos para utilização dos seus órgãos de comunicação para a promoção do uso racional de medicamentos;
— estímulo à aproximação das categorias de prescritores e dispensadores;
— conduta médica, farmacêutica e da equipe de saúde baseada nos princípios da ética, da saúde e em evidências;
— ação do parlamento com projetos de lei que fortaleçam a Assistência Farmacêutica como direito;
— retomada de debates amplos sobre a propaganda de medicamentos, com a participação do controle social do SUS.
Fundamental seguirmos somando forças e amplitude para que se tenha garantida o direito dos cidadãos à assistência farmacêutica e o respeito ao uso racional de medicamentos como instrumento essencial no contrapondo à má publicidade de medicamentos e remédios e na defesa das vidas, da ciência e da democracia.
*Debora Raymundo Melecchi é farmacêutica, presidenta do Sindicato dos Farmacêuticos do Rio Grande do Sul, diretora da Federação Nacional dos Farmacêuticos e Conselheira Nacional de Saúde
*Maria Eugênia Carvalhaes Cury é farmacêutica, mestre em Educação pela Unicamp
* Maria Eufrásia de Oliveira Lima é tecnóloga de Administração em Recursos Humanos, assessora aindical na Federação Nacional dos Farmacêuticos
*Ronald Ferreira dos Santos é farmacêutico, mestre em Saúde Pública pela UFSC, presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos
*Alice Portugal é farmacêutica, deputada federal PCdoB-BA
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