Juliana Cardoso: Câmara de SP quer votar projeto de lei de abstinência sexual

Tempo de leitura: 4 min
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Por Juliana Cardoso

Juliana Cardoso: Proposta equivocada como política pública para enfrentar o problema da gravidez precoce. Fotos: Divulgação

“Câmara de SP quer votar projeto de lei de abstinência sexual”

Por Juliana Cardoso*

Depois da mobilização conjunta dos mandatos e movimentos sociais feministas, a Câmara Municipal adiou na quinta-feira (17) a votação do Projeto de Lei (PL) 813/2019 “Escolhi Esperar”.

Trata-se de um retrocesso na educação sexual com proposta equivocada de abstinência sexual como política pública para enfrentar o problema da gravidez precoce.

O vereador proponente é Rinaldi Digílio, recém-filiado ao PSL, um bolsonarista orgulhoso em suas redes sociais.

Como todo falso defensor da família, a sua visão e dos defensores da proposta é de que a sociedade está corrompida pelo feminismo, pelas pessoas LGBTQIA+ e o sexo banalizado.

Desta forma, crianças e adolescentes acabariam fazendo sexo porque são estimuladas.

Para eles, as políticas existentes sobre a sexualidade de adolescentes falham, uma vez que a gravidez precoce ainda ocorre no País.

Eles ignoram a realidade da violência sexual contra crianças e adolescentes. E repetem, sem parar que o projeto não é sobre violência sexual. Não é mesmo, mas deveria ser.

A moral e visão de mundo deles é muito peculiar.

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Se veem como salvadores de uma juventude “perdida” em baile funk, mas não estão preocupados com o fato de que a cada uma hora, quatros crianças (meninas e meninos) sejam abusadas sexualmente no Brasil.

E não se importam em saber que essa violência é uma das causas da gravidez precoce no País.

O abuso sexual e a pedofilia no Brasil são problemas gravíssimos.

Os esforços para sua mensuração e enfrentamento estão sempre aquém da realidade, camuflada e casos subnotificados. Ainda assim, há correlação entre os abusos e gravidez na adolescência.

De acordo com o Ministério da Saúde, das notificações de estupro praticados contra crianças e adolescentes, entre 2011 e 2016, 20% resultaram em um ou mais nascidos vivos.

Em quase 70% dos casos, o agressor era conhecido ou familiar da criança (entre 10 e 14 anos), enquanto entre adolescentes (15 a 19 anos) eram quase 40% dos casos.

Assim como ignoram dados da realidade, esses setores conservadores negam as evidências científicas sobre a eficácia da abstinência sexual como foco da educação sexual para adolescentes.

A Sociedade Brasileira de Pediatria corrobora a posição da Sociedade de Saúde e Medicina do Adolescente norte-americana sobre a necessidade de se adotar uma abordagem compreensiva da sexualidade adolescente.

Ela inclui respeito à diversidade cultural, sexual e de gênero, ao direito de receber informações seguras sobre sexo, sensibilidade de profissionais de saúde e educadores, oportunidades para o conhecimento de métodos de proteção à saúde e prevenção da gravidez.

No âmbito federal, existem três documentos que fornecem diretrizes para o cuidado da saúde sexual de adolescentes e jovens no Brasil – em nenhum a abstinência sexual é adotada como política – todos desconhecidos pelo proponente e pelos apoiadores do projeto.

Além disso, na cidade de São Paulo, dois programas da Secretaria Municipal de Saúde abordam a questão.

Mas lamentavelmente não é para aperfeiçoar a política, verificar sua eficácia ou efetividade que eles estão preocupados.

Quem se beneficiará com esta política?

O nome do projeto é uma alusão explícita a uma campanha de origem religiosa promovida por um casal de pastores que tem o propósito de “fortalecer aqueles que escolheram se preservar sexualmente até o casamento e disseminar os princípios eternos nas áreas afetiva e sexual”.

Apesar de negar qualquer relação com a campanha, nas duas audiências públicas realizadas para discutir o projeto, o vereador Digílio convidou para defendê-lo nada menos que um dos consultores científicos da campanha, o senhor Thiago de Melo Costa Pereira.

O projeto de lei prevê que Unidades Básicas de Saúde, escolas públicas ou privadas celebrem parcerias com organizações não governamentais e entidades afins para implementação dos seus objetivos.

No site da campanha, a informação é que atualmente 1.500 adolescentes são atendidos, mas a meta é chegar em 50.000!

Além de ferir a laicidade do Estado, garantida pelo artigo 19 da Constituição Federal o projeto, de forma ainda mais evidente, fere o artigo 37 que versa sobre a impessoalidade da Administração Pública, como precisamente apontam o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulheres (NUDEM) e o Núcleo Especializada da Infância e Juventude, ambos da Defensoria Pública de São Paulo, em Nota Técnica.

Além desta alusão mais do que explícita a uma campanha promovida por entidade de direito privado, o projeto foi protocolado na Câmara Municipal em 2019.

Foi o mesmo ano em que a ministra Damares propôs uma campanha nacional de promoção da abstinência sexual como forma de enfrentar a gravidez na adolescência e a transmissão de IST/HIV.

Para a ministra Damares, ensinar métodos contraceptivos “normaliza o sexo adolescente”, tendo em vista que nem todos iniciaram a vida sexual.

De acordo com nota técnica do Ministério da Damares, o sexo na adolescência leva a “comportamentos antissociais ou delinquentes” e “afastamento dos pais, escola e fé”.

Apesar desses fatos, o projeto deve contar com apoio da maioria dos vereadores.

A Câmara Municipal nesse momento reflete exatamente a aliança entre liberais e fundamentalistas que levou ao golpe da presidenta Dilma e a eleição de Bolsonaro.

Não é novidade que a direita tenha incorporado a disputa de pautas morais para atrair atenção de eleitores conservadores nos costumes.

Tampouco é recente o uso de moral e dogmas religiosos como diretriz para pautar políticas públicas ou negar direitos em nosso País.

Com aproximação das eleições e aumento da rejeição ao governo Bolsonaro, pela condução do País nessa pandemia, resta à ultradireita bolsonarista apostar todas as fichas nesse discurso difuso e confuso sobre defesa da família contra a desintegração do tecido social.

Com a morte de Bruno Covas, a cidade de São Paulo está nas mãos do ultraconservador, Ricardo Nunes.

À época das discussões do Plano Municipal de Educação, ele ocupava a tribuna para falar de “ideologia de gênero” e desintegração da família.

Não à toa o vereador Digilio manifestou com orgulho ter apoio da Casa Civil para sua proposição.

Mas a tramitação está mobilizando os movimentos feministas, organizações sindicais e partidos, que prometem repetir em frente à Câmara manifestação de 17 de junho contra o projeto.

* Juliana Cardoso é vereadora (PT), vice-presidente da Comissão de Saúde da Câmara Municipal de São Paulo e integrante da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança

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Juliana Cardoso

Deputada Federal (PT) eleita para o mandato 2023/2026.


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Zé Maria

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Quando a sexualidade era celebrada na Igreja

Por Frei Leonardo Boff

É ideia comum de que a moral católica no tocante à sexualidade é rigorista e até preconceituosa.
Isso se deve, em grande parte, à influência de Santo Agostinho que interpretava a transmissão do pecado original que macula toda a existência humana, através da relação sexual.
Todos os que nascem dessa relação são portadores desse pecado [segundo Agostinho].
Por causa desta interpretação que se tornou doutrina dominante, se estabeleceu uma relação negativa e até preconceituosa entre sexo e pecado.

Entretanto, nem sempre foi assim.
Dentro da mesma Igreja, há tradições e doutrinas que veem no prazer e na sexualidade uma manifestação da criação boa de Deus, uma centelha do Divino e uma participação na natureza mesma de Deus.
Esta linha se liga à tradição bíblica que vê com naturalidade e até com regozijo o amor entre um homem e uma mulher.
Com forte carga erótica, o livro do Cântico dos Cânticos (*) celebra o jogo do amor, a beleza dos corpos dos amantes, dos seios, dos lábios e dos beijos.
Curiosamente neste livro bíblico nunca aparece o nome de Deus.
Mesmo sem nomear Deus, este livro foi recolhido no Cânon dos livros tidos como inspirados.
Nem precisava referir-se a Deus, pois São João nos revela que a verdadeira natureza de Deus é amor (1 Jo 4,16).
Então Deus estava aí.

A base teológica para esta visão positiva radica na fé na encarnação do Filho de Deus.
Ele assumiu tudo o que é humano, portanto, também a sexualidade, a libido e o imaginário ligado a ela e o amor.
Daí dizer-se que não existe mais nada de profano em si.
Tudo foi tocado e transfigurado pela realidade divina, feita humana.
Pela encarnação, a sexualidade faz parte do Filho de Deus.
A sexualidade aqui não deve ser reduzida à genitalidade, mas significa todo o envolvimento afetivo e as trocas amorosas, com as características próprias do feminino e respectivamente do masculino.

Tal assunção trouxe à sexualidade humana uma dimensão sagrada.
Depois da encarnação de Deus, ela não pode mais constituir um tabu, um pesadelo ou um fator que transmite a desgraça do pecado original.
É uma dimensão privilegiada na qual o ser humano experimenta a força vulcânica do desejo, a ternura, o amor e o prazer.
Tudo isso pode fundar uma experiência prazerosa de Deus.
O próprio Deus se revela nas vidas dos seres humanos diferentes e desejantes.
Deste encontro nasce o maior fruto da cosmogênese que é a vida humana.

Para ilustrar esta tradição, cabe referir aqui uma manifestação que perdurou na Igreja romano-católica por mais de mil anos, conhecida pelo nome de “risus paschalis”, o “riso pascal”.
Ela significava a simbolização do prazer genital-sexual no espaço sagrado, na celebração da maior festa cristã, a da Páscoa.

Trata-se do seguinte fato, estudado com grande erudição por uma teóloga italiana Maria Caterina Jacobelli (‘Il risus paschalis e il fondamento teologico del piacere sessuale’, Brescia 2004): Para ressaltar a explosão de alegria da Páscoa em contraposição à tristeza da Quaresma, o sacerdote na missa da manhã de Páscoa devia suscitar o riso no povo.
E fazia-o por todos os meios, mas sobretudo recorrendo à simbólica sexual.
Contava piadas picantes, usava expressões eróticas e encenava gestos que insinuavam relações sexuais.
E o povo ria que ria. Traduzia destarte o caráter inocente e decente do riso pascal.
Esse costume é atestado por fontes históricas já em 852 em Reims na França e se estendeu por todo o Norte da Europa, pela Itália e pela Espanha, até 1911 perto de Frankfurt na Alemanha.
O celebrante assumia a cultura dos fiéis em sua forma popularesca e para nós, que perdemos a naturalidade do sexo, parece-nos até obscena.

O próprio teólogo Joseph Ratzinger, depois Papa, em um de seus escritos se refere, embora criticamente, ao ‘risus pascalis’ para expressar a vida nova inaugurada pela Ressurreição.
Afirmava ainda que somente a partir da crença na Ressurreição voltou verdadeiramente o sorriso na humanidade e não apenas o riso.
O sorriso desanuviado e livre, manifestado no “riso pascal” sexual expressaria a alegria que a ressurreição trouxe ao mundo.
Podemos discutir o método pouco adequado para suscitar tal riso.
Mas ele revela na Igreja uma outra postura, positiva e não condenatória da sexualidade.

Aventar tais fatos não significa querer escandalizar os fiéis ou questionar a doutrina da Igreja.
Mas ela nos obriga a relativizar a rigidez oficial face à sexualidade, acentuada de modo especial nos últimos Papas mas superada no documento do Papa Francisco ‘Amoris laetitia’ cujo título diz tudo: “a alegria do amor”.
No fundo se trata de devolver sentido e alegria à vida humana, chamada à mais vida e não só à renúncia e ao sacrifício.
E por que não expressá-la na linguagem da sexualidade criada e querida por Deus?

Há que se reconhecer que esta visão mais natural predomina na vida concreta dos cristãos.
Estes obedecem mais à lógica dos reclamos profundos da existência humana sexuada e perpassada pelo desejo do que às doutrinas frias da moral e da ética cristãs de cariz rigorista.

A alegria da vida que triunfa definitivamente pela ressurreição, encontrou no ‘risus pascalis’ uma expressão da sexualidade redimida, inocente, prazerosa e sagrada.
Por que não gaiamente recordá-la?

(http://www.dhnet.org.br/w3/henrique/espiritualidade/salomao/cantares.html)*

O Teólogo Leonardo Boff escreveu com Rose-Marie Muraro
“Feminino e Masculino: Uma Nova Consciência para o Encontro
das Diferenças” (Record 2003).

https://leonardoboff.org/2020/02/12/quando-a-sexualidade-era-celebrada-na-igreja/

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