Marina Lacerda: De Hitler a Bolsonaro, por que o líder fascista hipnotiza seus seguidores
Tempo de leitura: 4 minPor que o líder fascista hipnotiza seus seguidores
Libido, narcisismo e ódio em Freud e Adorno
Por Marina Basso Lacerda*, especial para o Viomundo
Alguns conceitos se aplicam àquele que elegeu e que sustenta Bolsonaro: neoconservadorismo, necropolítica, tradicionalismo, fascismo ou neofascismo, entre outros.
Todos em alguma medida se aproximam e se afastam desse fenômeno singular da política brasileira.
Bolsonaro se diferencia do fascismo histórico em alguns sentidos.
Em primeiro lugar, porque o fascismo surgido na Europa da primeira metade do século XX foi um projeto nacionalista, e o nacionalismo de Bolsonaro é, notoriamente, de fachada (além do que é difícil comparar o nacionalismo de países centrais com o de um país periférico).
Em segundo lugar, o fascismo floresceu quando vigiam, no mundo, diferentes formas de intervencionismo estatal na economia. O fascismo também propunha modelos de dirigismo e de proteção de parcela de seus cidadãos, os trabalhadores assalariados.
Já o Brasil de Bolsonaro é de um neoliberalismo agressivo, que não defende direitos para nenhum dos grupos de trabalhadores, nem daqueles das classes médias.
Mas Bolsonaro se aproxima, cada vez mais, do fascismo como prática.
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Pouca preocupação com questões políticas concretas e tangíveis, sem programa positivo algum; mobilização contra o princípio democrático; irracionalidade; agressividade; propensão à ação violenta; reacionarismo e regressão dos patamares civilizatórios; autoritarismo; propaganda com repetição contínua; e centralização no líder hipnotizador, autoritário, narcisista, afastado da ideia de amor e que sintetiza a figura de um certo homem comum.
Essa relação de atributos não fui eu quem fez.
É elencada por Theodor Adorno em artigo de 1951, no qual, a partir de Freud – sobretudo em Psicologia das massas e análise do eu, de 1921, – o membro da Escola de Frankfurt discute a psicanálise da adesão ao fascismo.
As semelhanças entre as características das massas hitleristas descritas por Adorno e as do bolsonarismo são gritantes, desnecessário pontuá-las para qualquer brasileiro.
Mas, mais do que delimitar as feições das massas fascistas, o que Adorno pretende entender, a partir de Freud, é como indivíduos, filhos da modernidade, do iluminismo, revertem a padrões de comportamento que contradizem seu nível racional.
Para isso, recomendo que leiam o artigo que está no link acima, traduzido para o português pela revista Margem Esquerda, da Boitempo. Mas aqui segue uma síntese, que eu faço simplesmente porque acho que o texto tem que ser divulgado.
A resposta, para Freud, é: o vínculo que integra os indivíduos às massas é libidinal; é uma experiência prazerosa se render ilimitadamente às paixões e ser assim absorvido no grupo, recuperando porções de sua herança primitiva.
O fascismo, diz Adorno, seria uma rebelião contra a civilização, reproduzindo o arcaico no seu interior.
O líder é quem desperta no sujeito seu arcaísmo, ao reanimar a ideia do todo-poderoso e ameaçador pai primitivo, onipotente e não controlado – na linguagem do Brasil do século XXI, a ideia de um “mito”.
O narcisismo individual é substituído, de acordo com o esquema teórico de Freud, pela identificação – hipnótica até – com a imagem do líder.
Para isso esse líder, de um lado, tem que aparecer como absolutamente narcisista e autoconfiante; ele não precisa amar mais ninguém a não ser a si mesmo.
É isso que explica, para os autores, a ausência de um programa positivo e de qualquer coisa que o líder possa “dar”: o líder só pode ser amado se ele próprio não amar.
De outro lado, o líder é a ampliação da própria personalidade do sujeito, “uma projeção coletiva de si mesmo”.
Ele precisa possuir, de forma particularmente marcada, as características típicas dos seguidores, só que com impressão de maior força e maior liberdade de libido.
Deve ser ao mesmo tempo um super-homem e uma pessoa comum, “da mesma maneira como Hitler se apresentou como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio”.
É o conceito do “grande homem comum”, alguém que sugere tanto onipotência quanto a ideia de que é apenas um de nós.
Por exemplo, alguém que sobreviva a uma facada mortífera e ao mesmo tempo use linguagem vulgar e coma pão com leite condensado no café da manhã.
E, assim, os sujeitos, como num rebanho, aceitam e gostam do autoritarismo do líder. Isso porque, ao se identificarem com o líder, elas assumem que eles próprios são o opressor cruel.
O líder fascista, diz Adorno, pode adivinhar os desejos e necessidades psicológicas dos que são suscetíveis à sua propaganda porque a eles se assemelha psicologicamente, capaz de expressar sem inibições o que neles está latente – por exemplo, e isso digo eu, uma misoginia desenfreada –, em vez de lançar mão de alguma superioridade intelectual ou moral – como a que possuem os professores ou defensores de direitos que eles querem tanto destruir.
Outro mecanismo agregador do fascismo é a lógica do inimigo, expressa na tendência de odiar minorias e diferentes. É a distinção entre o amado in-group e o rejeitado out-group.
Novamente Freud identifica uma função libidinal nesse dispositivo: já que a libido positiva está completamente investida na imagem do pai primitivo, e já que poucos conteúdos positivos estão disponíveis, um negativo deve ser encontrado.
O ódio age como uma força negativamente integradora. E o ganho narcisista nesse esquema é óbvio: ela sugere que o seguidor, simplesmente por pertencer ao grupo, é melhor do que aqueles que estão excluídos.
Enfim, no fascismo há uma apropriação, pelos opressores, dos vínculos que integram as massas, ou seja, das tendências narcísicas e arcaicas dos indivíduos. Mas, como pontua Adorno, o fascismo mobiliza a psicologia de massas como mandatário de interesses econômicos e políticos poderosos.
Ele é preciso: as disposições psicológicas não causam o fascismo; antes, o fascismo define uma área psicológica que pode ser explorada com sucesso pelas forças que o promovem por razões completamente não-psicológicas.
As semelhanças são muitas, inclusive na ativação de conteúdos primitivos em prol de elites econômicas, exatamente como ocorreu no Brasil.
Mas temos um agravante terrível. A repetição contínua, exigida pela propaganda fascista, é promovida hoje pelas mídias digitais, sobre as quais – sobretudo o WhatsApp – não há qualquer controle eficiente.
O livro Os engenheiros do caos, do italiano Giuliano Da Empoli, mostra que os algoritmos potencializam o engajamento a partir de mentiras, teorias da conspiração irracionais e de sentimentos negativos como ódio, medo e ressentimento.
O líder fascista é aquele capaz de expressar os conteúdos inconscientes e primitivos sem freios e, assim, criar uma identificação com os que compartilham, mais timidamente, das mesmas crenças.
Bolsonaro deseja e goza a morte alheia e despreza a vida – “apesar da vacina”, disse triste na terça-feira, 19-01.
Considerando o arcabouço de Freud, seus seguidores também assim sentiriam. Seria uma macabra “hipnose coletiva”, que até hoje não deu provas consistentes de arrefecer.
Mas, como diz Adorno, esse aumento “bem pode terminar numa súbita consciência da inverdade do feitiço e, por fim, em seu colapso”. Que assim seja e que não demore.
Marina Basso Lacerda, pesquisadora de Pós-Doutorado em Ciência Política na USP e autora do livro O Novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Zouk)
Comentários
Zé Maria
PSICOLOGIA DAS MULTIDÕES
Gustave Le Bon
Título Original: PSYCHOLOGIE DES FOULES
©Presses Universitaires de France, 1895
Tradução: Ivone Moura Delraux
©Edições Roger Delraux, 198O, para a língua portuguesa
Íntegra:
(https://filosoficabiblioteca.files.wordpress.com/2016/03/le-bon-gustave-psicologia-das-multidc3b5es.pdf)
Zé Maria
“De fato, a neutralização da religião parece ter conduzido apenas ao oposto
daquilo que o iluminista Freud antecipara: a divisão entre crentes e não-crentes
foi mantida e reificada.
De qualquer modo, tornou-se uma estrutura em si mesma, independente de
qualquer conteúdo ideacional, e é ainda mais obstinadamente defendida desde que perdeu sua convicção interna.
Ao mesmo tempo, o impacto mitigante da doutrina religiosa do amor desapareceu.
Essa é a essência do dispositivo “joio e trigo” empregada por todos os demagogos
fascistas.
Uma vez que não reconhecem nenhum critério espiritual com relação a
quem é escolhido e quem é rejeitado, eles o substituem por um critério
pseudonatural como o de raça, o qual parece ser inevitável e pode, portanto,
ser aplicado até mais impiedosamente do que o conceito de heresia durante
a Idade Média.”
Theodor W. Adorno
https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/25/adorno-a-psicanalise-da-adesao-ao-fascismo/
Zé Maria
“A linguagem política [do Fascismo], destina-se a fazer com que
a mentira soe como verdade e o crime se torne respeitável,
bem como a imprimir ao vento uma aparência de solidez”
George Orwell
“Aqueles que podem fazer você acreditar em absurdos
podem fazê-lo cometer atrocidades”
Voltaire
O Negativismo Militarista que Jair Bolsonaro
(junto com o General Mourão) representa
subverteu o Mote Positivista de Comte
(L’Amour pour principe et l’Ordre pour base;
le Progrès pour but)* e por conseguinte o
lema insculpido na Bandeira Nacional,
para o que se vê na realidade desde o início
de 2019: “O Ódio por princípio e a Desordem
por base; o Retrocesso por fim”.
Aliás, o Positivismo teve como adepto no Brasil
o republicano Benjamin Constant de Magalhães
que elaborou a Doutrina do “Soldado-Cidadão”,
segundo a qual, “antes de serem soldados, os
membros das Forças Armadas são cidadãos
de um regime republicano e, como tais, devem
se comportar”. O brasileiro Benjamin Constant,
apesar de ter chefiado a Pasta da Guerra, no
Governo Provisório da recém proclamada
República do Brasil, era um pacifista convicto,
chegando mesmo a sugerir a extinção das
Forças Armadas (**).
(*) “O amor por princípio e a ordem por base;
o progresso por fim”
(**) Não à toa, a despeito de ter sido militar
e condecorado como tal, devido à sua
participação na Guerra do Paraguai
– de onde escreveu suas cartas, escritas
sobretudo para a esposa e o sogro –
Benjamin Constant Botelho de Magalhães
criticou duramente a direção da Guerra,
em geral, e a Caxias [o Duque], em especial.
Essas cartas de Benjamin Constant
foram publicadas por Renato Lemos,
no livro “Cartas da Guerra: Benjamin
Constant na Campanha do Paraguai”,
editado pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
e o Museu Casa de Benjamin Constant
(https://pt.b-ok.com/book/5493738/c0a73c?dsource=recommend).
https://pt.wikipedia.org/wiki/Positivismo#O_positivismo_no_Brasil
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_e_Progresso
https://pt.wikipedia.org/wiki/Bandeira_do_Brasil#Lema
https://pt.wikipedia.org/wiki/Benjamin_Constant_(militar)#A%C3%A7%C3%A3o_no_governo_provis%C3%B3rio
https://www.bonslivrosparaler.com.br/livros/resenhas/psicologia-das-multidoes/5236
Zé Maria
Positivismo e ciência médica no Rio Grande do Sul: a Faculdade de Medicina de Porto Alegre*
Beatriz Teixeira Weber
Doutora em História Social do Trabalho,
Profª da Universidade Federal de Santa Maria
*Este texto é parte da tese de doutorado
apresentada na Unicamp em 1997
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59701999000100003
Zé Maria
Contraditoriamente, “foi em reação à ‘civilização’ (no sentido de reforço do papel civil, em oposição à atuação propriamente militar das FFAA) iniciada na gestão de Benjamin Constant, à frente da pasta da Guerra, que, a partir da Primeira Guerra Mundial, surgiu uma nova geração de oficiais militares e de intelectuais militares
que propôs a ‘profissionalização’ do Exército.
Essa geração era a dos ‘jovens turcos’ brasileiros e, procurando referências para suas doutrinas militares na Alemanha, constituiu o germe tanto do tenentismo quanto dos militares que chegaram, de uma maneira ou de outra, ao poder no Brasil a partir de 1930 até 1985.”
https://pt.wikipedia.org/wiki/Benjamin_Constant_(militar)#A%C3%A7%C3%A3o_no_governo_provis%C3%B3rio
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.
O Pêndulo Militar da Sociedade Brasileira
No momento em que Forças Armadas
ensaiam retorno à política, livro revê
participação do setor na história brasileira
Por Genira Chagas, na Edição 100 da UnespCiência
“A participação da classe nas questões nacionais é sistemática e tão antiga quanto a formação da República.
O embricamento entre militares e a política – à esquerda e à direita, no campo conservador ou progressista – começou a tomar vulto justamente a partir da criação do Clube Militar, em junho de 1887.
A ideia de uma organização para atuar em prol dos interesses da categoria, na ocasião formada por Exército e Marinha, se fortaleceu a partir do momento em que o imperador D. Pedro II proibiu que oficiais criticassem a monarquia.
Porta-voz das forças armadas, o clube teve como principais apoiadores os então tenente-coronel Benjamin Constant
e o general Deodoro da Fonseca. Militar de grande prestígio, este se tornaria o primeiro presidente da agremiação.
A partir do clube os oficiais atuaram na causa abolicionista e, posteriormente, na republicana, de modo a fortalecer os anseios civis.
Mesmo defensor da monarquia, o marechal Deodoro acabaria proclamando a República e sendo o primeiro Presidente do Brasil.
Benjamin Constant assumiu o cargo de ministro da Guerra.
Naquela conjuntura, caberia aos militares formular projetos para o desenvolvimento nacional, ações muito além do lema “Ordem e Progresso” criado por Constant e cunhado na bandeira.
Especialista em questões militares, Paulo Cunha, professor
da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Unesp, Câmpus de Marilia-SP, assinala que “os militares se apresentaram com o objetivo de serem atores nacionais, com variados graus de demandas, umas corporativas, outras de caráter político e ideológico”.
Cunha é um dos organizadores do livro ‘Militares e Política no Brasil’, lançado neste 2018 pela Expressão Popular.”
Íntegra da Resenha em: (http://unespciencia.com.br/2018/09/24/militares-100)
Zé Maria
Forças Armadas e Política:
a importância da origem social e do processo de
socialização militar na tomada de decisões políticas
https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/cfa21/denise_felipe_ribeiro.pdf
O exílio das esquerdas pré-1964,
a anistia e os “indesejáveis”
https://www.revistas.usp.br/ran/article/view/98971/134009
Denise Felipe Ribeiro (UFF)
https://www.escavador.com/sobre/7751783/denise-felipe-ribeiro
Jair de Souza
Estas explicações do fascismo, ou neofascismo, pelo lado psiquicoanalítico são interessantes. No entanto, acho que estas abordagens se desviam daquilo que eu considero o fundamental para o surgimento do fascismo (neofascismo) e seus líderes: a conjuntura econômica do momento e a composição do espectro das forças participantes das lutas de classes então vigentes. Sim, porque, se isto não for levado em conta, podemos ser induzidos a aceitar a ideia de que o fascismo (neofascismo) e seus líderes são frutos meramente da loucura ou psicose das massas. Hitler e o nazismo surgiram e cresceram na Alemanha não devido fundamentalmente às características psíquicas dele e as dos alemães em seu conjunto. Sem a conivência ativa do grande capital, que não conseguia encontrar outras formas menos drásticas para manter sua dominação, Hitler teria seguido até o fim da vida como o tiozão amalucado e divertido de sempre. O mesmo podemos dizer sobre nosso Hitler tupiniquim. A sua torpeza e imbecilidade teriam permanecido apenas como fatores anedóticos se as forças do capital financeiro e os meios de comunicação a ele associado não tivessem necessitado de seus serviços numa hora em que os métodos tradicionais de dominação já não davam conta do recado. Gostemos ou não, Hitler e o nazismo, assim como Bolsonaro e seu neofascismo nunca alcançariam projeções significativas se as forças do grande capital não lhes tivessem aberto as portas. Não é por outras razões que o fascismo (neofascismo) só costuma despontar em condições de crise aguda do capitalismo. Ou seja, é bom fazer análises de Hitler e Bolsonaro com base na psiquiatria, mas não podemos nunca nos esquecer de que o fundo do problema está baseado na luta de classes.
luis david saraiva grivol
Parabéns Jair, sua análise está perfeita.
Concordo plenamente.
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