Vacinas contra Covid: Sem o Programa Nacional de Imunização, Brasil não poderia produzí-las

Tempo de leitura: 16 min
José Gomes Temporão, Carla Domingues e Carlos Gadelha. Fotos: CEE/Fiocruz

Programa Nacional de Imunizações (PNI) e Covid-19: desafios a uma história de quase meio século de sucesso

Por Andréa Vilhena e Eliane Bardanachvili, blog do Centro de Estudos Estratégicos (CEE)/Fiocruz 

Nas últimas semanas, tem sido recorrente a menção ao Plano Nacional de Imunizações (PNI) brasileiro, nas falas de sanitaristas, gestores e jornalistas, entre outras vozes.

Embora tenha ganhado evidência a propósito da expectativa pela vacinação contra a Covid-19 no Brasil, o PNI vem de longe e, ao longo das décadas, alcançou reconhecimento mundial, por seus aspectos tecnológicos, logísticos e estratégicos.

É um dos maiores programas de vacinação do mundo, com 47 anos de expertise em vacinação em massa.

“O PNI é exemplo mundial de como se organiza o sistema de vacinação em uma população de mais de 200 milhões de pessoas e em um território do tamanho do Brasil. Tal conquista envolve uma complexidade logística, em termos de inovação social, tecnológica, e de política de saúde”, diz Carlos Gadelha, ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos para a Saúde do Ministério da Saúde (2011-2015) e coordenador e líder do grupo de pesquisa sobre desenvolvimento, complexo econômico industrial e inovação em saúde da Fiocruz.

Alguns números, que vêm sendo frequentemente veiculados na mídia, dão uma ideia dessa eficiência: o país vacina em um só dia 10 milhões de crianças contra a poliomielite, anualmente (em 1989, a doença foi erradicada); em 2010, por ocasião do enfrentamento do vírus H1N1, foram vacinadas 80 milhões de pessoas em três meses; um ano antes, em 2009, 40 milhões de adultos jovens se vacinaram contra rubéola e síndrome de rubéola congênita.

Outros dados podem ser acrescentados a esse panorama: em relação à vacina contra a febre amarela, por exemplo, o país, por meio da Fiocruz, além de atender a demanda de toda a sua população, exporta o imunizante; doenças como sarampo, tétano neonatal, formas graves da tuberculose, difteria, tétano acidental, coqueluche estão, hoje, controladas.

“No momento em que as vacinas contra a Covid-19 forem liberadas pela Anvisa, o Brasil tem todas as condições de fazer com brilhantismo a vacinação da população brasileira e atingir alto grau de cobertura”, afirma em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz o ex-ministro da Saúde e pesquisador do Centro, José Gomes Temporão.

Apoie o VIOMUNDO

José Gomes Temporão

Ele destaca a singularidade do PNI, assinalando os dois braços do programa.

“O Brasil desenvolveu, ao mesmo tempo, capacidade de produção tecnológica de vacinas e uma outra tecnologia tão importante quanto essa, que é a do desenvolvimento de estratégias de massa, de vacinação de grandes contingentes populacionais, com mobilização da sociedade”, observa.

“Esses processos caminharam juntos. E o resultado está nas estatísticas: o Brasil reduziu drasticamente a prevalência de doenças imunopreveníveis”.

A capacidade de atuação territorial do PNI, promovendo o acesso universal às vacinas desde as comunidades longínquas do interior do Amazonas e as pequenas cidades do Semiárido nordestino, até as favelas dos grandes centros urbanos, por meio da superação das desigualdades entre regiões e localidades no passado, chamou a atenção de outros gigantes, como lembra Gadelha, que participou do recém-lançado livro Vacinas e vacinação no Brasil: horizontes para os próximos 20 anos. “Nós éramos exemplo para a China, exemplo para União Soviética. A China não tem um sistema universal. Quando eu era secretário, vinham missões chinesas para tentar entender o nosso programa de vacinação e buscar fazer algo semelhante”.

Em sua estratégia de vacinação em massa, observa Gadelha, o PNI conquistou uma alta aceitabilidade e legitimidade da vacina pela população brasileira, como um bem público universal.

“A população brasileira acredita em vacina. Isso é uma conquista do PNI, que a gente nesse contexto global de questionamento da ciência não pode perder”.

Ao citar o sucesso das campanhas de vacinação, Gadelha ressalta que a vacina era associada à celebração da vida, da saúde e do seu acesso universal.

“Nós não podemos deixar acontecer agora o que nunca houve na história do PNI, fragmentar o acesso em favor de quem pode pagar a vacina. A marca do PNI desde seu nascimento foi a gratuidade e a garantia do acesso universal e equânime , se antecipando aos próprios princípios constitucionais do SUS”.

Foto: Peter Ilicciev/Fiocruz

Conforme assinala o ex-ministro Temporão, a conjuntura atual requer urgência.

“Temos urgência de atingir determinada cobertura vacinal, no prazo mais curto possível. O que está faltando? Não temos um discurso coerente, articulado, integrado, liderado por uma autoridade sanitária respeitada pela saúde pública brasileira. E isso é fundamental”, observa.

Um programa de quase meio século

O PNI nasceu em 1973, no bojo da exitosa Campanha de Vacinação contra a Varíola (CEV) e diante da constatação de que vacinar em massa tinha o poder de erradicar a doença. O programa, formalizado em agosto de 1976, pelo decreto nº 78.231, desde então, orientava-se pela proposta de buscar a inclusão social e assistir toda a população, sem qualquer distinção, em todos os recantos do país.

Como sublinha Gadelha, “o PNI antecipou elementos centrais do próprio Sistema Único de Saúde e esteve nos primórdios da própria concepção da saúde como um direito universal”, por isso, em sua opinião, é vital ser preservado e fortalecido no contexto atual.

Essa concepção da saúde foi sendo gestada ainda durante o governo militar, marcado pelo pensamento de um grupo de sanitaristas e de uma burocracia nacionalista, que considerava a vacina como um direito universal sem fazer a segmentação que havia no sistema de saúde entre trabalhadores que tinham carteira assinada e os que não tinham.

“Essa é uma marca do programa que a gente não pode esquecer. Talvez tenha sido a primeira iniciativa nacional de grande envergadura em que estava previsto o acesso universal”, explica Gadelha.

Carlos Gadelha

Ao ressaltar o fato de o PNI ter conseguido, mesmo antes do SUS, viabilizar a saúde como direito, Gadelha considera que o programa é um precursor do SUS.

“Posso dizer isso em termos de políticas públicas, ele deu um pouco a régua e o compasso do próprio SUS. E ao longo desses anos, mostrou que o acesso universal à saúde em um país com a dimensão do Brasil não é apenas um desejo, uma utopia, é viável assim como outros programas do SUS: de atenção básica, transplante, DST/Aids e de redução do tabagismo”.

Com o advento do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, o PNI consolidou as propostas que lhe confeririam sucesso. Embora as raízes do programa estejam lançadas no período pré-SUS é com o SUS que encontra a possibilidade de cumprir seus objetivos e metas, assinala o ex-ministro Temporão.

“Não teríamos sucesso em atingir grandes coberturas e obter drástica redução da prevalência das doenças imunopreveníveis sem a capilaridade do SUS, sem essa visão coletiva do sistema. Isso foi absolutamente central”, observa.

Ele se refere, entre outros aspectos à proposta de gestão do sistema de forma tripartite, isto é, dividindo-se responsabilidades entre municípios, estados e governo federal, uma gestão descentralizada sob a coordenação do Ministério da Saúde.

“Quando começamos a campanha da varíola – que levou anos para ser concluída – não se tinha o SUS, havia barreiras organizacionais, de mobilização, e não tínhamos a capacidade endógena de produção de vacinas, dependendo exclusivamente da importação”, relata.

“Tudo isso muda com o SUS. Fomos acumulando capacidade, conhecimento, fomos capacitando pessoas, plantas foram construídas. Uma tecnologia de comunicação, de mobilização, de capilarização dos pontos de vacinação, para levar a vacina do Oiapoque ao Chuí, como se dizia antigamente. Na Amazônia Legal, para a população ribeirinha que está a quatro cinco dias de Manaus, a vacina chega”, lembra.

Campanha de Erradicação da Varíola

O Brasil na produção das vacinas

Duas das mais promissoras vacinas contra a covid-19 estão sendo testadas e produzidas no Brasil.

Isso se dá graças à existência desse braço tecnológico, produtivo no PNI. Se não, estaríamos hoje dependendo cem por cento de importação de vacinas. Nós vamos produzir aqui praticamente a totalidade das vacinas que vamos usar no enfrentamento da covid-19, lembra Temporão.

A importância da ciência e tecnologia como um braço essencial de uma estratégia de acesso universal à saúde, como explica Carlos Gadelha, foi se evidenciando ao longo dos anos 80, a partir da crise de suprimento de imunobiológicos provocada pelo fechamento, em 1981, da Sintex do Brasil, empresa privada de capital estrangeiro que atendia à demanda de soros e da vacina tríplice bacteriana/DTP (difteria, tétano e coqueluche), entre outros produtos, porque não atendia aos novos requisitos regulatórios.

“A partir daí, foi ficando claro que o país sem capacidade produtiva e tecnológica não poderia garantir o acesso social e territorial, universal e equânime”.

Essa é uma característica que, segundo Gadelha, diferencia o Brasil frente a outros países menos desenvolvidos do mundo.

O ex-ministro Temporão recorda que, em 1985, foi concebido o Programa de Auto-Suficiência Nacional em Imunobiolgicos (Pasni), importante no momento em que haviam sido encerradas as atividades do único produtor, privado, de vacinas do país.

“Do dia para noite, o país ficou vulnerável em relação à capacidade de produção. A partir daí, houve uma política de investimentos em equipamentos, obras, capacitação de pessoal, enfim toda a infraestrutura, criando-se essa rede de laboratórios públicos, liderados pela Fiocruz e pelo Butantan, além de outros, como a Fundação Ezequiel Dias, o Instituto Vital Brasil, o TecPar [Instituto de Tecnologia] Paraná. A capacidade tecnológica veio por meio de transferência de tecnologia desses laboratórios públicos e empresas europeias e americanas, multinacionais detentoras de tecnologia. Isso vem se desenvolvendo ao longo das últimas décadas”.

Dos 300 milhões de doses que o PNI utiliza todos os anos, a grande maioria é fabricada no Brasil, destaca o ex-ministro.

“O PNI marca o compromisso da tecnologia, da ciência e da produção nacional com a própria população e nisso ele é inovador no mundo”, aponta Carlos Gadelha. “O Brasil é a única experiência latino-americana bem sucedida de internalizar uma base produtiva e tecnológica, e essa base produtiva e tecnológica nasce no guarda-chuva do Pasni, impulsionado pela visão que hoje sustenta o conceito do Complexo Industrial da Saúde, de que sem uma base nacional produtiva forte, não há acesso universal à saúde.

Com a crise de vacinas nos anos 80, Gadelha explica que foram convocados alguns laboratórios públicos, com a liderança da Fiocruz e do Butantan, para que dessem um suporte tecnológico e produtivo inclusive para o setor privado, como hoje a parceria com a AstraZeneca e com Oxford mostra ser tão relevante, ou seja, “o Brasil aprendeu a entrar nas tecnologias de nova geração. Não eram mais as antigas tecnologias de DTP, as tecnologias antigas do sarampo, da varíola ou seja havia um processo de modernização tecnológico”, diz.

Além da tecnologia social de promover a vacinação, o Brasil aprendeu a produzir vacina de última geração.

“É por isso que a gente está no jogo da vacina para Covid”, observa Gadelha. “Costumo dizer que a gente está no jogo porque a gente nunca saiu. O Brasil aprendeu a entrar em uma nova geração de vacinas tecnologicamente mais sofisticadas. Dois exemplos de que a Fiocruz avançou nessa fronteira tecnológica são a vacina Haemophilus influenzae (HIB) e a vacina para pneumococos. E em relação ao Butantan, a vacina para gripe e para HPV”.

Outra conquista do país foi aprender a fazer contrato e articulação com o setor privado.

“Isso é uma tecnologia de alta complexidade: gerenciar contratos de propriedade intelectual, de acesso ao mercado, de cronograma de transferência de tecnologias. São contratos que muitas vezes envolve 3 a 4 mil páginas”, aponta Gadelha.

De acordo com o pesquisador, esse aprendizado está sendo decisivo agora para a vacina contra a Covid-19.

“Nós aprendemos uma tecnologia hard de como fazer a vacina, mas também uma tecnologia mais soft de como fazer articulação com o setor produtivo global para transferir tecnologia para o Brasil, além de toda a tecnologia social para garantir a vacinação para a população brasileira”.

Importância do Complexo Industrial da Saúde

De acordo com Gadelha, a questão das vacinas durante a pandemia da Covid-19 ressalta a importância de se pensar a base produtiva e de inovação como um complexo econômico industrial.

“Não adianta apenas apostar numa bala mágica, num produto, numa tecnologia. Estamos lidando com o sistema produtivo e de inovação que tem que ser articulado”, explica.

Essa articulação envolve a base produtiva de vacinas, da matéria-prima, do insumo farmacêutico ativo, dos suprimentos de vacinas, de seringas e agulhas; a formação de profissionais tanto para o desenvolvimento de novas vacinas como aqueles qualificados para a administração das vacinas, que lidam, por exemplo, com eventuais problemas ou efeitos adversos numa sala de vacinação. A própria área de serviços faz parte do complexo econômico industrial da saúde. É necessário, ainda, ter uma atenção básica bem organizada. Isso é um sistema produtivo que emprega nove milhões de brasileiros, afirma Gadelha.

A importância da questão da estratégica de política industrial e de política de desenvolvimento tecnológico na área de saúde coletiva foi revelada, na opinião de Gadelha, pelo PNI, assim como anecessidade do país organizar o complexo econômico e industrial.

“O PNI alia a dimensão científica e tecnológica com a dimensão social , enfoque esse que marcou a concepção do Complexo Econômico-Indústrial da Saúde adotada pela Fiocruz no período recente”.

Cartaz de Campanha de vacinação contra a varíola (Repodução)

De acordo com o pesquisador, essa é uma agenda que estava esquecida na saúde publica e na saúde coletiva.

“Ela esteve ligada à questão das vacinas, mas agora no contexto atual ficou claro que quem não tem um sistema produtivo forte capaz de produzir testes, ventiladores, insumos para atenção básica, capacidade de análise de dados e vacinas e toda a cadeia de suprimentos de insumos não é capaz de ter uma estratégia universal que atenda às premissas do PNI, que é o acesso universal e equânime para toda a população em todo o território nacional”, explica.

‘O SUS será desafiado’

Embora reúna as condições propícias para a vacinação em massa contra a Covid-19, a falta de planejamento poderá tornar mais difícil o enfrentamento da doença no Brasil, avalia a epidemiologista e ex-coordenadora do PNI Carla Domingues. À frente do programa de 2011 a 2019, ela apresenta, em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, os principais passos do planejamento de um processo de imunização bem-sucedido.

“Primeiro é preciso definir a população-alvo a ser vacinada, para que se trace a pauta de distribuição”, diz.

“Por exemplo, no caso da vacinação de bebês. Nascem 3 milhões de crianças por ano. Assim, faz-se uma estimativa de que haverá cerca de 300 mil crianças a serem vacinadas por mês. Se forem duas doses de determinada vacina, é preciso distribuir 600 mil doses por mês dela. Aí, vemos qual a população de cada estado e fazemos a distribuição para cada capital, que distribui para os municípios, até chegar às salas de vacina”, explica, lembrando que é preciso levar em conta, ainda, as perdas, no caso de frascos multidoses, que às vezes valem para um só dia.

“As vacinas têm prazo de validade. Um frasco de dez doses dificilmente é todo utilizado. Se aparecerem só cinco crianças para se vacinarem naquela unidade de saúde, as outras cinco doses têm que ser desprezadas. Para cada vacina, é preciso fazer essa avaliação: população-alvo, número de doses necessárias por mês e a perda”.

Os municípios, observa Carla, têm suas redes organizadas e ficam encarregados de alimentar as salas de vacinação, periodicamente – semanalmente ou diariamente, dependendo do movimento de cada sala.

É também do domínio dos municípios a definição da demanda de recursos humanos e da necessidade de aumentar esse número, no caso de vacinação de um grande quantitativo da população.

“Essa é a vantagem de termos um Sistema Único de Saúde. Essa estrutura vem se consolidando desde a concepção do SUS, com a descentralização das ações de vacinação de febre amarela, de varíola, e, depois, com a criação do PNI. É possível dizer que o PNI começou o processo de descentralização antes do SUS, lá em 1973, quando se iniciou um calendário nacional, a compra nacional e depois a distribuição estadual”.

Cartaz da campanha de vacinação contra o H1N1 (Repodução)

A visão nacional do programa e a pactuação federativa é destacada por Carlos Gadelha.

“Não pode haver movimentos isolados que se aproveitem de vantagens pontuais específicas. Tem que haver uma convergência nacional de acordo com critérios pactuados nas instâncias, como a Comissão Tripartite, que permitam uma articulação do governo federal com estados e municípios. Isso é uma marca do PNI, não há caso na história do PNI de estratégia de vacinação não pactuada e não articulada seguindo uma orientação pactuada nacionalmente”, afirma.

Para que o processo descentralizado dê bons resultados, no entanto, é preciso que haja diretrizes claras emanadas da instância federal.

Carla Domingues dá como exemplo o plano de vacinação contra o H1N1, em 2009, quando foram vacinadas 80 milhões de pessoas, em três meses.

“O governo federal comprou a vacina e fez um cronograma de distribuição, comprou as seringas e fez um cronograma de distribuição. E já estava definido no plano quanto cada estado iria receber. Depois, os estados nas comissões bipartites definiram como isso seria distribuído aos municípios”, relata, lembrando das semelhanças daquele cenário com o atual, de pandemia pela Covid-19.

“Naquele momento, não era preciso fazer o distanciamento social, mas outras medidas não farmacológicas, como lavar as mãos, usar álcool em gel e máscara, não tossir nas mãos, estavam recomendadas. O que fizemos? Antes de começar a campanha de vacinação, ficamos batendo nisso, incentivando essas medidas. Mas este governo não acredita nisso, então não vai fazer. Temos já um primeiro problema”.

Ainda sobre a campanha de H1N1, ela lembra que não havia vacina para toda a população.

“Tivemos que fazer vacinação por etapas, um pouco como estamos agora. O que fizemos? Esclarecemos a população quanto ao porquê de vacinarmos determinados grupos, de começarmos pelo grupo tal, qual o benefício da vacina, o que iríamos impactar. Isso foi explicado e a população respeitou. Dialogamos com a população. E a campanha transcorreu satisfatoriamente”.

Carla destaca a importância da comunicação no sucesso de uma campanha de vacinação. “Fazemos o briefing técnico para a área de Comunicação e isso é transformado em cartazes, material para mobiliário urbano, para rádio, televisão”, explica, lembrando que, no caso da campanha de vacinação contra a Covid-19, esse material já deveria estar circulando.

“Até agora, não se tem uma linha de como vai ser essa mobilização, como vai ser a estratégia de comunicação, se há alguma empresa contratada, se vai ser usado o mobiliário urbano, cartazes. Não existe campanha de vacinação sem comunicação. É preciso uma campanha massiva. A população tem que ser lembrada o tempo todo, tem que ser informada, convencida da necessidade de tomar a vacina”.

O ex-ministro Temporão também lembra que em todas as campanhas realizadas, houve estratégias bem definidas de mobilização da sociedade e de informação adequada.

“E temos hoje uma situação bem superior a de décadas anteriores, redes sociais, instrumentos de comunicação muito mais ágeis, que nos dão capacidade de mobilização e de informação muito maior”, lembra.

“Mas quando o próprio presidente da república diz que as pessoas não devem tomar a vacina porque é uma vacina experimental…”.

Temporão recorda-se da campanha de vacinação contra rubéola e síndrome da rubéola congênita, em 2009, quando era ministro da Saúde.

“Era uma vacinação considerada difícil, dado o público-alvo, de jovens adultos, difícil de mobilizar, gente entre 19 e quarenta anos. O que fizemos? Convidamos o [nadador] Cesar Cielo para ser o garoto-propaganda da campanha. Ele era, na época, uma sumidade, estava em todas as mídias, uma unanimidade nacional, um rapaz jovem, de sucesso, atleta. Ele participava de todas as peças, aparecia na televisão, convocava a sociedade, apareceu se vacinando ao meu lado, eu também tomando a vacina. Enfim, em cada conjuntura é preciso uma estratégia. E é preciso contar com quem conhece”.

Carla Domingues lembra que essa será uma campanha longa e deverá durar um ano, fato inédito no PNI– está prevista a produção pela Fiocruz/AstraZeneca de 100,4 milhões de doses de vacina, até julho/2021, e em torno de 110 milhões de doses (produção nacional), entre agosto a dezembro/2021.

“Temos a vacinação contra a gripe, que dura três meses; a de H1N1 durou três meses; a de rubéola, em 2009, durou quatro meses. É como dizer que foi incluída mais uma rotina no calendário de vacinação. Qual é a capacidade logística dos municípios para isso? Estão se preparando? É o que precisamos saber”.

Ela destaca a preocupação de “não descobrir um santo para cobrir outro”, referindo-se ao uso na campanha de Covid-19 de material já reservado para outras imunizações.

“Vacina é diferente de vacinação. Vacinação significa reestruturar uma rede para dar conta da ação extra. Não estamos falando da rotina do SUS. Uma ação extra tem que ser financiada pelo governo federal. O governo Bolsonaro falou há pouco que não iria comprar as seringas porque tem estoque nos estados. Só que esses 60 milhões são para a rotina, para dar conta do calendário nacional de vacinação. Essas seringas podem ser utilizadas para a vacinação contra a Covid, as seringas não têm carimbo. Mas é preciso pensar, ao mesmo tempo, num plano estratégico de reposição. Se não, vai faltar para vacinar contra sarampo, meningite, febre amarela, poliomielite”, alerta.

Carla considera insuficiente contar apenas com a produção das vacinas da Astrazeneca/Oxford/Fiocruz e da CoronaVac/Butantan, se o objetivo é produzir um impacto na imunidade da população.

“Mais uma vez, é preciso definir a estratégia desejada. Toda vacinação tem que ter um objetivo. Se tenho objetivo de controle, posso fazer a vacinação até durante dois anos. Mas para que a população alcance o que deseja, que é voltar ao normal, para que se produza um impacto de imunidade de rebanho,é preciso uma vacinação rápida. Não podemos demorar seis meses”, avalia.

“Em médio prazo, termos dois laboratórios fabricantes brasileiros é fantástico. Mas estamos falando de uma pandemia que precisa de resposta agressiva, rápida. Teríamos que ter buscado também outros fornecedores. Se vacinássemos 80 milhões de brasileiros em dois, três meses, teríamos impacto grande na diminuição da carga da doença. E depois, poderíamos fazer o restante da vacinação com mais calma”.

Ela lembra que na campanha contra o H1N1, No H1N1, o Instituto Butantan era o produtor da vacina. Mas a quantidade não era suficiente. “Buscamos mais dois produtores que conseguiram entregar, pois precisávamos de 100 milhões de doses em curto prazo”.

De acordo com Carla, houve leniência do governo federal, no caso da vacinação contra a Covid-19.

“Faltou planejamento, faltou organização. O governo federal não sinalizou com a compra das vacinas. Então, os estados fizeram corretamente”, diz, referindo-se às iniciativas de governadores e prefeitos na busca de vacinas para suas populações, como no caso de São Paulo.

Ela considera, no entanto, que a vacinação vai acabar acontecendo.

“Não é pelo fato de não ter sido planejada que não vai acontecer. O SUS dá conta! Só que será com muito mais dificuldades operacionais, que poderiam ser evitadas. Os estados vão se organizar, mas vai ser um desgaste grande”.

Neste momento, é leviano qualquer pessoa dizer que nossa vacinação vai ser super exitosa ou que vai ser uma catástrofe.

“Estamos vivendo um cenário que nunca havíamos vivido no PNI. Com fakenews, com politização em torno da vacina, isso é inédito”, considera.

“Vamos ter que acompanhar e ver como o SUS vai reagir. E levar em conta que o Brasil consegue superar dificuldades com mais facilidade do que outros países. O SUS, sim, tem uma expertise, que, sim, vai ser aproveitada, mas vai também ser desafiada. O SUS vai ser desafiado”.

O diretor de Bio-Manguinhos, Mauricio Zuma, D. Orani Tempesta e a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, em frente ao Centro Henrique Penna (CHP)

Linha de produção de vacinas no Instituto Butantan, em São Paulo. Foto: Rodrigo Nunes/MS

Para além dos desafios imediatos, com a vacinação contra a Covid-19, Carlos Gadelha aponta alguns desafios a serem enfrentados pelo SUS e pelo PNI em médio e longo prazos. O primeiro envolve a preservação das conquistas alcançadas e da legitimidade social da vacina.

“É preciso não deixar que prolifere, no Brasil, uma visão antivacina e anticiência, reforçando cada vez mais a vacina como um bem público para o povo brasileiro e que com o PNI aderiu às vacinas sem nenhum tipo de constrangimento, muito à frente, inclusive, de países desenvolvidos na Europa e dos EUA”.

O segundo desafio, que certamente pode contribuir com o processo de vacinação contra a Covid-19, prossegue, é preservar a visão nacional e de pactuação federativa de organização de um programa de vacinação. “Nós não podemos perder isso, uma estratégia nacional pactuada”, explica o pesquisador.

Em sua opinião, o terceiro desafio talvez seja o mais difícil. “O Brasil tem que deixar de ser absorvedor passivo de tecnologias já existentes no mundo, absorvendo com defasagem vacinas contemporâneas, para disputar fronteira tecnológica mundial”.

Ele explica que um novo paradigma tecnológico em vacina está emergindo, tornando evidente que a fronteira tecnológica vem se deslocando. Novas vacinas como, por exemplo, a baseada em adenovírus e em RNA estão sendo desenvolvidas e tecnologias inovadoras estão superando as antigas.

“Se o Brasil não tiver capacidade de inovação e desenvolvimento tecnológico, a arquitetura que deu suporte ao PNI, baseada na articulação com a base social e a base produtiva e tecnológica, está ameaçada”.

A pandemia da Covid-19 reforça esse quadro, considera o pesquisador, mostrando que a aceleração da mudança tecnológica no campo dos imunizantes aumentou muito, encurtando o tempo tecnológico necessário para o desenvolvimento de novas vacinas e aumentando, com isso, a distância entre os países, em relação à capacidade de inovação e produção tecnológica.

Gadelha alerta que o Brasil não pode ser excluído desse processo.

“É preciso construir no país uma capacidade tecnológica avançada e de inovação em vacina. Nós não podemos apenas ser produtores. Temos que estar no restrito grupo de países e de instituições, como a Fiocruz e o Butantan, que participam do desenvolvimento de novas vacinas”.

Apoie o VIOMUNDO


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!

Deixe seu comentário

Leia também