Tadeu Valadares: A república imperial se torna bananeira. Outra crise dos 20 anos?
Tempo de leitura: 7 minA invasão do Capitólio – Carta a S.
Reflexões acerca dos possíveis desdobramentos do “problema americano”
Por Tadeu Valadares*, em A Terra é Redonda
“The world is too much’with us, late and soon, getting and spending, we lay waste our powers” (William Wordsworth).
S., prezado,
Ontem v. levantou a questão mais premente: e agora, depois da invasão do Capitólio, o que virá?
Tenho a impressão de que a cobertura dos acontecimentos por agências noticiosas como a AP dá uma pista, por frágil que seja, a respeito do rumo que, se adotado pelo governo Biden e pelos republicanos, idealmente conduzirá à recomposição do esgarçado tecido social e político dos EUA.
Essa hipótese, entretanto, a mim mais parece surto de otimismo angelical.
Haja homens e mulheres de boa vontade para que o país escape do outro rumo que há décadas vem trilhando com impressionante coerência na estrada que conduz ao abismo.
Dou por descontado, apesar de haver lido tantas matérias a respeito, que os americanos não chegarão, ao menos por uma década mais, ao risco de reeditar os horrores da guerra civil.
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Mas é também visível que muitos dos sinais precursores hoje discerníveis apontam para fato novo: a guerra civil voltou, na condição de espectro e por enquanto no registro do imaginário, quando menos a rondar os EUA.
A paz interna, depois da destruição do Sul, da ‘epopeia da Reconstrução’ e do domínio dos ‘robber barons’, pareceu assegurada.
Relativamente assegurada, de fato, porque ainda havia a fronteira Oeste, a ser violentamente explorada, e porque os EUA estavam iniciando, no último quarto do século 19, sua decidida metamorfose imperial, a projeção do poder para o ‘espaço além-fronteiras’ , processo inicialmente simbolizado, desde 1823, pela doutrina Monroe.
Ela, ao ser lançada, talvez estivesse mais para carta de intenções do que firme intento de barrar as ações das principais potências europeias na América Latina e Caribe.
Ainda não havia força para tanto, especialmente naval, mas já era um começo, um norte estratégico a ser perseguido pelos do Norte.
De 1865 em diante, essa pulsão cresce, a fronteira Oeste é de todo explorada, conquistada, anexada, ocupada pelos do Leste e por imigrantes europeus.
Assim nasce a república imperial bioceânica, ideia e prática afirmadas como vocação permanente, ainda que em meio a grandes discussões internas.
A passagem do século 19 para o 20 marca o tempo em que os EUA se tornam uma grande potência, para nenhuma dúvida da Europa, embora os europeus, quem sabe, se sentissem em algo surpreendidos.
EUA, por um lado, Japão, por outro, surpresas da virada do século.
Ao final da primeira guerra mundial, o que era indubitável tornou-se clamoroso. E menos de 30 anos depois, a conclusão da segundo conflito bélico global marca o momento do triunfo absoluto, só muito imperfeitamente repetido, ou seja, de maneira bem mais ambígua, com a queda do muro e a dissolução da URSS.
Mas o século 21, ah, o século 21, pura surpresa.
Para os EUA, esses primeiros 20 anos vêm transcorrendo quase como ilustração de uma ‘reviravolta dialética’ hegeliana.
O que pareceu a Fukuyama o fim da história como consagração definitiva da democracia liberal imbricada no capitalismo benfazejo, e o que pareceu a Huntington, o outro grande ideólogo da época, como a indispensável ‘substituição’ da Guerra Fria pelo conflito entre civilizações, tudo isso era pouco e deu em nada.
Pior do que haver dado em nada, as guerras infinitas e a decorrente sangria humana e financeira assumem seu papel de fatores ineludíveis no processo de esgotamento dos EUA enquanto Nova Jerusalém que controla o mundo.
Ano passado li um livro interessantíssimo, do jornalista Tom Engelhardt, cujo título é premonitório: A Nation Unmade by War.
Mas há que qualificar o que chamo ‘dar em nada’.
Na verdade estamos acompanhando uma ‘American Tragedy’ que promete ir muito além do nada, até mesmo por haver tanto criado.
O processo, em sua complexidade, deu no domínio do capital improdutivo e também conferiu força inimaginável aos produtos e organizações fundados na ciência e na tecnologia que o Vale do Silício proporcionou.
Deu no fortalecimento dos controles cada vez mais sofisticados, meticulosamente aplicados ao vigiar e punir da pós-modernidade.
Deu na criação das condições de maciço conformismo, via mídia corporativa planetária, conjunto de instrumentos e pessoas que submetem sem cessar, posto que o show não pode parar, a maioria dos que vivem anestesiados na realidade paralela da sociedade do espetáculo.
Deu na vontade de poder concretizada na superação permanente dos armamentos todos, tarefa maior do complexo industrial-militar.
A junção da indústria, da ciência e da tecnologia com a lógica, as paixões e os gigantescos interesses militares, econômicos e geopolíticos gerou máquina sempre faminta de recursos sempre generosamente fornecidos pelos dois partidos da ordem, o republicano e o democrata.
Deu no que os EUA são hoje, um país em manifesta decadência, inclusive institucional.
Ao mesmo tempo, entretanto, fortaleceu uma de suas facetas básicas. Em escala planetária, os EUA são o país militarmente mais poderoso, muito distanciado da Rússia, que aparece em segundo lugar.
“Ergo’, como as guerras infinitas indicam, os EUA se converteram na mais perigosa das grandes potências nucleares.
O planeta, afinal totalmente ‘ocupado’ pelo capitalismo em suas tantas variantes, da americana à europeia, da russa à chinesa, de x a y.
As fronteiras planetárias, esgotadas. Doravante só resta a espacial, já transformada em objeto de outro projeto de colonização ainda não claramente delineado, algo que nem se sabe se é viável ou possível num futuro ainda indeterminável. Enquanto isso, rápida militarização do espaço exterior. A Força Espacial, a assinatura de Trump nesse projeto.
Também no interior da república imperial a equação se complica, a construção histórica se tensiona.
A realidade cotidiana vem sendo marcada, há mais de meio século, pela ininterrupta concentração brutal de renda, riqueza, poder, ‘status’.
Concentração desmedida de tudo o que a velha sociologia clássica denuncia em prosa e verso como dinâmica altamente desestabilizadora, sobretudo se nela a ‘húbris’ predomina.
Perigosa ao ponto da insânia, a construção dessa Babel, em especial porque o processo é em si mesmo seu próprio multiplicador, não podendo, em consequência, reconhecer quaisquer limites. Nem mesmo se preocupando com isso, salvo na retórica.
Assim sendo, e me parece que assim é, o que também se fabrica, com o recurso à mais avançada das tecnologias, diria Caetano, é a estranha chave que, ao abrir a porta dourada do mundo da riqueza do 1%, deixa entrar na casa, no domo, no capitólio, a sombra ameaçadora de conflitos muito maiores.
O que vem de longe, a mescla explosiva de racismo com exploração de (quase) todo o corpo político-econômico formado por cidadãos e cidadãs, está, sobretudo no decurso das últimas décadas, criando, no repentino da aparência, o que emerge como surpresa e pesadelo, apesar de o engendro haver sido gerado muito antes de o neofascismo de Trump passar a funcionar como salto qualitativo.
O real da história, que se articula no relacionamento complexo entre a superfície dos acontecimentos circunstanciais e a profundidade das estruturas do tempo longo, começa a dar seus novos e amargos frutos. Variantes desse mesmo processo, importante recordar, produziram outros frutos estranhos no Deep South, para sempre denunciados por Billie Holiday.
Então, S., voltando à sua pergunta, especulo: o que vem por aí, tanto para os EUA, ator e vítima estelar da peça, quanto para o boquiaberto ‘resto do mundo’, são as ameaças que uma esfinge em crise interno-externa gera para si mesma e para todo o planeta. Esfinge cujas questões, a bem da verdade, estão mais do que razoavelmente decifradas.
A equação interna se mostra cada vez menos apta a produzir solução que prevaleça como ‘correção de rumos’, a despeito do que dizem as agências noticiosas internacionais e os cipaios locais.
Biden e Kamala, inclusive graças à dupla vitória democrata na Geórgia, passaram a dispor das condições mínimas para atuar como os derradeiros bombeiros fiéis, representando os grandes interesses do “establishment’, o seleto grupo dos que acreditam viável, em um país totalmente polarizado, a negociação bem-sucedida de um pacto que no espírito remete a Roosevelt.
Dois são indispensável para dançar um tango, bem sabemos, e haverá que esperar por até dois anos mais para sabermos se é possível apagar o grande incêndio com mangueiras velhas, pouca água e muitos acordos de cavalheiros.
Por outro lado, o neoliberalismo também se revela beco sem saída, porque experimento esgotado, A alternativa lógica, voltar a Roosevelt, Keynes, Welfare State, social democracia ou algo que o valha, debate que gera mais calor do que luz. Enquanto isso, os EUA estão ‘running on empty’, o feijão e o sonho não dialogam mais, o país se encontra diante de ambos os impossíveis: não dá para prosseguir com o neoliberalismo, mesmo requentado, nem é viável regressar ‘to halcyon days’.
Como propostas, saídas inovadoras até que existem. Mas ainda não têm, até o momento, apelo popular na escala minimamente demandada para que se possa criar, ainda que de maneira parcial, o impulso que eventualmente leve a outra sociedade, a novo tipo de solidariedade.
A esquerda se apresenta, sim, algo fortalecida. Mas continua longe de roubar a cena e definir o enredo.
Não parece haver algo assim como terceira alternativa bem estruturada, proposta que convença o eleitorado e as classes populares, força que constranja os grandes interesses corporativos.
A mudança, ainda que limitada, depende dessa esquerda que está se reconstruindo, que apenas começa a se esboçar, que se lança na busca de uma ruptura que, embora menor, pode abrir outros horizontes em termos de reforma do capitalismo nos EUA.
Se vista com olhos sóbrios, essa esquerda continua aparentemente condenada a ser coadjuvante, no limite correndo o risco de que o lúcido que permeia o projeto se dilua num conjunto de votos piedosos.
Daí que na minha perspectiva, S., a situação interno-externa dos EUA implique três momentos: o dramático, ilustrado pela insurgência do dia 7; o trágico, que pode vir a se instaurar no futuro imediato, vale dizer, no prazo que se estende até as próximas eleições intermediárias, se o resultado permitir aos republicanos recuperar a maioria do senado e expandir mais ainda sua presença na Câmara; e o terceiro momento, aquele que no limite do pensável pode emergir apenas no tempo mais estendido, geracional.
Sem solução de médio prazo para o ‘problema americano’, o tempo longo ameaça trazer consigo algo que pode ser o declínio histórico sem volta dos Estados Unidos, tal como ocorrido com Portugal, Espanha, França, Holanda e o Reino Unido, se pensarmos apenas na trajetória dita ocidental.
Esse fluir, a depender das sucessivas conjunturas e de sua interação com a dinâmica estrutural, talvez acabe temporalmente se revelando nem tão estendido assim.
Sei que especulo, S., mas quem sabe se, apesar disso, possamos continuar a dialogar, cada um de nós querendo refinar sua própria visão do que eventualmente pode estar chegando ao Brasil de hoje, tão infeliz, em decorrência da crise em que pontuam o drama atual dos EUA, a falta de perspectivas operacionais do capitalismo global e a situação de ‘no way out’ em que parecemos estar, nós também, imersos.
No imediato, o que mais chama atenção é algo até bem pouco inimaginável: a república imperial se torna bananeira, com isso aumentando exponencialmente todos os decorrentes riscos de agravamento da crise geral. Outra crise dos 20 anos?
*Tadeu Valadares é embaixador aposentado.
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