Adriano Massuda: A descoordenação nacional contra a Covid, o general, o capitão e a vacina
Tempo de leitura: 5 minO GENERAL, O CAPITÃO E A VACINA
Gestão militarizada na Saúde ameaça modelo do SUS
Por Adriano Massuda*, na Piauí
Avanços extraordinários nas ciências biomédicas permitiram produzir, em tempo recorde, diferentes tipos de vacinas contra o Sars-CoV-2, vírus causador da Covid-19.
Alguns países já começaram a utilizá-las para vacinar suas populações, e a Organização Mundial da Saúde deu início a uma estratégia global de imunização.
Trata-se do início do fim da pior pandemia desde a gripe espanhola. Não poderia haver melhor notícia para começar o ano de 2021. Porém, não é o que parece para o Brasil sob o comando de Jair Bolsonaro.
Em alerta aos brasileiros, o atual comandante-em-chefe da nação advertiu que um dos fabricantes não se responsabiliza por possíveis efeitos colaterais da vacina.
“Caso quem tome a vacina se transforme em jacaré, super-homem, nasça barba em mulher, ou homens passem a falar fino, eles não têm nada a ver com isso” – garantiu o capitão.
A insinuação de bizarras mutações, estratégia retórica para desacreditar a vacinação, é mais um capítulo da guerra insana travada por Bolsonaro e seus discípulos negacionistas contra medidas para o controle da pandemia no Brasil.
Desde o registro dos primeiros casos de Covid-19 no país, o presidente da República sabota medidas não farmacológicas comprovadamente eficazes para a redução da transmissão comunitária do vírus.
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Em contraponto, apoia-se nos charlatões de plantão que iludem as pessoas com curas milagrosas – prática antiga que acompanha a assustadora história da Medicina – superada no mundo civilizado pelo desenvolvimento científico.
No Brasil sob Bolsonaro, dois médicos que aceitaram ser ministros da Saúde foram exonerados por terem discordado da conduta prescrita pelo chefe.
A tarefa de advogar pelo afrouxamento de medidas de distanciamento social e prescrever ao povo medicamentos, como a hidroxicloroquina – sem eficácia comprovada para tratamento da Covid-19 – coube a um general da ativa do Exército Brasileiro, especialista em logística.
Sob seu comando no Ministério da Saúde, o país se aproxima dos 200 mil óbitos provocados pela doença – número superado no mundo apenas pelos Estados Unidos.
Sob outro comando, o Brasil teria plenas condições de ser referência na luta contra a Covid-19 e ser um dos pioneiros a vacinar a população.
Lançado em 1973, durante o regime militar, o programa nacional de imunizações (PNI) tornou-se referência internacional por alcançar coberturas vacinais superiores a 95% da população-alvo.
Chegar a esse patamar, num país de dimensões continentais e altamente desigual, não ocorreu por sorte ou acaso.
Fundamentada na tradição centenária de saúde pública brasileira, que remete ao “sanitarismo campanhista”, a capacidade vacinal brasileira foi reforçada após a implementação do Sistema Único de Saúde – o SUS.
Universal e com a gestão descentralizada para o âmbito municipal, o SUS deu capilaridade nacional ao PNI.
Com a expansão da cobertura de serviços de atenção básica promovida pelo SUS, o PNI ganhou eficiência.
Além de vacinar, equipes de saúde da família fazem busca ativa por pessoas que vivem no território de abrangência sob sua responsabilidade.
Para aumentar a cobertura vacinal em áreas carentes, manter a vacinação das crianças em dia tornou-se uma das condicionalidades no programa Bolsa-Família.
E para fazer chegar vacinas a populações que vivem nas áreas mais remotas do país, o SUS conta com o suporte das Forças Armadas.
Outro ingrediente para o sucesso do PNI é a exitosa gestão tripartite do SUS.
Apesar do modelo federativo brasileiro prever plena autonomia entre os entes governamentais, a gestão do SUS só é possível mediante coordenação articulada entre governo federal, estados e municípios.
Sob coordenação do Ministério da Saúde, são definidas as vacinas a serem incorporadas no SUS, o calendário vacinal, a compra dos insumos e a definição da quantidade a ser distribuída a cada estado.
Às Secretarias Estaduais de Saúde cabe coordenar campanhas estaduais, fazer os imunizantes chegarem aos municípios e monitorar a taxa de cobertura vacinal em cada cidade, enquanto as Secretarias Municipais de Saúde coordenam a execução do trabalho.
Não menos importante é a capacidade nacional de produção de vacinas.
Laboratórios públicos centenários, como o da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Instituto Butantan, entre outros – também herança da tradição sanitarista – garantem que a maior parte das vacinas consumidas no PNI sejam produzidas no Brasil.
Com o aumento organizado de demanda por diferentes tipos de vacinas e insumos para atender as necessidades do SUS, o Ministério da Saúde desenvolveu uma sofisticada política que utiliza o poder de compra governamental para fomentar o fortalecimento do complexo industrial da saúde brasileiro.
Por meio de parcerias com o setor privado, laboratórios públicos passaram a absorver novas tecnologias com vistas a abastecer o país com medicamentos e demais produtos estratégicos para a saúde.
Portanto, além de promover o aumento da cobertura vacinal, que levou a uma redução da mortalidade infantil em velocidade superior à de países em semelhante condição socioeconômica, a simbiose do PNI com políticas de ciência e tecnologia coordenadas pelo Ministério da Saúde também serviu de substrato para o desenvolvimento tecnológico e industrial em saúde no Brasil.
Sob esse substrato foram desenvolvidas as parcerias em curso – entre Fiocruz, Ministério da Saúde e AstraZeneca/Universidade Oxford, e entre o Instituto Butantan/Governo do Estado de São Paulo e Sinovac, para produção de vacinas contra a Covid-19 no Brasil.
Os testes mostram que ambas as vacinas são promissoras e em breve estarão disponíveis para o público.
Adquirindo outras vacinas que obtenham licença sanitária antes das iniciativas nacionais, o país poderia usar a logística do PNI para dar logo início à campanha nacional de vacinação contra a Covid-19.
Mas para que essa pressa? Qual o motivo de tanta ansiedade?
O questionamento do general que ocupa o Ministério da Saúde no lançamento do plano nacional de vacinação causou espécie.
Apesar de ter se desculpado no dia seguinte, demonstra um absurdo descolamento da realidade e um despreparo absoluto para comandar a força mais preciosa que o país dispõe para enfrentar essa guerra – o SUS.
Desde o governo Temer, o Ministério da Saúde vem reduzindo sua capacidade de coordenação nacional do sistema de saúde.
Políticos profissionais, sem vínculo com a área, como Ricardo Barros e Gilberto Occhi, ambos do PP, tornaram-se ministros e imprimiram uma agenda voltada para reduzir o SUS ao tamanho do orçamento disponível numa era de austeridade fiscal de longo prazo.
Na gestão Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta seguiu na mesma toada, modificando inclusive o financiamento para atenção primária, que era universal, e passou a ser restrito à população cadastrada em equipes de saúde da família.
Porém, nenhum deles mexeu tanto em áreas técnicas sensíveis do Ministério da Saúde como a atual gestão militar.
A substituição de profissionais de carreira por carreiristas profissionais tem esfacelado a autoridade sanitária do órgão.
As consequências, que são evidentes na descoordenação nacional da resposta à Covid-19, podem ser ainda mais graves.
O Ministério da Saúde ocupa papel central na coordenação de inúmeros programas, do PNI ao Transplantes de órgãos.
Falhas de comando, como a descontinuidade de contratos ou falta de previsão de compras de produtos estratégicos, como ocorreu recentemente com testes de genotipagem para HIV e Hepatite C, podem causar severos impactos na saúde pública.
Além disso, o desabastecimento de produtos essenciais ameaça instituir uma disputa fratricida entre estados e municípios, a exemplo da corrida por respiradores e equipamentos de proteção individual (EPI) durante a pandemia.
Na ausência da autoridade sanitária nacional, a força econômica tende a prevalecer, perpetuando iniquidades e desestruturando a exitosa gestão tripartite erigida no sistema de saúde brasileiro.
Junto com os milhares de afetados pela Covid-19, o SUS – que finalmente tem sua importância sendo reconhecida – é a principal vítima dessa guerra insana.
*Adriano Massuda é médico sanitarista, professor da FGV-EAESP e pesquisador do FGV-Saúde.
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