A aliança entre a Globo, Bolsonaro e Guedes
Por TARSO GENRO*, em A Terra É Redonda
A fala de Lula e a democracia que virá do combate, com Kant com tudo
A importante cobertura que o “sistema” Globo tem feito da chacina que o “Coronavírus 19” tem produzido no Brasil, inscreve-se numa daquelas esquinas da História que ficarão como ícones da Ciência Política.
Nesta esquina, o propósito maior de um grupo político comunicacional, que no contexto atual unificou o fascismo e o liberal-rentismo, foi obter sua legitimidade política com a condenação de um genocídio sanitário.
Com esta estratégia, não precisou se preocupar em esconder a sua posição essencial: o apoio à política demolitória do Estado Social, que lhe identifica com a liderança política de Guedes e, em consequência, com o próprio mandato do Presidente Bolsonaro.
Como estes fatos influirão na teoria ainda não pode se saber com precisão, mas certamente deverá ser um momento muito rico da teoria política, que deverá abarcar, de uma parte, a crise final deste tipo de democracia representativa e, de outra, as complicadas relações entre moral e política na democracia moderna.
Como funciona, porém, na prática, esta atormentada aliança entre a Globo, Bolsonaro e Guedes?
Separando as centenas de milhares de mortes provocadas pela política sanitária genocida de Bolsonaro, da essência “reformista” do seu Governo.
À Globo, interessam as reformas do “rentismo” financeiro, para o qual interessa destruir o Estado Social, e a Bolsonaro interessa a proteção da sua família.
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A ambiguidade ou “autonomia moral” ambígua da Globo é tão evidente que ela se dá ao luxo de tratar Lula como um marginal da política e Bolsonaro como um “chefe de estado”, apenas equivocado numa questão sanitária.
Dá-se ao luxo — no seu relativismo moral — de esconder o pronunciamento de verdadeiro Chefe de Estado que foi Lula, expresso sem ressentimentos e com grandeza política extraordinária, ao mesmo tempo em que apoia as “reformas” destrutivas do Estado Social.
E o faz a ferro e fogo, servindo-se do privilégio de terem ajudado Bolsonaro a eleger-se, com as falsidades manipulatorias dos “dois extremos” e com a sua condescendência com as “fake news”, até que estes também fossem arremetidos de forma igualmente criminosa e covarde contra os seus jornalistas mais importantes.
O “vilão” aliado — desta ambiguidade moral da Globo — que do Palácio do Planalto domina a cena política nacional, será preservado se promover as reformas de demolição do “Estado Social”, mas será defenestrado se mostrar-se impotente para fazê-las.
Trata-se de uma necrófila política macro compensatória, que só pode tornar-se dominante quando a política das trevas suprime a política das luzes.
É quando De Maistre, medievalista juramentado contra a Revolução Francesa, assassina Kant, num período que é — ao mesmo tempo — de tragédia e perplexidade.
O “sistema” Globo não quer e não tem autonomia moral para “julgar” Bolsonaro “como um todo” — como fez com Lula — porque na personalidade partida do Presidente atual, tem um fragmento que lhe interessa muito.
O mesmo se pode dizer em relação a FHC, que apoiou a prisão de Lula e com a sua negativa de apoiar Haddad também ajudou no parto do monstrengo que nos desgoverna.
O “fragmento” que a ambos interessa é o lado reformista leviano de Bolsonaro.
É aquele que permite visualizar, nas atitudes dele, uma preocupação que estrutura todo o seu pensamento político e lhe move como um “chefe” mesquinho e particularista: a defesa da sua família, que lhe impele a qualquer negociação para manter o poder, principalmente transacionar quaisquer reformas, desde que possam ser feitas “sobre o lombo dos outros”.
Kant sempre defendeu que a característica mais completamente “humana” é a “autonomia moral” e que, quando o ser humano se permite “ser manipulado” — como consequência — “permite-se ser escravizado”.
A manipulação traz a dependência do “favor”, porque suprime a autonomia moral e a liberdade, gerando servilismo e degradação.
As influências da crítica kantiana na política moderna são, não só pertinentes, mas necessárias para qualquer luta emancipacionista, seja no âmbito do reformismo socialdemocrata, seja no âmbito das lutas socialistas a partir da obra marxiana.
Assim como De Maistre não é diretamente Hitler — este é bem pior porque teorizou e fez — a autonomia da subjetividade “moral”, vista por Kant no outro lado da História, pode ser localizada em gestos de grandes revolucionários e conservadores dos Séculos 19 e 20.
Mandela, Lenin, Allende, Churchill, Roosevelt e Getúlio, nos seus respectivos contextos e responsabilidades de Estado, demonstram isso claramente.
O ódio de De Maistre (1753 – 1821) pelo “tráfico das ideias” e a raiva que ele devotava aos intelectuais de qualquer tipo, que não concordassem com seu extremismo, abrangia até os pensadores que apenas rejeitavam o sentido medievalista radical da sua pregação doutrinária.
A Revolução Francesa lhe causara pavor e indignação, o que lhe tornou um ser deprimente que encarnava as ideias propaladas pela Santa Inquisição e pelo que hoje é o fascismo contemporâneo, depois expresso em figuras como Hitler e Mussolini.
As reações deste Conde, escritor e advogado, em relação aos intelectuais que defendiam a Revolução ou se opunham às suas ideias de ódio e desprezo a qualquer controvérsia democrática, é mais ou menos semelhante — por exemplo — aos ódios que Bolsonaro exala contra os atuais formuladores políticos da Globo, como Bonner, Merval e Gabeira.
Para Bolsonaro e seus seguidores mais engajados estes — seus antigos aliados — são as “forças satânicas” que deveriam ser eliminadas da vida que ele entende como “democrática”.
A tal vida, que comporta o fechamento do STF e também a eliminação física dos seus adversários.
Vejamos algumas afinidades: numa carta a um dirigente secular da Igreja Ortodoxa — lembra Isaiah Berlin — De Maistre aponta as três ameaças à estabilidade do Império Czarista, assim resumidas: ameaça do “espírito da investigação cética estimulada pelo ensino das ciências naturais”; “o protestantismo, que afirma que todos os homens nascem livres e iguais” (…) e que “todo o poder reside no povo”; e, finalmente, a ameaça das “exigências imediatas de libertação dos servos”.
Vejamos a contrapartida bolsonárica: o negacionismo científico, o ataque permanente à autonomia e à soberania da República (onde está contida a soberania popular) e o ódio aos “servos”, ora representados pelos Sindicatos, pelas comunidades originárias e seus ambientes naturais de vida, e aos quilombolas.
A fala de Lula dia 7 de setembro foi bem mais do que a demonstração da sua superioridade política e moral em relação ao atual Presidente e aos que lhe perseguiram através da manipulação dos processos judiciais, do seu julgamento prévio feito pela mídia oligopolizada e da omissão desta, das razões da sua defesa, em todos os momentos dos procedimentos judiciais e policiais, seguidos pelo golpismo que nos trouxe ao abismo: carestia, medo do incerto e volta da escancarada miséria absoluta, o novo genocídio das esquinas da miséria e do desemprego.
Lula falou para o futuro, mais além do fascismo que um dia passará, para dar lugar aos brasileiros e latino-americanos, reconciliados no bom combate contra as trevas e a miséria moral que cegou — por um certo período da História — uma nação que renascia.
*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Comentários
Zé Maria
A Utilização do Termo ‘Velha Política’ pela Mídia Venal, Capitalista, Corrupta, Comprada e Vendida, é outra “Ambiguidade Moral” que veio na esteira do movement de 2013 “ContraTúduíssuquístaí” para pretenciosa e exclusivamente derrubar o PT do Governo já nas eleições presidenciais de 2014 – fato só consumado através do Golpe de 2016 com efetiva atuação da Lava-Jato – não para ‘moralizar a Política’, mas sim substituir o Projeto Socio-Econômico Petista por outro de interesse do Neoliberalismo, inicialmente promovendo Michel Temer (PMDB) com um Grupo de Corruptos Aliados ao PSDB para implementar o tal programa ‘Ponte para o Futuro’ elaborado pela parceria articulada por José Serra (PSDB-SP) e Romero Jucá – dentre outros tucanos e pemedebistas, inclusive Renan Calheiros que denominou de ‘Agenda Brasil’ pacotão de propostas econômicas em trâmite no Senado, a maioria delas apoiadas pelos Empresários de Comunicação e agora reaproveitadas por Paulo Guedes no desgoverno Bolsonaro/Mourão. Sem falar nas mudanças na CLT, suprimindo direitos trabalhistas historicamente consagrados, nas alterações no Marco Regulatório do Petróleo do Pré-Sal, na péssima gestão da Petrobrás entregue aos Tubarões Estrangeiros com a participação ativa até da Força-Tarefa da OLJ de Curitiba e por fim a cereja do bolo ultra liberal financista: a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos (EC 95), aprovada com os votos dos parlamentares dos partidos do chamado ‘Baixo Clero’ rebatizado de ‘Centrão’, sem que a Imprensa do Mercado encontrasse em tudo isso imoralidade alguma.
A essa “Ambiguidade Moral” chamaste “Hipocrisia Capitalista” ou “Safadeza Sistemática” mesmo, que pode ser mensurada, ainda que parcialmente, pelas estatísticas sociais do IBGE e ambientais do INPE, quando não da ONU e suas instituições Multilaterais Internacionais, tais como OIT, UNICEF e FAO.
Nelson
O cumpanheiro Tarso Genro sempre escreve bem, não como há negar. O problema é o desdobramento de suas escritas.
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O que, realmente, ele propõe, como tentativa, pelo menos, para sairmos da encalacrada em que nos metemos? O que Tarso está a propor no sentido de sacudirmos milhões de brasileiros para que reajam e entendam que se não se mexerem, o país será completamente desmantelado?
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Na falta de condições de mobilizarmos o povo com a força necessária para barrarmos a destruição a que se propõe o desgoverno Bolsonaro, Lula, Tarso e o PT poderiam fazer mais do que análises intelectuais bem feitas mas que “não colam” e não tão “Ibope”. Poderiam fazer uma tentativa de melar o jogo de Bolsonaro, dos militares, do grande capital e do Império.
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Poderiam “jogar no ventilador” os arquivos da Odebrecht, os verdadeiros, e as listas do Banestado. Diante do enorme cerco a que fomos submetidos, partidos de esquerda e o povo brasileiro, talvez estes sejam os dois únicos trunfos de que dispomos no momento para tentarmos fazer tremerem as bases do desgoverno e, com isso, pelo menos provocarmos um forte atraso na implantação do projeto destruidor iniciado por MiShell Temer e que Bolsonaro tem a missão de terminar de implementar.
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A pergunta, da qual não podemos fugir. Por que o Lula, Tarso e outros petistas não querem lançar mão desse trunfo?
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A bem da verdade, a destruição do país e sua entrega ao que chamam de liberalismo começou com a eleição do Collor. Como ele foi impedido, a destruição experimentou uma breve trégua, com Itamar Franco, para, logo em seguida, com Fernando Henrique Cardoso [*] e seu Plano Real ser retomada a todo o vapor.
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A destruição deveria ter se concretizado com a re-reeleição do descalabro tucano em 2002. Mas, eles perderam a eleição para o Lula. Isto significa que os governos do PT deram um basta na destruição? Sim e não. Creio que mais para o não do que para o sim, porque o PT seguiu obedecendo as políticas neoliberais exigidas pelo duo FMI/Banco Mundial.
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E, por 13 anos e 4 meses, de 2003 a 2016, vimos coisas que deveriam ter sido sustadas por completo da vida nacional pelo PT: privatizações, PPPs, Oscips, Lei de Responsabilidade Fiscal, Agências Reguladoras.
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Os governos do PT representaram um certo alívio, um desafogo na destruição. Deveriam ter representado bem mais, deveriam ter implantado um projeto nacional popular de desenvolvimento completo, mas não o fizeram.
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* A meu juízo, Fernando Henrique Cardoso fez o governo mais corrupto e deletério da nossa história. Bolsonaro está com muita vontade de superar FHC.
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