Nicolelis: Se colocássemos o cérebro humano como verdadeiro criador do universo, o manejo da pandemia seria bem diferente

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Foto: Arquivo pessoal

Miguel Nicolelis: “O cérebro humano é o verdadeiro criador do universo”

Em entrevista a GALILEU, o neurocientista brasileiro fala sobre seu novo livro, cuja tese propõe que nossa mente é o verdadeiro centro do universo

MARÍLIA MARASCIULO, em GALILEU

O neurocientista Miguel Nicolelis, que já foi considerado pela revista Scientific American um dos 20 cientistas mais influentes do planeta, tem uma nova teoria: o verdadeiro centro do universo é o cérebro humano.

“Estudo o cérebro há mais ou menos 38 anos, e nos últimos seis ou sete comecei a me dar conta que precisamos fazer um reposicionamento cosmológico, porque basicamente todas as explicações que foram geradas sobre o que existe lá fora no Universo vieram da mente humana”, explica o cientista, em entrevista exclusiva a GALILEU.

“Qualquer uma das visões sobre o surgimento do cosmos são secundárias ao epicentro real, que é a mente. Então concluí que essa visão epistêmica seria a mais correta, sucinta e elegante do que é realmente a reconstrução do universo.”

Em O Verdadeiro Criador de Tudo – Como o Cérebro Humano Esculpiu o Universo como Nós o Conhecemos, lançado nesta segunda-feira (10) pelo selo Crítica da Editora Planeta, Nicolelis discorre sobre a tese e os perigos para a humanidade de não reconhecer a importância do papel do cérebro.

A obra completa a trilogia iniciada em 2011 com o lançamento de Muito Além do Nosso Eu (Companhia das Letra) e que também conta com Made in Macaíba, publicado em 2016 pela Planeta.

Professor da Universidade Duke, nos Estados Unidos, onde atua desde 1994, o cientista de 59 anos encontra-se há 150 dias em seu apartamento em São Paulo, sua cidade natal, impossibilitado de retornar ao país que atualmente chama de casa devido à pandemia.

De sua residência paulistana, conversou com GALILEU sobre sua nova obra, a urgência de um resgate humanístico, negacionismo científico, a relação da pandemia com a negligência do cérebro e, ainda, os efeitos de tudo isso em nossa mente.

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Como o senhor resumiria a teoria do cérebro relativístico?

A teoria do cérebro relativístico segue uma tradição bem antiga, da tese de que todo o movimento é relativo. Você não se move por si só, e sim em relação a algo. Por exemplo, estou andando aqui na minha sala em relação ao movimento da Terra em torno de si mesma, em torno do Sol e assim por diante.

E a mente humana, na minha concepção — e conforme os experimentos que realizei sugerem —, funciona da mesma maneira.

Ela cria um modelo interno da realidade e continuamente julga, atualiza, renova esse modelo, comparando com o que ela obtém do mundo exterior.

A equação relativística da mente é comparar continuamente o modelo mental do universo, do nosso corpo, das nossas relações sociais, da nossa vida com aquilo que a gente obtém pelo nosso sistema sensorial.

Tudo o que intuímos, descobrimos ou criamos vem desse embate relativístico.

É muito semelhante à teoria de Einstein na física, com a diferença de que ele introduziu o observador no universo, mas não entrou na cabeça do observador. A cabeça do observador não fazia diferença para ele, e para mim faz.

Na sua visão, esse novo sistema seria capaz de gerar uma agenda humanística inédita. Que agenda é essa?

O humanismo se tornou secundário aos interesses econômicos, e a pandemia que estamos vivendo é um exemplo disso.

O que proponho no livro é que, ao colocar a mente humana como criadora do universo humano, você põe o dedo em quem realmente definiu o modelo de civilização.

Os mercados, o dinheiro, os deuses, tudo é criação da mente humana, e infelizmente eles se transformaram em coisas mais importantes do que a própria vida. As pessoas estão dispostas a se matarem por uma diferença religiosa hoje em dia.

Ou então a escravizar outro ser humano para obter um maior lucro.

No momento em que aceitarmos que isso tudo pelo que hoje a gente se mata é simplesmente uma abstração mental, talvez a gente caia em si de que a vida humana e do planeta são muito mais relevantes, muito mais importantes.

Essas abstrações secundárias não deveriam ser mais importantes do que a preservação da espécie, do bem-estar humano e do planeta.

É por isso que essa reformatação, na minha opinião, é algo essencial, neste momento mais do que nunca, não é só lero lero de neurocientista.

É curioso notar que, se a gente percebesse essas abstrações, talvez aquela dicotomia que se colocou no início da pandemia de preservar a economia ou a vida humana não seria nem uma questão.

Sim, era preservar a abstração ou o criador da abstração, é exatamente esse o ponto.

Suponhamos que existisse uma outra espécie que tivesse chegado à conclusão de que o que estou dizendo agora é correto.

Essa espécie, sob as condições de ameaça que nós estamos hoje, jamais teria essa discussão.

Então o manejo da pandemia seria bem diferente, haveria um consenso mundial de que os governos teriam que suprir os cidadãos com os meios para ficar em casa o tempo necessário para o vírus ser combatido e uma vacina ser criada. Não haveria essa dicotomia, porque uma é a obra e a outra é o criador.

No livro o senhor fala da importância da subjetividade para os processos científicos, e nós estamos vivendo um período em que há um grande descrédito da ciência. Existe um limite entre uma subjetividade construtiva e benéfica para os processos científicos, e o que pode talvez representar um retrocesso?

Sem dúvida. É que a gente não consegue escapar da subjetividade, esse é um imperativo humano, de como o cérebro funciona.

Mas existe uma diferença entre usar o subjetivo para criar ciência, arte, literatura, pintura, e para espalhar absurdos. Ou negar interpretações que criamos do universo e são muito bem-sucedidas.

Por exemplo, você falar ‘ah, não, a lei da gravidade é uma criação da mente humana e vou pular da minha varanda aqui do 13º andar para desafiá-la’, eu não recomendo.

Mas, ao mesmo tempo em que é possível explicar fenômenos com uma precisão enorme usando a geometria de Einstein, isso não quer dizer que o universo foi feito de geometria.

O ser humano teve uma decisão subjetiva de usar a geometria para explicar o universo, o que não quer dizer que daqui a algumas centenas de anos a melhor explicação do universo seja outra, em outros termos.

O outro extremo é desafiar a lógica, princípios básicos de relações causais e tentar usar outras abstrações mentais que não têm relação com a realidade concreta. Por exemplo, combater um vírus.

Estamos ouvindo absurdos atrás de absurdos sobre o que fazer. Durante meses o Brasil ficou refém de um medicamento que não tem efeito algum para o vírus [a cloroquina]. Só dois países do mundo fizeram isso, os Estados Unidos e o Brasil. E eles desistiram bem antes de nós.

O insight para escrever este novo livro veio ao ler um sobre arte no Natal. Pode contar como foi esse processo?

Isso, um livro de história da arte, que não tinha a menor relação com nada. Mas quando eu li o Gombrich [Ernst Gombrich, austríaco considerado um dos maiores historiadores da arte do século 20] , foi como se eu estivesse falando com uma alma gêmea.

Quando ele fala que não existe arte com A maiúsculo, existem artistas, é sensacional, é emocionante.

O mesmo vale para a ciência. Não existe A ciência, não existe A física, isso é uma criação nossa.

Existem as mentes humanas que se uniram para criar um arcabouço lógico que funciona muito bem. Mas não é definitivo, começa daí, e não é algo que abrange tudo, por isso falo que não somos e jamais seríamos copiados.

Nem por sistemas de inteligência artificial?

A nossa mente jamais será copiada num sistema digital, porque não é algorítmica. Ela não pode ser deduzida a partir de leis determinísticas e um sistema digital.

Então, é uma falácia que eu aponto há anos, um absurdo achar que algum computador vai reproduzir a mente humana, não tem nenhuma validade matemática isso.

Mas vendeu muito livro e muito contrato pro departamento de defesa americano falar que você tinha um computador que ia emular a mente humana, sabe? Tinham interesses financeiros muito grandes por trás.

Qual sua visão sobre o transumanismo?

Uma tentativa de fusão biônica, que eu sou completamente contra. E olha que eu criei as interfaces cérebro-máquina, certo?

Então é a pura contradição, mas na realidade não é.

A minha intenção sempre foi de primeiro estudar o cérebro. É um paradigma muito bom estudar a mente, o cérebro em animais e tal.

Mas, de repente, no meio dos anos 2000, eu era o poster boy do transumanismo e sempre tinha que negar, sempre tinha que ir a público e falar ‘não, pelo contrário, eu sou contra isso daí’.

Não acho que nós devemos nos fundir com máquinas. Acho que nós devemos usar o que pudermos dessa tecnologia para ajudar pessoas que perderam habilidades neurológicas, mas não criar uma nova espécie. Eu sou visceralmente contra isso. Mesmo porque isso não vai melhorar a nossa espécie. Pelo contrário, isso a degrada, na minha opinião.

Sistemas digitais tampouco constroem redes formadas pela sincronização de cérebros diferentes, que o senhor chamou de brainets. Pode explicar melhor o conceito?

Essa é uma definição do que é a base dos grupamentos sociais humanos e dos mamíferos. As brainets nada mais são do que o mecanismo neurofisiológico que permite que nós possamos nos estabelecer enquanto espécie, grupos sociais tão eficientes e tão sedimentados.

A brainet é a definição operacional do grupo social.

Como isso se dá: você precisa de uma mensagem unificadora, um conceito, uma imagem, uma fala, até um cheiro, uma música.

Por que os grandes concertos de música clássica ou de rock atingem milhares de pessoas e sincronizam os cérebros?

É isso que as brainets explicam, como essa sincronização neural entre indivíduos ocorre. E eu consegui reproduzir isso em macacos e mostrei claramente que com sinais supersimples, visuais, você consegue sincronizar atividade neural de vários cérebros.

Aí mostrei que essa habilidade especial da nossa mente foi decisiva na construção da história da civilização humana.

Todos os eventos relevantes dependeram da formação de brainets. Tudo o que diz respeito a criações humanas envolve esse mecanismo, para o bem e para o mal.

Os grandes genocídios da nossa história são decorrência dessa capacidade de sincronizar mentes com racismo, preconceito, xenofobia, são ideias primitivas que apelam para rotinas neurais muito primordiais do nosso cérebro e fazem com que a racionalidade seja completamente atropelada.

O fenômeno que a gente está vivendo agora, com setores da sociedade que ainda insistem em negar a gravidade da pandemia, poderia ser explicado como um modo negativo de uma brainet?

Sem dúvida. Acho que o fenômeno das fake news, repito isso muito, não começou agora.

As fake news começaram desde o início da história humana.

Há 3 mil anos, 4 mil anos, quando um faraó foi conversar com o sacerdote do templo dele, dizendo ‘bom, eu preciso encontrar uma forma do povo me obedecer e construir minha tumba’, aí o sacerdote virou para ele e falou ‘tem um jeito, você se veste inteiro de ouro, sai ao meio-dia do seu templo para uma praça com todo mundo te olhando, o sol refletindo em você, e eu digo para o povo que você é agora a projeção do Deus Sol. Você agora é Rá.’

E os caras acreditaram. Esse é o primeiro grande acordo de distribuição de fake news no mundo.

De repente o faraó não era um ser humano, ele era a representação terrestre do deus mais poderoso. Evidentemente isso foi um acordo de poder e uma fake news altamente bem-sucedida, porque milhares e milhares de egípcios viveram com essa crença.

Como o fato de estarmos vivendo cada vez mais isolados, tanto no sentido literal quanto metafórico, tendo nossas relações mediadas pelas redes sociais, afeta essa brainet?

Essa imersão quase que contínua nas redes sociais tem afetado nosso cérebro.

Na verdade, acho que está esculpindo nossa mente. Como a gente tem que seguir uma lógica digital, ela começa a alterar a relação ou a equação custo-benefício que o cérebro faz de algo que vale a pena fazer ou não. Como se comportar, como se mostrar para o mundo, como se relacionar.

O senhor considera que as pessoas hoje estão negligenciando o poder e o protagonismo de seu próprio cérebro?

Olha, não sei se estão negligenciando, mas não estão dando muita relevância, porque boa parte dos nossos comportamentos são reflexivos hoje em dia.

As fake news sempre existiram, mas a distribuição e a disseminação delas nunca foi tão veloz.

Hoje você consegue sincronizar a mente de centena de milhões de pessoas. Você põe um troço no Twitter e o mundo inteiro vê.

Sabe por que o Trump não dá a mínima para a imprensa? Porque o Twitter dele tem 15 milhões de seguidores.

Se você juntar todas as organizações de mídia, juntas, não chega a dez. Quando ele solta um tweet, fala com mais gente do que a imprensa inteira americana consegue falar.

Então, na loucura dele, ele percebeu que não precisa da imprensa. Ele criou a própria rede de fake news.

E aí, mais do que nunca, essa minha tese de que o cérebro humano é o centro do universo fica clara. Porque hoje, a partir das fake news e dessas abstrações mentais loucas, criaram-se múltiplos universos paralelos da espécie humana.

O cérebro humano é o verdadeiro criador do universo, só que nesse momento nós temos vários ao mesmo tempo.

E como o senhor vê o futuro do cérebro humano? Podemos reverter uma situação dessas?

Há vários cientistas falando ‘não, esse é o melhor dos tempos’, [como] o [Yuval Noah] Harari, o [Steven] Pinker…

Discordo disso frontalmente, é uma simplificação ridícula da realidade.

Veja o número de pessoas que morre de fome no mundo, por não terem acesso a nada. Aí eles vão falar ‘não, mas nós melhoramos dramaticamente, temos vacinas, antibióticos’. Temos tecnologia, tudo bem. Mas quem tem acesso?

A escravidão só mudou de nome, haja visto o que aconteceu na pandemia. As pessoas estão ficando loucas, porque estão trabalhando em casa mais do que trabalhavam no dia a dia normal. Isso está tendo um impacto mental tremendo.

Então qual é a solução? Primeiro, reconhecer quem é o epicentro de tudo isso. De onde vêm todas essas ideias que dominaram toda nossa vida. De onde vêm os sistemas econômicos que favorecem a ganância de uma fração ínfima da sociedade em detrimento de bilhões de pessoas, esse processo de dominação de ideologias autoritárias que estão aí.

Se você parar e pensar, estão retornando com uma força tremenda no pico do nosso desenvolvimento tecnológico. Então primeiro precisamos reconhecer qual é o problema. E uma vez que o problema seja reconhecido, mudar nossa visão de como deve ser esse modelo de desenvolvimento de civilização humana.

Talvez antes mesmo de reconhecer qual é o problema, tenhamos que reconhecer que há um problema.

É isso. A pandemia tem três lições grandes, na minha modesta opinião. A primeira é que ela expôs todas as fragilidades do modelo civilizatório de desenvolvimento econômico da humanidade.

A globalização, a falta de serviços públicos de saúde que tenham potência para reagir a um fenômeno desses. A completa desacreditação ou negação da ciência.

E não estou falando isso do ponto de vista corporativo, porque tenho muitas críticas sobre como a ciência é feita hoje em dia, porque o dinheiro também corrompeu a ciência, é só ver o número de trabalhos que foram retirados de grandes revistas no meio dessa pandemia.

Mas, enfim, é reconhecer o problema, reconhecer quem é o criador do problema e ver que o planeta não aguenta isso mais, nós realmente estamos entrando numa fase cataclísmica.

Aquecimento global, pandemia, fragilidades.. Essas probabilidades nunca foram discutidas abertamente, porque ninguém parou para se preocupar, estava todo mundo muito ocupado ganhando dinheiro na bolsa. E quando a política ou o poder econômico batem de frente com a biologia, a biologia ganha de goleada.

O Verdadeiro Criador de Tudo – Como o Cérebro Humano Esculpiu o Universo como Nós o Conhecemos, Miguel Nicolelis, 400 páginas, Editora Planeta (selo Crítica), (Foto: Divulgação)

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