Roberto Bueno: Damares faz avançar a barbárie com o cancelamento da anistia
Tempo de leitura: 4 minCANCELAMENTO PARCIAL DA ANISTIA E DIREITOS HUMANOS
Por Roberto Bueno*
Neste dia 8 de junho de 2020 foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) uma série de 313 portarias (1.266 a 1.579) assinadas pela Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), Damares Regina Alves.
O objeto das portarias é a anulação de publicações do DOU que concederam benefícios nos termos da Lei da Anistia (6.683/1979) e demais legislações afins.
O Ministério informou que os atingidos pelas portarias são cabos da Aeronáutica que receberam os benefícios após a devida deliberação administrativa que recepcionou o argumento de que teriam sido desligados da instituição em face de suas opções políticas à época classificadas pelo regime como subversivas, algo que evidentemente foi negado.
A decisão tomada pelo MMFDH e publicada neste dia 8 de junho de 2020 descortina horizonte extremamente preocupante, basicamente, por cinco razões.
A primeira das razões, e grave, é que atinge o núcleo duro do pacto político que envolveu a anistia e as bases para a estabilidade posterior a 1988, e ao apontar para o revanchismo coloniza de incertezas um ambiente já altamente conturbado de forma absolutamente desnecessária, mesmo quando considerássemos qualquer perspectiva utilitária e eventuais proveitos gerados pela decisão, que virtualmente inexistem.
A segunda razão é de corte humanitário, análise derivada da consideração de que os cabos tinham à época dos fatos 20 anos de idade, em média, e assim, hoje estaríamos a tratar com indivíduos de aproximados 76 anos, faixa etária que impõe certas limitações e cuidados.
A terceira razão, conexa com a anterior, diz respeito à segurança jurídica, pois já são passados longos 56 anos da época dos fatos, e alguns menos desde que muito tardiamente o Estado brasileiro realizou a justiça para estes indivíduos e suas respectivas famílias.
Estamos, portanto, frente a uma situação administrativa consolidada e juridicamente perfeita.
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Uma quarta razão que desenha cenário de extrema preocupação com a decisão ministerial diz respeito ao momento inoportuno de tomá-la para além do cenário político, também desde a ótica sanitária, dada a ponderação do inédito período de crise pandêmica que afeta o mundo mas que de forma talvez mais intensa do que a qualquer outro país, atinge o Brasil e vitima número de indivíduos quase no patamar de 1.500 vidas diárias, sendo esta, de longe, a maior catástrofe do país e que exigiria completa atenção de todas as áreas do Governo a tempo completo, de onde concluímos que a decisão do MMFDH pode ser avaliada como de extrema inconveniência administrativa e político-constitucional.
A quinta razão parte da consideração de seu potencial para ampliar substancialmente o dano e atingir outro par de milhares de indivíduos diretamente e também às suas famílias, pois segundo precedente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) resta ainda espaço para a revisão de 2,5 mil anistias concedidas com base na mesma portaria de 1964, embora a mesma decisão tenha limitado o horizonte da matéria revisional pelo MMFDH, impedindo que o cancelamento de benefícios venha acompanhado da exigência de devolução dos pagamentos já efetuados.
A decisão política de criar estrutura funcional para análise de solicitações e concessão de benefícios foi importante instrumento para reparar erros crassos e, em certos casos, as consequências da prática de ilícitos de diversos tipos por parte do Estado, servindo para amenizar as perdas impostas pelo regime militar ditatorial nos mais obscuros dias de sua história recente.
A análise do custo mensal hoje implicado na manutenção dos benefícios é revelador de sua insignificância orçamentária que dispensaria, acaso necessário, priorizar atenções do MMFDH em momento de pandemia.
Segundo informação do MMFDH o valor dispendido é de aproximados R$31 milhões, ínfima quantia quando contraposta ao valor de 1.25 trilhão recentemente liberada rapidamente para instituições bancárias sob o pretexto da crise imposta pela pandemia e outro 1 trilhão com que foram agraciadas as petroleiras estrangeiras a título de isenção tributária.
As reações políticas e jurídicas começaram.
No mesmo dia 8 de junho de 2020 o Dep. Enio Verri (PT/PR) protocolou proposta de decreto legislativo cuja aprovação terá como consequência a sustação das portarias publicadas no dia 8 de junho de 2020 no DOU.
A reação oposicionista arremete política e juridicamente sob o imperativo do respeito à vida e dignidade humana, valor que diferencia o homem de seu espectro sombrio, a civilização da barbárie.
O respeito à vida e dignidade humana encarna a mais perfeita tradução da civilização em sua difícil trilha para a construção dos direitos humanos no campo do direito positivo e do constitucionalismo no mundo ocidental.
É tarefa fundamental de todas as gerações a proteção dos direitos humanos e sua sofisticação tanto do aspecto substancial quanto procedimental, algo que requer sucessivos esforços, pois são poderosas as forças reativas a sua eficácia material.
A morte é um evento trágico da existência que a todos atinge, mas não há qualquer justificativa plausível para que grupo humano ou indivíduo possa arrogar-se o direito de apressá-la.
A cultura dos direitos humanos e dos pactos políticos que ensejam o ordenamento jurídico é instrumento objetivo do qual podem servir-se os atores políticos para obstaculizar processos de involução histórica.
*Professor universitário. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Mestre em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).
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