Momtchilo Russo: Visão militarista sobre a covid-19 é imprópria

Tempo de leitura: 6 min

por Momtchilo Russo*, sugerido por Bernardo Vargaftig

Vários membros da família Coronaviridae de vírus infectam humanos e causam uma infecção respiratória discreta.

No entanto, alguns vírus desta família que infectam animais silvestres que os transmitiram aos humanos causam uma Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS) como é o caso do SARS-CoV-1, da MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e do SARS-CoV-2, responsável pela atual pandemia denominada COVID-19.

https://doi.org/10.1038/s41591-020-0820-9

Em todos os continentes afetados pela pandemia, alardeia-se que estamos em Guerra e no Brasil, o presidente pediu ajuda às forças armadas para combater este inimigo.

O problema é que as Forças Armadas não estão equipadas para lidar com infecções.

Apesar do cenário trágico em que se encontram alguns países onde são registrados altos números de mortalidade, a visão militarista de que estamos em guerra é uma noção biologicamente incorreta.

Esta visão antropocêntrica, julga ser o homem um ser central no planeta, desprovido de microrganismos e totalmente isolado do meio que o circunda.

Nesta visão bélica da infecção atribui-se aos microrganismos invasores a vontade de se apoderar dos homens.

Este conceito não se sustenta por várias razões e cito algumas:

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  • Como comentado por Miguel Soares (I. Gulbenkian), “a visão militarista não considera que a grade maioria das pessoas mesmo estando infetadas “convivem” com o vírus SARS-CoV2 sem ficarem gravemente doentes. Isto se explica em parte pela capacidade de certos indivíduos de tolerar o vírus sem no entanto, comprometer a imunidade. Embora benéfica para o indivíduo infectado esta estratégia tem um preço alto, pois facilita o contágio e a propagação do vírus para outros indivíduos mais ou menos susceptíveis de desenvolver a doença”;
  • Filogeneticamente, o Homo sapiens surgiu na terra muito depois dos microrganismos e como tal, teve que se adaptar aos microrganismos que já estavam no meio ambiente e;
  • Somos povoados por microrganismos que constituem a nossa microbiota e que são pelo menos 10 vezes mais numerosos que as nossas células e que, por incrível que pareça, nos ajudam a viver melhor.

É óbvio que o vírus não declarou guerra aos humanos.

A humanidade já passou por vários surtos epidêmicos e se adaptou a todos eles.

Os gregos e os persas foram os primeiros a observar que os convalescentes de pragas não adoeciam de novo e podiam cuidar dos doentes.

Daí surgiu o conceito de Imunidade.

No caso do SARS-CoV-2, o vírus achou por acaso, novos nichos ecológicos para se multiplicar.

O vírus pulou dos morcegos para animais silvestres que ao chegaram ao mercado de Wuhan, infectaram os homens.

O mundo globalizado tornou-se um meio extraordinário de propagação do vírus.

Pandemia não é uma novidade, pois a gripe dita espanhola infectou 500 milhões de indivíduos e matou pelo menos 50 milhões de pessoas.

A hepatite B é um exemplo de como as condições ambientais permitem a propagação de vírus.

Até antes da segunda guerra mundial, a hepatite B era uma doença extremamente rara, porém com a profusão de transfusões de sangue feitas nos soldados feridos, o vírus da hepatite B infectou uma parcela significativa na população humana, estabelecendo-se.

A primeira questão que se coloca é porque a COVID-19 se espalha de forma exponencial?

Parte da resposta é que a população humana não possui nenhum repertório imunológico para lidar e se adaptar a esta infecção.

Cabe aqui afirmar que é o sistema imunológico que nos adapta a conviver com os diferentes microrganismos que nos circundam.

Ao contrário do que é voz corrente nos noticiários, o Sistema Imune não combate microrganismos, mas nos adapta a viver com eles.

Então, por que a COVID-19 virou pandemia?

Tomando como exemplo as populações indígenas, que foram severamente atingidas por infecções virais provenientes do contato com colonizadores europeus, a explicação seria: os europeus já tinham repertório imunológico (memória) para lidar com estas infecções virais, enquanto os indígenas não tinham.

Isto mostra que a memória imunológica das populações é moldada por suas experiências.

Como não temos memória imunológica para lidar com o SARS CoV-2, todos os indivíduos são potenciais hospedeiros do vírus.

Se nada for feito, a população humana vai se adaptar a esta infecção, pois a COVID-19 apresentar baixa letalidade, mas por ser uma pandemia haverá um número extremamente alto de óbitos e colapso hospitalar

https://doi.org/10.1016/S1473-3099(20)30235-8

O que podemos fazer?

Primeiro, entender o modo de transmissão do vírus, seu ciclo e sua patologia para depois intervir.

O que chama atenção na COVID-19 é a extrema capacidade do vírus em ser transmitido.

Algumas possibilidades podem ser aventadas como o fato de indivíduos infectados assintomáticos que não sabem que estão infectados (portadores sãos) ou sintomáticos transmitirem o vírus por muito tempo (~14 dias).

Além disto, gotículas e micropartículas do vírus permanecem no meio ambiente de horas a 3 dias.

Segundo, já sabemos qual é o principal receptor (uma enzima que fica na membrana de várias células denominada ACE2) que o vírus utiliza para infectar e quais são as enzimas utilizadas para sua multiplicação.

A utilização de uma ou uma combinação de várias drogas poderá contribuir para inibir estas enzimas chaves e consequentemente a sua multiplicação como mostrado em estudo recente na Fiocruz

https://doi.org/10.1101/2020.04.04.020925

Também é possível usar drogas que induzem erros na replicação do vírus. Terceiro, é possível desenvolver imunizações ativas (vacinas) e passivas (transferência de anticorpos) à exemplo que aconteceu no século passado com os trabalhos pioneiros de Von Behring, prêmio Nobel por seu trabalho sobre terapia de soro contra a difteria e de Pasteur e seus discípulos.

Analogamente ao que está acontecendo hoje, a peste bubônica iniciou-se na China e disseminou-se pela Europa. Alexandre Yersin, discípulo de Pasteur, descobriu o bacilo da peste bubônica em Hong Kong e logo depois, juntamente com Calmette e Roux, desenvolveu uma vacina (imunização ativa) e um soro (imunização passiva) contra a peste.

A mesma abordagem está sendo feita com a Covid-19. Vários laboratórios estão desenvolvendo vacinas anti-CoV-2

https://doi.org/10.1016/j.immuni.2020.03.007

Porém, o tempo entre o desenvolvimento e a aplicação da vacina pode demorar anos.

Não podemos prescindir de estudos em animais experimentais para avaliar a eficácia da vacina, pois aplicar uma vacina na população, sem fazer testes experimentais, pode acarretar problemas mais graves do que já temos.

Por exemplo, uma vacina usando apenas a proteína S (a glicoproteína da espícula do vírus responsável pela ligação do vírus à célula hospedeira) tem sido desenvolvida, pois o racional desta abordagem é que induzindo anticorpos contra a glicoproteína S, o vírus seria neutralizado.

No entanto, quando esta hipótese foi testada em macacos, os macacos em vez de estarem protegidos, desenvolveram uma patologia mais grave.

Os autores deste trabalho chamam a atenção que anticorpos podem ter efeito deletério na COVID-19

insight.jci.org https://doi.org/10.1172/jci.insight.123158

Porém, trabalho recente mostrou que a transfusão de plasma de pacientes convalescentes, que possuem anticorpos neutralizantes, para pacientes com COVID-19 grave, foi eficaz em reverter o quadro clínico em 3-7 dias após a transfusão do plasma

www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.2004168117

Estes resultados promissores são contrários aos descritos nos experimentos com macacos.

No entanto, o plasma de convalescentes possui diferentes tipos de anticorpos contra diferentes estruturas do vírus e não só anti-S. Neste sentido, o Prof. Nelson Vaz (UFMG), sugeriu que o plasma de pacientes assintomáticos seja o plasma ideal para se utilizar.

É possível produzir vários anticorpos contra diferentes determinantes do vírus em laboratório e avaliar qual a melhor combinação.

Considerações finais A população mais vulnerável é a idosa que representa mais de 80% dos óbitos.

Há pelo menos três possibilidades para explicar porque idosos são mais susceptíveis:

  • Idosos expressam mais receptores (ACE2) para o vírus

https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.03.21.20040261v1

  • Possuem um sistema imunológico senescente que não lida bem com novas infecções;
  • Desenvolvem inflamação mais exacerbada. Pelo menos dois achados dos pacientes graves chamam atenção: a lesão pulmonar associada a um intensa inflamação devido a produção de moléculas inflamatórias denominada de tempestade de citocinas produzidas principalmente pelo sistema imune inato e os problemas de coagulação devido a reação inflamatória sistêmica (coagulação intravascular disseminada) ou a produção de anticorpos contra fosfolipídeos (síndrome antifosfolipide).

Os problemas de coagulação podem ser tratados com drogas anticoagulantes e em especial a heparina de baixo peso molecular.

No caso da inflamação pulmonar intensa cito Lewis Thomas, médico e pensador americano, que chamou a atenção que uma resposta inflamatória exagerada é mais deletéria ao hospedeiro que o próprio microrganismo.

Portanto, o abrandamento da resposta inflamatória pulmonar parece ser um caminho e o tratamento com corticosteroides (poderosos agentes antiinflamatórios) pode trazer benefícios.

Também é possível pensar em tratamentos anti-inflamatórios administrados por via inalatória, uma vez que o órgão afetado é o pulmão.

Neste sentido, é possível administrar vários medicamentos por via inalatória, com a vantagem de usar menor dosagem que a via sistêmica.

Não podemos encarar a COVID-19 como uma guerra e em nome da guerra dar tiros para tudo que é lado, ferindo a nós próprios.

Devemos encarar a COVID-19 como ela é: uma infecção viral e a partir daí fazer as projeções de evolução da doença e tomar de forma coordenada, as medidas necessárias de contenção da doença para evitar perdas humanas.

*Professor titular de imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP

PS com opinião do Viomundo: O presidente Donald Trump abraçou com força o conceito da guerra ao vírus, para se apropriar da imagem de War President tão cara aos norte-americanos, que a associam a Franklin Delano Roosevelt. Nas últimas horas, serviços de inteligência dos Estados Unidos passaram a disseminar a notícia de que investigam se o vírus teria escapado de um laboratório chinês, dando curso a uma teoria da conspiração que é favorável à campanha de reeleição xenofóbica de Trump — que espertamente escolheu a China e a Organização Mundial da Saúde como bodes espiatórios para seu [de Trump] próprio fracasso. Trump, não se esqueçam, disse que talvez “milagrosamente” o vírus ia desaparecer dos EUA.

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