Murilo Matias: Argentinos despertam do pesadelo neoliberal

Tempo de leitura: 4 min

Argentinos despertam do pesadelo neoliberal

por Murilo Matias, de Buenos Aires, para o Viomundo e Vozes Latinas

Em agosto deste ano, perguntado sobre o resultado das primárias que confirmou a reprovação de seu governo e a liderança da chapa à esquerda Alberto Fernandez-Cristina Kirchner, Macri respondeu: “A dormir”.

Ao contrário do desejo do atual mandatário, o povo argentino parece despertar de um período de desemprego, inflação e  aumento da pobreza, que agora atinge 13 milhões de cidadãos, um em cada três argentinos.

A questão alimentar é a que melhor expressa o aumento das desigualdades na segunda maior economia da América do Sul, atrás somente do Brasil.

Apesar de grande produtora de alimentos, especialmente soja, trigo e carne bovina, o governo argentino decretou estado de emergência alimentar diante do aumento da fome entre sues cidadãos.

Diariamente, as centenas de pessoas esperando pela janta solidária nas imediações do congresso, em Buenos Aires, revelam o grau avançado do problema.

“O último cliente acaba de comprar duas bananas e duas laranjas, anos atrás as pessoas compravam uma penca e um saco das mesmas. Isso para os que ainda tem algum dinheiro para comprar”, compara Lili Ventura.

Ela é dona de uma frutaria em Salta, no norte da Argentina. Aí, a administração local criou o Plano Alimentar Salteno com a previsão de abertura das escolas públicas e centros de infância aos fins de semana, afora o financiamento para a compra de itens básicos para populações vulneráveis, como idosos e indígenas para combater a desnutrição.

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Murilo Matias

É o menor consumo de leite desde 2003.

O quadro atual contrasta com a situação de quatro anos atrás, quando Macri assumiu a presidência da Argentina. Naquela altura, após três mandados dos Kirchner, a Argentina encontra-s fora do mapa da fome.

Para piorar, a inflação descontrolada faz com que hoje o  argentino não saiba quanto pagará no mês seguinte pelos serviços de água, energia e habitação, cujos aluguéis sobem constantemente.

Somada à incerteza monetária e  à desvalorização do peso argentino, a diminuição do poder de compra das classes médias junto e a desindustrialização empurraram o país a níveis altos de desemprego, mesmo em locais famosos, como Mar del Plata, que apresenta desocupação recorde apesar do potencial turístico e da força da atividade pesqueira na região.

“Macri manteve os programas sociais, mas o plano econômico deu errado, foi mal e isso empobrece o povo. A realidade é que independentemente de quem vença neste domingo na segunda-feira precisaremos trabalhar”, opina o funcionário público Otelo Maestri, técnico do ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Um perro, um livro e um Clio

Diariamente, registram-se na Argentina greves de profissionais, manifestações de sindicatos e protestos de movimentos sociais, feministas e de minorias.

Junto ao quadro de ebulição social provocada pelo avanço das privatizações e da precarização da qualidade de vida, a população faz anedota.

“Vamos ganhar as eleições com um cachorro, referindo-se ao famoso animal de estimação de Alberto, um livro, o Sinceramente de Cristina, e um Clio, o carro utilizado por Kicillof, candidato a governador de Buenos Aires”, brinca Hebe de Bonafini, líder das madres da Plaza de Maio, que todas quinta-feiras ocupam a praça para denunciar os assassinatos da ditadura argentina.

Ao contrário da campanha que promete colocar novamente a ‘Argentina de pé”, as peças do oficialismo praticamente escondem Macri.

“A manipulação midiática e a desinformação transformaram popular em populismo para confundir o povo; precisamos retomar a América Latina integrada e com espírito coletivo de alguns anos atrás e aqui será uma grande resposta a direita regional”, observa o aposentado Mario Scioni.

Caso se confirme a vitória da chapa que reúne a mais importante parcela do peronismo – movimento político nacionalista inspirado no ex-presidente Peron -, será necessário atuar com urgência na reconstrução da máquina pública.

O aumento da tuberculose, enfermidade da pobreza como é conhecida, revela o resultado negativo da retirada do status de ministério do setor da saúde, decisão que deve ser revertida a partir do próximo ano. A dolarização da economia é outro marco que deve ser revisado a fim de uma nova política econômica que reverta as distorções produzidas pela circulação da moeda estrangeira, para se ter ideia grandes transações na Argentina como a compra de imóveis são feitas em dólar.

A atuação política do judiciário deflagra outra estrutura cujas mudanças são exigidas pelo campo popular.

“Na Argentina, há aproximadamente 70 presos políticos, a quem o governo de Cambiemos (partido de Macri) define como políticos presos por delitos de corrupção. A primeira foi Milagro Sala, líder da organização social Jujuy Tupac Amaru, acusada de associação ilícita, extorsão e fraude ao Estado, a mesma acusação feita à ex-presidenta Cristina, afora a detenção de funcionários dos governos de Nestor e de Cristina, incluindo os ex-ministros de economia e planejamento”, revela a advogada do segmento dos direitos humanos Marta Vassalo.

Apesar das críticas, os governistas se apoiam em alguns resultados regionais que dão algum fôlego à tentativa de Macri de se manter no cargo, a vitória no departamento de Mendoza aparece nessa perspectiva.

“As pesquisas (que indicam vitória da oposição em primeiro turno) falharam. Há o ressurgimento da classe média trabalhadora que não quer o narcotráfico expandido-se, a falta de estatísticas oficiais e o aumento do estado e de seus funcionários”, acredita o deputado de Cambienos Federico Angelini, de Rosário.

Por outro lado a expectativa do segmento progressista da Argentina se anima com a retomada de um amplo arco de alianças em toda a região. “As eleições da Bolívia, Uruguai e Argentina desenham um novo tridente ofensivo de um grande projeto libertador. Alberto fala com entusiasmo desses temas”, projeta o peronista Pedro Fiori.

A reunião de mais de 200 mil mulheres na cidade de La Plata na metade de outubro pode ser o presságio de uma nova Argentina que deve sair das urnas neste domingo.

Não somente a retomada da economia, mas a ampliação dos direitos está no horizonte dos que pretendem comemorar a retomada do campo progressista e os ares de esperança respirados ao largo do Rio da Prata.

Murilo Matias

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Comentários

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Nelson

Ainda que tenha, comprovadamente, um nível de consciência política bem mais elevado que o do brasileiro, o povo argentino não escapou de fazer suas burradas.

Depois de ver seu país ser destroçado por décadas de neoliberalismo, já a partir da ditadura civil-militar de 1976-1983, e tendo sequência com a corrupção monstruosa dos governos de Menem e dos que lhe sucederam, os argentinos conseguiram algum alívio com os Kirchner, Néstor e Cristina.

Pois, ao invés de apostarem na continuidade desse alívio, preferiram voltar a experimentar, com Macri, o descalabro que é o neoliberalismo. Não podia ser outro o resultado. Agora, os argentinos veem seu país no fundo do poço, em situação de difícil recuperação.

Não estou aqui a endeusar os Kirchner, até porque eles cometeram muitos erros. Porém, é obrigação de um povo, qualquer que seja ele, fazer avançar permanentemente seu sistema político. Haverá muitos momentos em que o povo ser verá frente a um dilema: quem escolher, uma vez que nenhum candidato, nenhum projeto atende a suas expectativas.

Nesta situação, como não existem sistemas políticos ou partidos que sejam perfeitos, inevitavelmente, o povo terá que escolher o menos ruim. Na verdade, na maioria das eleições é bem isto que acontece.

Dado o histórico de destruição causada pelo neoliberalismo exacerbado das décadas anteriores, os argentinos deveriam ter apostado na continuidade do kirchnerismo, ainda que este tivesse inúmeras falhas.

A partir daí, é óbvio, deveriam colocar pressão, organizada e sem tréguas, sobre o governo, mesmo kirchnerista, para passasse a olhar muito mais para o conjunto da população do que para o grande capital. Afinal, as mudanças efetivas não se fazem somente pelo voto. Longe disso, como de há muito sabemos.

Ou o povo, qualquer que seja ele, que é a maioria, se une, se organiza e se mobiliza para influir nas decisões, fazendo com que os parlamentos e governos se curvem a sua vontade, ou continuará penando por décadas a fio, séculos mesmo, a imaginar que basta votar diferente ou um voto de protesto para que as mudanças tão ansiadas se concretizem.

    a.ali

    na argentina já acordaram e nós qdo. sairemos desse pesadelo ????

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