Antonio Candido: “O socialismo é uma doutrina triunfante”

Tempo de leitura: 13 min

Aos 93 anos, Antonio Candido explica a sua concepção de socialismo, fala sobre literatura e revela não se interessar por novas obras

por Joana Tavares, no Brasil de Fato, sugestão do Igor Felippe

Crítico literário, professor, sociólogo, militante. Um adjetivo sozinho não consegue definir a importância de Antonio Candido para o Brasil. Considerado um dos principais intelectuais do país, ele mantém a postura socialista, a cordialidade, a elegância, o senso de humor, o otimismo. Antes de começar nossa entrevista, ele diz que viveu praticamente todo o conturbado século 20. E participou ativamente dele, escrevendo, debatendo, indo a manifestações, ajudando a dar lucidez, clareza e humanidade a toda uma geração de alunos, militantes sociais, leitores e escritores.

Tão bom de prosa como de escrita, ele fala sobre seu método de análise literária, dos livros de que gosta, da sua infância, do começo da sua militância, da televisão, do MST, da sua crença profunda no socialismo como uma doutrina triunfante. “O que se pensa que é a face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele”, afirma.

Brasil de Fato – Nos seus textos é perceptível a intenção de ser entendido. Apesar de muito erudito, sua escrita é simples. Por que esse esforço de ser sempre claro?

Antonio Candido – Acho que a clareza é um respeito pelo próximo, um respeito pelo leitor. Sempre achei, eu e alguns colegas, que, quando se trata de ciências humanas, apesar de serem chamadas de ciências, são ligadas à nossa humanidade, de maneira que não deve haver jargão científico. Posso dizer o que tenho para dizer nas humanidades com a linguagem comum. Já no estudo das ciências humanas eu preconizava isso. Qualquer atividade que não seja estritamente técnica, acho que a clareza é necessária inclusive para pode divulgar a mensagem, a mensagem deixar de ser um privilégio e se tornar um bem comum.

O seu método de análise da literatura parte da cultura para a realidade social e volta para a cultura e para o texto. Como o senhor explicaria esse método?

Uma coisa que sempre me preocupou muito é que os teóricos da literatura dizem: é preciso fazer isso, mas não fazem. Tenho muita influência marxista – não me considero marxista – mas tenho muita influência marxista na minha formação e também muita influência da chamada escola sociológica francesa, que geralmente era formada por socialistas. Parti do seguinte princípio: quero aproveitar meu conhecimento sociológico para ver como isso poderia contribuir para conhecer o íntimo de uma obra literária. No começo eu era um pouco sectário, politizava um pouco demais minha atividade. Depois entrei em contato com um movimento literário norte-americano, a nova crítica, conhecido como new criticism. E aí foi um ovo de colombo: a obra de arte pode depender do que for, da personalidade do autor, da classe social dele, da situação econômica, do momento histórico, mas quando ela é realizada, ela é ela. Ela tem sua própria individualidade. Então a primeira coisa que é preciso fazer é estudar a própria obra. Isso ficou na minha cabeça. Mas eu também não queria abrir mão, dada a minha formação, do social. Importante então é o seguinte: reconhecer que a obra é autônoma, mas que foi formada por coisas que vieram de fora dela, por influências da sociedade, da ideologia do tempo, do autor. Não é dizer: a sociedade é assim, portanto a obra é assim. O importante é: quais são os elementos da realidade social que se transformaram em estrutura estética. Me dediquei muito a isso, tenho um livro chamado “Literatura e sociedade” que analisa isso. Fiz um esforço grande para respeitar a realidade estética da obra e sua ligação com a realidade. Há certas obras em que não faz sentido pesquisar o vínculo social porque ela é pura estrutura verbal. Há outras em que o social é tão presente – como “O cortiço” [de Aluísio Azevedo] – que é impossível analisar a obra sem a carga social. Depois de mais maduro minha conclusão foi muito óbvia: o crítico tem que proceder conforme a natureza de cada obra que ele analisa. Há obras que pedem um método psicológico, eu uso; outras pedem estudo do vocabulário, a classe social do autor; uso. Talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado de obras.

Teria um tipo de abordagem estética que seria melhor?

Não privilegio. Já privilegiei. Primeiro o social, cheguei a privilegiar mesmo o político. Quando eu era um jovem crítico eu queria que meus artigos demonstrassem que era um socialista escrevendo com posição crítica frente à sociedade. Depois vi que havia poemas, por exemplo, em que não podia fazer isso. Então passei a outra fase em que passei a priorizar a autonomia da obra, os valores estéticos. Depois vi que depende da obra. Mas tenho muito interesse pelo estudo das obras que permitem uma abordagem ao mesmo tempo interna e externa. A minha fórmula é a seguinte: estou interessado em saber como o externo se transformou em interno, como aquilo que é carne de vaca vira croquete. O croquete não é vaca, mas sem a vaca o croquete não existe. Mas o croquete não tem nada a ver com a vaca, só a carne. Mas o externo se transformou em algo que é interno. Aí tenho que estudar o croquete, dizer de onde ele veio.

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O que é mais importante ler na literatura brasileira?

Machado de Assis. Ele é um escritor completo.

É o que senhor mais gosta?

Não, mas acho que é o que mais se aproveita.

E de qual o senhor mais gosta?

Gosto muito do Eça de Queiroz, muitos estrangeiros. De brasileiros, gosto muito de Graciliano Ramos… Acho que já li “São Bernardo” umas 20 vezes, com mentira e tudo. Leio o Graciliano muito, sempre. Mas Machado de Assis é um autor extraordinário. Comecei a ler com 9 anos livros de adulto. E ninguém sabia quem era Machado de Assis, só o Brasil e, mesmo assim, nem todo mundo. Mas hoje ele está ficando um autor universal. Ele tinha a prova do grande escritor. Quando se escreve um livro, ele é traduzido, e uma crítica fala que a tradução estragou a obra, é porque não era uma grande obra. Machado de Assis, mesmo mal traduzido, continua grande. A prova de um bom escritor é que mesmo mal traduzido ele é grande. Se dizem: “a tradução matou a obra”, então a obra era boa, mas não era grande.

Como levar a grande literatura para quem não está habituado com a leitura?

É perfeitamente possível, sobretudo Machado de Assis. A Maria Vitória Benevides me contou de uma pesquisa que foi feita na Itália há uns 30 anos. Aqueles magnatas italianos, com uma visão já avançada do capitalismo, decidiram diminuir as horas de trabalho para que os trabalhadores pudessem ter cursos, se dedicar à cultura. Então perguntaram: cursos de que vocês querem? Pensaram que iam pedir cursos técnicos, e eles pediram curso de italiano para poder ler bem os clássicos. “A divina comédia” é um livro com 100 cantos, cada canto com dezenas de estrofes. Na Itália, não sou capaz de repetir direito, mas algo como 200 mil pessoas sabem a primeira parte inteira, 50 mil sabem a segunda, e de 3 a 4 mil pessoas sabem o livro inteiro de cor. Quer dizer, o povo tem direito à literatura e entende a literatura. O doutor Agostinho da Silva, um escritor português anarquista que ficou muito tempo no Brasil, explicava para os operários os diálogos de Platão, e eles adoravam. Tem que saber explicar, usar a linguagem normal.

O senhor acha que o brasileiro gosta de ler?

Não sei. O Brasil pra mim é um mistério. Tem editora para toda parte, tem livro para todo lado. Vi uma reportagem que dizia que a cidade de Buenos Aires tem mais livrarias que em todo o Brasil. Lê-se muito pouco no Brasil. Parece que o povo que lê mais é o finlandês, que lê 30 volumes por ano. Agora dizem que o livro vai acabar, né?

O senhor acha que vai?

Não sei. Eu não tenho nem computador… as pessoas me perguntam: qual é o seu… como chama?

E-mail?

Isso! Olha, eu parei no telefone e máquina de escrever. Não entendo dessas coisas… Estou afastado de todas as novidades há cerca de 30 anos. Não me interesso por literatura atual. Sou um velho caturra. Já doei quase toda minha biblioteca, 14 ou 15 mil volumes. O que tem aqui é livro para visita ver. Mas pretendo dar tudo. Não vendo livro, eu dou. Sempre fiz escola pública, inclusive universidade pública, então é o que posso dar para devolver um pouco. Tenho impressão que a literatura brasileira está fraca, mas isso todo velho acha. Meus antigos alunos que me visitam muito dizem que está fraca no Brasil, na Inglaterra, na França, na Rússia, nos Estados Unidos… que a literatura está por baixo hoje em dia. Mas eu não me interesso por novidades.

E o que o senhor lê hoje em dia?

Eu releio. História, um pouco de política… mesmo meus livros de socialismo eu dei tudo. Agora estou querendo reler alguns mestres socialistas, sobretudo Eduard Bernstein, aquele que os comunistas tinham ódio. Ele era marxista, mas dizia que o marxismo tem um defeito, achar que a gente pode chegar no paraíso terrestre. Então ele partiu da ideia do filósofo Immanuel Kant da finalidade sem fim. O socialismo é uma finalidade sem fim. Você tem que agir todos os dias como se fosse possível chegar no paraíso, mas você não chegará. Mas se não fizer essa luta, você cai no inferno.

O senhor é socialista?

Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia.

Por quê?

Virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder. O socialismo hoje está infiltrado em todo lugar.

O socialismo como luta dos trabalhadores?

O socialismo como caminho para a igualdade. Não é a luta, é por causa da luta. O grau de igualdade de hoje foi obtido pelas lutas do socialismo. Portanto ele é uma doutrina triunfante. Os países que passaram pela etapa das revoluções burguesas têm o nível de vida do trabalhador que o socialismo lutou para ter, o que quer. Não vou dizer que países como França e Alemanha são socialistas, mas têm um nível de vida melhor para o trabalhador.

Para o senhor é possível o socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?

Estou pensando mais na técnica de esponja. Se daqui a 50 anos no Brasil não houver diferença maior que dez do maior ao menor salário, se todos tiverem escola… não importa que seja com a monarquia, pode ser o regime com o nome que for, não precisa ser o socialismo! Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser… o que é o socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o socialismo.

O que o socialismo conseguiu no mundo de avanços?

O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a China, o Camboja. No comunismo tem muito fanatismo, enquanto o socialismo democrático é moderado, é humano. E não há verdade final fora da moderação, isso Aristóteles já dizia, a verdade está no meio. Quando eu era militante do PT – deixei de ser militante em 2002, quando o Lula foi eleito – era da ala do Lula, da Articulação, mas só votava nos candidatos da extrema esquerda, para cutucar o centro. É preciso ter esquerda e direita para formar a média. Estou convencido disso: o socialismo é a grande visão do homem, que não foi ainda superada, de tratar o homem realmente como ser humano. Podem dizer: a religião faz isso. Mas faz isso para o que são adeptos dela, o socialismo faz isso para todos. O socialismo funciona como esponja: hoje o capitalismo está embebido de socialismo. No tempo que meu irmão Roberto – que era católico de esquerda – começou a trabalhar, eu era moço, ele era tido como comunista, por dizer que no Brasil tinha miséria. Dizer isso era ser comunista, não estou falando em metáforas. Hoje, a Federação das Indústrias, Paulo Maluf, eles dizem que a miséria é intolerável. O socialismo está andando… não com o nome, mas aquilo que o socialismo quer, a igualdade, está andando. Não aquela igualdade que alguns socialistas e os anarquistas pregavam, igualdade absoluta é impossível. Os homens são muito diferentes, há uma certa justiça em remunerar mais aquele que serve mais à comunidade. Mas a desigualdade tem que ser mínima, não máxima. Sou muito otimista. (pausa).

O Brasil é um país pobre, mas há uma certa tendência igualitária no brasileiro – apesar da escravidão – e isso é bom. Tive uma sorte muito grande, fui criado numa cidade pequena, em Minas Gerais, não tinha nem 5 mil habitantes quando eu morava lá. Numa cidade assim, todo mundo é parente. Meu bisavô era proprietário de terras, mas a terra foi sendo dividida entre os filhos… então na minha cidade o barbeiro era meu parente, o chofer de praça era meu parente, até uma prostituta, que foi uma moça deflorada expulsa de casa, era minha prima. Então me acostumei a ser igual a todo mundo. Fui criado com os antigos escravos do meu avô. Quando eu tinha 10 anos de idade, toda pessoa com mais de 40 anos tinha sido escrava. Conheci inclusive uma escrava, tia Vitória, que liderou uma rebelião contra o senhor. Não tenho senso de desigualdade social. Digo sempre, tenho temperamento conservador. Tenho temperamento conservador, atitudes liberais e ideias socialistas. Minha grande sorte foi não ter nascido em família nem importante nem rica, senão ia ser um reacionário. (risos).

A Teresina, que inspirou um livro com seu nome, o senhor conheceu depois?

Conheci em Poços de Caldas… essa era uma mulher extraordinária, uma anarquista, maior amiga da minha mãe. Tenho um livrinho sobre ela. Uma mulher formidável. Mas eu me politizei muito tarde, com 23, 24 anos de idade com o Paulo Emílio. Ele dizia: “é melhor ser fascista do que não ter ideologia”. Ele que me levou para a militância. Ele dizia com razão: cada geração tem o seu dever. O nosso dever era político.

E o dever da atual geração?

Ter saudade. Vocês pegaram um rabo de foguete danado.

No seu livro “Os parceiros do Rio Bonito” o senhor diz que é importante defender a reforma agrária não apenas por motivos econômicos, mas culturalmente. O que o senhor acha disso hoje?

Isso é uma coisa muito bonita do MST. No movimento das Ligas Camponesas não havia essa preocupação cultural, era mais econômica. Acho bonito isso que o MST faz: formar em curso superior quem trabalha na enxada. Essa preocupação cultural do MST já é um avanço extraordinário no caminho do socialismo. É preciso cultura. Não é só o livro, é conhecimento, informação, notícia… Minha tese de doutorado em ciências sociais foi sobre o camponês pobre de São Paulo – aquele que precisa arrendar terra, o parceiro. Em 1948, estava fazendo minha pesquisa num bairro rural de Bofete e tinha um informante muito bom, Nhô Samuel Antônio de Camargos. Ele dizia que tinha mais de 90 anos, mas não sabia quantos. Um dia ele me perguntou: “ô seu Antonio, o imperador vai indo bem? Não é mais aquele de barba branca, né?”. Eu disse pra ele: “não, agora é outro chamado Eurico Gaspar Dutra”. Quer dizer, ele está fora da cultura, para ele o imperador existe. Ele não sabe ler, não sabe escrever, não lê jornal. A humanização moderna depende da comunicação em grande parte. No dia em que o trabalhador tem o rádio em casa ele é outra pessoa. O problema é que os meios modernos de comunicação são muito venenosos. A televisão é uma praga. Eu adoro, hein? Moro sozinho, sozinho, sou viúvo e assisto televisão. Mas é uma praga. A coisa mais pérfida do capitalismo – por causa da necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo. Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento sublimar de dez em dez minutos, na cabeça de todos – na sua, na minha, do Sílvio Santos, do dono do Bradesco, do pobre diabo que não tem o que comer – imagens de whisky, automóvel, casa, roupa, viagem à Europa – cria necessidades. E claro que não dá condições para concretizá-las.

A sociedade de consumo está criando necessidades artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à droga, miséria… Esse desejo da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo descobriu isso graças ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e fez carro popular, vendia a 500 dólares. Estados Unidos inteiro começou a comprar automóvel, e o Ford foi ficando milionário. De repente o carro não vendia mais. Ele ficou desesperado, chamou os economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o carro não acaba”. O produto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal é feito para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar, essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso, passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse mais socialista seria preciso encontrar uma maneira de não falir as empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar com essa loucura da renovação. Hoje um automóvel é feito para acabar, a moda é feita para mudar. Essa ideia tem como miragem o lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do bem-estar infinito.

QUEM É

Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro em 24 de julho de 1918, concluiu seus estudos secundários em Poços de Caldas (MG) e ingressou na recém-fundada Universidade de São Paulo em 1937, no curso de Ciências Sociais. Com os amigos Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e outros fundou a revista Clima. Com Gilda de Mello e Souza, colega de revista e do intenso ambiente de debates sobre a cultura, foi casado por 60 anos. Defendeu sua tese de doutorado, publicada depois como o livro “Os Parceiros do Rio Bonito”, em 1954. De 1958 a 1960 foi professor de literatura na Faculdade de Filosofia de Assis. Em 1961, passou a dar aulas de teoria literária e literatura comparada na USP, onde foi professor e orientou trabalhos até se aposentar, em 1992. Na década de 1940, militou no Partido Socialista Brasileiro, fazendo oposição à ditadura Vargas. Em 1980, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Colaborou nos jornais Folha da Manhã e Diário de São Paulo, resenhando as primeiras obras literárias. É autor de inúmeros livros, atualmente reeditados pela editora Ouro sobre Azul, coordenada por sua filha, Ana Luisa Escorel.

Publicado originalmente na edição 435 do Brasil de Fato.

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Comentários

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Leonardo

93 anos…

Tá explicada essa frase genial que ilustra o tópico.

Antonio Candido: “O socialismo é uma doutrina triunfante” « Blog do EASON

[…] Publicado no Blog Vi O Mundo de Luiz Carlos Azenha […]

operantelivre

Curiosidade linguística.
Anta é masculino ou feminino? Ou tem Anta macho e Anta fêmea?
A gente chama uma Anta de Anta antes que se perceba como Anta ou só depois que o (a) bicho(a) faz questão de ser chamado de Anta de tanto que se enfeita de Anta???

    joão

    vc pode não acreditar mas conheci uma anta chamado "alfredo", que me tirou dessa dúvida. Conto o causo tal como o causo foi: eu trabalhava num projeto de implantação de escola indigena e dava aula durante o período de férias numa reserva federal, onde havia vários animais protegidos, inclusive uma onça pintada que de vez em quando escapava da reserva e comia um bezerro, os fazendeiros doidos pra matá-la, a reserva a protegia. No alojamento em que ficávamos, os professores e técnicos do projeto, de vez em quando o lixo de produtos orgânicos era revirado, assim como desapareciam regularmente as barras de sabão que ficava na área do fundo do alojamento, que dava diretamente pra mata… Um dia cheguei de volta das aulas e na nossa sala estava alfredo, convivendo mansamente com a gente, perguntei quem era me disseram é Alfredo e eu, como vcs sabem?, e uma menina falou assim, assim…e foi passando amavelmente a mão (acredito que macia) pelo lombo da anta, pelo pescoço,
    pela teste, por seu rosto…logo ficou claro que a anta era anto…um anto e tanto!. se tem alguém interessado em detalhes particulares…Os outros não sei, mas no caso de alfredo não houve dúvidas…A partir daí, tiramos o sabão da área e alfredo passou a ir todos os dias comer os produtos orgânicos, que não púnhamos mais no lixo, ficava numa espécie de bacia, alfredo aparecia todos os dias, não exatamente se por causa exclusivamente da comida…

    joão 2

    a propósito, só depois que escrevi a resposta a "operante livre" percebi que há um outro joão, esclareço que o post sobre a anta em resposta a "operante livre", não é o mesmo que assina os posts anteriores. Garrincha sabia que havia vários joões, eu só vi depois.

monge scéptico

A única coisa porque vale a pena lutar é, fazer o povo compreender, as metas
do socialismo. Sem a clara compreensão de como se forma uma sociedade
socialista, a humanidade não progredirá muito além……………….
Parabéns a esse senhor, Antônio Cândido.

luiz pinheiro

Antonio Candido é simplicidade, sabedoria, muitas décadas de lutas e de compromisso com a dignidade humana, olhos no horizonte e pés no chão.

Márcio Gaspar

"Um dia ele me perguntou: “ô seu Antonio, o imperador vai indo bem? Não é mais aquele de barba branca, né?”. Eu disse pra ele: “não, agora é outro chamado Eurico Gaspar Dutra”. Quer dizer, ele está fora da cultura, para ele o imperador existe. Ele não sabe ler, não sabe escrever, não lê jornal. A humanização moderna depende da comunicação em grande parte." Depois que eu li esta passagem, pensei como será bom para o Brasil uma banda larga que abarque pelo menos uns 80% de sua populaçao. Quem o Paulo Bernardo leia isto.

Rita

Que delícia de lucidez!!!!! Antonio Candido sempre terá algo verdadeiro a dizer. Lê-lo ou ouvi-lo é certeza de aprender.

Pedro

A crise americana põe os Estados Unidos mais próximos do socialismo do que qualquer outro país. Como diz o Galeano: a história atual está grávida de uma outra forma de sociedade. O socialismo é parte da lógica capitalista. Evidentemente, quando essa lógica se esgota. O socialismo não nasce do nada, nem da boa vontade de quem quer que seja. Mas na história nada nasce sem luta, e o momento da luta por uma nova sociedade está se aproximando rapidamente.

Sebastião Medeiros

Perfeita a análise do Socialismo feita por Antonio Cândido que aos 93 anos de idade é muito mais jovem do que muitos jornalistas e "intelectuais" que frequentam o chamado "instituto" millenium.

zacharias

Como devemos refletir acerca do que disse Antonio Cândido a respeito da necessidade que a sociedade de consumo tem em criar necessidades artificiais e aquilo que é o desdobramento disso tudo: o desespero por não conseguir ter; e infelizmente a dificuldade que é perceber Ser antes de Ter. Brilhante texto.

francisco.latorre

antonio candido.

socialismo é isso aí.

o resto é rebolation.

..

José Antero Silvério

É impossível amar a Deus sobre todas as coisas, seguir os ensinamentos do Cristo e amar o próximo sem ser um socialista.

João

O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue
—-

ok… Antonio Candido tem 93 anos… é velhinho e merece respeito!

nem por isso preciso concordar com ele…

a visão tola de q o Capitalismo se alimenta do "mal" e q tudo de bom e justo q foi conquistado pelo homem (ser humano pras neuróticas feministas) vem do socialismo é apenas um jogo de palavras sem sentido prático…

assim fica fácil defender o socialismo, do mesmo jeito q o cristão diz q "o Senhor é a salvação!"

q Antonio Candido demore muitos anos ainda pra morrer, goze de boa saude e se mantenha tolamente iludido sobre esse tema… nem vale a pena desiludi-lo nessa altura da vida!

    Silvio I

    João:
    Quisera que me enumerasse qual vantagem tem dado o capitalismo ao homem. Às 8 horas de trabalho, a aposentadoria, a saúde pública, a escola pública etc. foi dada por o capitalismo? A luta de todos os homens por melhorias, sempre foram contra os capitalistas, que sempre exploraram e continuam explorando u homem.

    João

    claro, claro…

    o "Capitalismo" é mau e vem do Demonio…

    o "Socialismo" é a luz e a salvação!

    como não tinha percebido isso antes?

    ALELUIA, SENHOR!

    Silvio I

    João:
    Não tenho nada que ver nem com o senhor nem com o diabo. Não acredito em nenhum dos dois,assim que guarda teus cantos de aleluia.O socialismo teórico e uma utopia,mais todas as melhoras que tem conseguido u homem no mundo são socialistas!Você não me diz de nenhuma melhora capitalista.A única melhora e nos bolsos de uns poucos.

    João

    sim sim, claro…

    concordo…

    onde assino?

    melhor assim, né?

Gerson Carneiro

"…a verdadeira miragem é o bem-estar infinito".

Exatamente hoje pela manhã, enquanto aguardava na fila da padaria, observei de relance um comercial, não sei sobre o que era, mas me chamou a atenção a quantidade de jovens no comercial que pulavam e dançavam, pareciam estar em uma festa havy. Fiquei ali pensando sobre o que seria aquele comercial e a quem tentavam vender o produto. Naquele instante a pergunta que fiz a mim foi: quem consegue viver constantemente nessa felicidade mostrada pelo comercial?

Maravilhoso esse post. Como diz o povo de Deus: Ôh Glória!

Gerson Carneiro

O dever da atual geração na minha opinião é o de manter o livro aberto e a televisão desligada.

Gerson Carneiro

"…é possível o socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?"

Aqui veio o banho de água fria (em que pese a tentativa de ânimo da utopia do entrevistado): lembrei no ato do PNBL.

Gerson Carneiro

" Marx diz na 'Ideologia Alemã': as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis."

O exemplo mais pereptível é o celular.

Esse texto me deu uma revigorada porque estou meio fora disso. Meu celular é de 2005, praticamente só tem o botão de liga\desliga e as teclas de números (apagadas pelo uso); meu carro é um Uno/93, e não sinto a mínima vontade, e nem necessidade, de trocá-los. Estou feliz.

Gerson Carneiro

“Qualquer atividade que não seja estritamente técnica, acho que a clareza é necessária inclusive para pode divulgar a mensagem”

Considero que a clareza é necessária em tudo, da atividade mais “banal” à atividade estritamente técnica. A falta dela tanto pode estragar uma receita de bolo, quanto pode derrubar um avião.

mundim

A simplicidade e clareza do Prof. Antonio Candido é de uma beleza incrivel e prova de que temos grandes humanistas no Brasil. Fico orgulhoso e contente de saber que o socialismo que acredito é também o socialismo deste grande intelectual Brasileiro.

A juventude e humildade do pensamentodo Prof. Antonio Candido deveria servir como inspiracão aos nossos politicos, principalmente os que hoje estão militando nesta esquerda amiga do Mercado.

carlos saraiva

Mestre Antonio Candido, obrigado por essa obra prima. Essa entrevista devia ser disseminada, para servir de reflexão para todo militante de esquerda e para os que ainda acreditam no capitalismo e sua "humanização". Essa entrevista deve ser lida para os amantes da literatura. Enfim uma bela aula de um dos mais brilhantes "Intelectuais" brasileiros.

Gisela

Um bom jeito de caminhar para igualdade é modernizando nossa língua, cuja origem é machista mas nós temos a obrigação de melhorar isso. "A humanidade tem que caminhar para a igualdade" ou "Os seres humanos têm que caminhar para a igualdade" são frases mais legítimas. Como mulher, não me sinto incluída no substantivo "homem", apesar de ter aprendido desde pequena que é para eu me sentir sim. O inglês e outras línguas estão evoluindo nesse sentido, enquanto aqui muitos ainda resistam a essa evolução. Adaptar o português aos novos tempos e à valorização da mulher é uma questão de respeito e consideração, é mais fácil mudar algumas letras do que como nos sentimos com a "generalização" homem, tão insignificantes que nem merecemos ser mencionadas. Espero que o homem realmente caminhe para a igualdade, se tornando humanidade.

    Prouni

    Isso.
    Os baleios e os onços agradecem penhoradamente.

    Mariano

    As aves e as plantas também.

    Memória da nação

    A igualdade não parte da língua para a atitude, mas o contrário. O "politicamente correto" é apenas mais uma estratégia de rebanho, tão ao gosto da americanalha. Esse "condicionamento neurolinguístico" não me convence nem um pouco. Como pai de uma mulher, prefiro respeitá-la antes; a mudança linguística vem depois, naturalmente, na cambulha. Sugerir que Antonio Candido seja machista é ignorar completamente toda a sua história, é ficar pateticamente presa à forma, ignorar totalmente o conteúdo.

    Bruno

    Sério? Gente, que neura.

    Silvio I

    Gisela:
    Quem desvalorizou a mulher (esta sim a rainha da criação) foi o judaísmo e o cristianismo. Que partindo da cultura Greco-Romana que era matriarcal, a transformarão em patriarcal.Isto sem contar outras culturas, onde ate o dia de hoje, a mulher está a altura de um carpete.O uso do termo homem, e para nomear a espécie humana,não tendo nada que ver aqui o machismo.Apenas que temos palavras masculinas e femininas por exemplo as baleias e feminino, ai se agrega baleia macho, o baleia fêmea.Quero que saibas que a mulher e muito mais importante que u homem.Ela e a responsável por a continuidade da espécie.U homem como todos os machos, na natureza, a função de eles sô e a de fecundar a fêmea.U homem em este patriarcado, acredita porque o ficarão acreditar que ele e importante.E aqui são muito culpadas as mulheres mães.

    Mariano

    Nunca li tanta bobagem junta. A cultura greco-romana não tinha nada de matriarcal, pelo contrário, o poder era quase integral do "pater familia" (http://pt.wikipedia.org/wiki/Pater_familias). Os ritos religiosos se baseavam no culto aos antepassados (leia "A Cidade Antiga", de Fustel de Colanges), era comandado pelo pater familia e era apenas assistido pelas mulheres, que observava o culto dos pais, quando solteiras, e do marido, quando casadas.

    Silvio I

    Mariano :
    Você me pode informa quem eram as deusas na mitologia grega e romana. Si mal não lembro a deusa da sabedoria por exemplo, deixo de ser deusa, no judaísmo passou a ter o nome de Logos(macho)

    Mariano

    Os romanos tinham uma religião oficial, politeísta, mas praticavam verdadeiramente a particular, que era o culto aos antepassados. Cheque na net, há milhares de referências.

    Mariano

    Meu amigo, o Judaísmo é uma religião MONOTEÍSTA. Logos não é Deus, mas significa, em grego, o Verbo, ou a Palavra. Esses termos são associados a Jesus, no Cristianismo. Você está misturando tudo e errando para tudo quanto é lado.

    Quanto às deusas, a Grécia antiga tinha uma religião oficial, do estado, politeísta. e uma privada, que era o culto aos antepassados. Pesquise no google para ter certeza antes de fazer afirmações sem pé nem cabeça sobre temas que você desconhece totalmente, pelo jeito.

    operantelivre

    Uma boa maneira de sentirmo-nos iguais é respeitando as diferenças inevitáveis e diminuindo as diferenças que são desiguais. Isto tem um jeito prático de se fazer antes que seja sentido por nós. Ou seja, o fazer pode preceder a sensação de igualdade. Dizendo mais claramente, é buscando conviver com quem respeita minhas diferenças que posso me sentir cada dia menos desigual. Como homem procuro conviver em ambientes e com pessoas que me respeitam como tal, mesmo que seja comporto só por mulheres. E eu, eu procuro respeitá-los no seu modo de viver.

    Penso que é menos importante o nome que se dá ao ser, se homem ou mulher, e o mais importante é, repetindo o A Cândido, a Doutrina, a doutrina da igualdade.

    Com todo respeito à sua forma de sentir, pode ser interessante mudar as pessoas com quem convive por um tempo, até que sinta que ser homem ou mulher, ter a palavra no masculino ou no feminino, está subordinado à doutrina da redução das desigualdades e respeito às diferenças. Se não se sente bem numa sociedade "machista" não pelas palavras e sim pelo meio em que vive. Ajude a diminuir a desigualdade sem anular as diferenças. Sei que é clichê, óbvio. mas às vezes, óbvio, por ser óbvio pode parecer inúutil.

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