Jornal Nacional, Ato 2: Quando a Globo ficou em busca do candidato de “centro”
Tempo de leitura: 6 minATO 2: CRIMINALIZAÇÃO DA POLÍTICA – ELIMINAÇÃO DOS POLOS
por Ângela Carrato e Eliara Santana*, especial para o Viomundo
CONTEXTO
Ao longo do mês de maio, com vários eventos importantes no cenário político-econômico-social, a cobertura do JN sofreu também mudanças expressivas que indicam tomadas de posição e reação frente a uma conjuntura adversa para o bloco da direita naquele momento, que pode ser resumida em dois pontos:
a) Lula não para de crescer e ameaça (segundo pesquisa Vox) levar no primeiro turno;
b) A direita não tem candidato.
Observando-se um padrão geral da cobertura, temos:
A) Pulverização de temas e abordagens — cada vez isso é mais frequente, numa dinâmica que chega a ser meio frenética, pois não há tempo de digerir o que é apresentado.
B) Fechamento com a voz da Justiça — o STF como fiador de uma ordem desejada.
C) Emoção nos relatos — principalmente nas histórias dos jogadores e na exploração das tragédias, a emoção no discurso — que interpela o espectador e pode causar compaixão, solidariedade — vem sendo cada vez mais utilizada.
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D) Há cortes abruptos de temas/notícias para outros, quebrando a sequência de logicidade e amadurecimento na recepção das notícias.
E) Pelo encadeamento e enquadramento dos temas em destaque, fecha-se uma percepção de que o Brasil está vivendo uma situação de desordem.
F) A economia como grande tema não faz mais parte do JN — há assuntos periféricos da área econômica, como a crise do diesel etc., mas nenhuma abordagem sobre crise (cabe até um comparativo estruturado com 2014/2015, quando havia um exagero de menção à crise econômica, quando ela não existia).
A CONSTRUÇÃO DAS CENAS
Como no discurso de informação uma narrativa é construída temporalmente pelo conjunto das notícias (que não são aleatórias ou totalmente fragmentadas ou ainda isoladas) que enfocam reiteradamente um mesmo tema, o cenário trazido pela cobertura da pesquisa não se dá apenas por um conjunto de relatos de dados que teoricamente reportariam uma realidade.
É necessário, portanto, analisar os movimentos da produção de sentidos nas notícias para observar a construção discursiva analisando as estratégias em cada momento e como esses movimentos vão formar um todo com sentido.
Pois bem, analisando esses momentos, há dois movimentos discursivos fortes em curso na cobertura que estão se cristalizando como tendência e fazem parte de uma estratégia mais ampla, como sintetizamos a seguir:
LULA X BOLSONARO
(Silenciamento) (Desconstrução do personagem)
O cenário das eleições traz dois candidatos que polarizam grande parte do eleitorado e estão na dianteira em relação aos demais: Lula e Bolsonaro, sendo que Lula, preso em Curitiba, tem quase o dobro do segundo.
Em relação à materialização das notícias no direcionamento dos sentidos do discurso, há duas estratégias evidentes que estão marcando o enquadramento da cobertura da imprensa corporativa em relação a esses dois atores das eleições.
Com Lula, opera-se o silenciamento (como já dito); com Bolsonaro, a desconstrução.
É preciso, portanto, percorrer esses caminhos de produção de sentido na narrativa para compreender como essas estratégias são desenvolvidas para interpelar o espectador e como elas se ligam num movimento mais amplo.
A desconstrução de Bolsonaro (naquele momento) começa efetivamente com a greve dos caminhoneiros, que paralisou parcialmente o Brasil no mês de maio e contou, num primeiro momento, com certa benevolência da cobertura:
a) Nos primeiros dias, há um acontecimento (quase no âmbito de algo não controlável) que traz prejuízos e tem atores em seu centro, que são os caminhoneiros que reclamam do preço do diesel.
Não se aponta diretamente a responsabilidade do governo, e os caminhoneiros não são tratados como outros grevistas.
Nesse primeiro momento, há disponibilidade de ambas as partes para a negociação em prol do Brasil.
O governo chama as lideranças (sempre nominadas assim, nunca como grevistas) e consegue fechar um acordo bom para todos.
b) No meio do processo, há impasse, não há acordo, e o JN mostra em parte que grupos de caminhoneiros não aceitaram os termos e querem mais.
Mostra também a suspeita de um locaute. Carrega um pouco mais a crítica ao governo, mostrando inclusive que ele foi avisado da insatisfação da categoria.
Segue mostrando, em todo o país, o desabastecimento. Nesse momento surge um ator mais expressivo, o governador de SP, que se presta a negociar com ambas as partes.
Há muito tempo dedicado a ele. Os ministros do governo também são fontes e aparecem dando sua versão sem que haja contraponto a eles — de outras fontes.
c) Num terceiro momento, inaugurado no dia 28 de maio, já há uma clara mudança no enquadramento desse acontecimento.
Surge um novo ator, e um novo campo de sentidos: há “infiltrados” no movimento, o que é denunciado tanto pelo governo quanto pelas lideranças dos caminhoneiros.
Ou seja, surge um sujeito-agente, um culpado pela situação que se agrava.
O tom da cobertura é de que havia, no governo, a expectativa de resolver a crise com o atendimento das reivindicações dos caminhoneiros. Mas isso é quebrado por esse novo ator.
Há outras vozes que emergem — vozes de economistas, portanto, de autoridade. É mostrada a fala de Temer, o pronunciamento, e o panelaço que se seguiu, mas num enquadre de um evento relativamente esperado e não tão expressivo.
Campos de sentidos que se estabelecem: há grupos distintos de caminhoneiros (os que lutam por melhores condições vs. os manifestantes – campos de sentidos CAMINHONEIROS VS. MANIFESTANTES).
Há nitidamente também, nesse corte, o direcionamento para a percepção de que o governo fez tudo o que foi pedido para acabar com a crise, mas não conseguiu por culpa desses novos atores.
A associação — ABCAM — é trazida como fonte para enquadrar os manifestantes, e o ministro da Casa Civil aparece para dizer que as lideranças são difusas.
A matéria mostra “rachas” no movimento e questiona a postura dos “manifestantes”.
Ganha corpo a tese do “infiltrado” — esse novo ator, que tem lado, viés político e ideológico, não está se mobilizando pelo bem do Brasil, mas por uma questão partidária.
Depois disso, a cena enunciativa para mostrar o caos e os prejuízos é bem formatada.
O que se mostra é bastante específico e contundente: crise em hospitais — pessoas podem morrer; pessoas que trabalham por conta própria e precisam de carro; pessoas mais pobres que precisam trabalhar e não têm como se deslocar; perigo da morte de animais — ministro alerta para isso; comida que acaba.
A diretriz do Jornal Nacional é bem delineada pela chamada “Ataques à democracia durante greve causam repulsa em todos os setores”, no dia 28/05 (que terá repercussão na edição do dia seguinte dos jornais impressos, 29/05).
O evento está ali bem enquadrado pela expressão “ataques à democracia” — é esse o cenário, e a ideia de democracia se coloca e passa a ser defendida.
Ou seja, esse ato não é aceito pelo conjunto da sociedade, pelo país, o que é expresso pelos termos “repulsa” (bem marcado, não se trata apenas de simples rejeição, é algo mais enfático) e “todos os setores”.
Circunscreve também esses episódios a grupos bem restritos — a ideia de intervenção não está disseminada na sociedade, ela é localizada, apenas presente em alguns grupos.
Tal comportamento e o ineditismo da cobertura suscitam indagações:
*Por que somente agora os pedidos de intervenção militar parecem incomodar tanto?
*Por que nas manifestações pelo impeachment de Dilma Roussef — quando havia inúmeros e reiterados pedidos nesse sentido, de vários agrupamentos –, isso nunca foi motivo de preocupação ou sequer foi denunciado e destacado pelo Jornal Nacional?
Por que somente naquele momento (quando a greve parece beneficiar uma determinada candidatura) o JN se manifesta contra a ditadura militar?
Por fim, no Brasil do JN, parece que não haverá eleição, pois o tema não aparece no noticiário.
É um tema periférico, e assim permanecerá por muito tempo. É preciso, antes de tudo, eliminar os polos para que se garanta a ascensão de um candidato mais “palatável”.
Nesse cenário — de eliminação dos polos, criminalização da política como terreno da corrupção –, ganha destaque o quadro “O Brasil que você quer”, que passa a cumprir um papel fundamental, o de delinear o Brasil sem conflitos, um novo Brasil.
QUADRO “O BRASIL QUE VOCÊ QUER”
*As pessoas estão se vendo representadas: há uma profusão de vídeos de localidades muito afastadas e esquecidas do Norte e Nordeste, pobres e negros
*O tema geral dos vídeos parece ser uma resposta ao tema principal do JN — é quase sempre casado.
*Também está trazendo à cena pautas e representantes de minorias (homossexuais, meio ambiente, diversidade cultura).
*O povo está se vendo representado, levando seus problemas — que nenhum político escuta ou quer escutar.
É importante observar, por outro lado, que o telespectador do JN não tem acesso aos dados sobre o número de pessoas que enviaram vídeos para este quadro e, muito menos, sobre o teor de todos os vídeos recebidos.
Algo como acontece com as sessões “Cartas do Leitor”, em que o apoio à linha editorial da publicação sempre prevalece.
*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
*Eliara Santana, também jornalista, doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.
Jornal Nacional, Ato 1: A cena do avião e o “sumiço” de Lula
Jornal Nacional, Ato 3: Lula escondido e o tiro na água com Huck
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