Cochise César: Romper ‘pacto dos governadores’ que sufoca o Brasil exige organização local à esquerda

Tempo de leitura: 6 min

Os acertos de bastidores, por cima, são a grande marca da política brasileira, como a que permitiu a “transição” de Sarney da ditadura ao governo Temer, passando pelo Planalto

Os golpes dos congressos conservadores em presidentes progressistas

por Cochise César*

Há vários padrões no sistema político brasileiro e um deles é o conservadorismo dos parlamentares.

Ao mesmo tempo a presidência, muitas vezes, foi mais avançada que o congresso.

Nos períodos democráticos isso quer dizer que o mesmo eleitor que votou em deputados e senadores conservadores, votou em presidentes progressistas.

Essa contradição é algo realmente singular.

Um pouco de história

O governo central sempre teve dificuldade em controlar o que ocorre país afora, e isto desde a colonização.

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O problema não é só por conta do tamanho do país, mas pelo grande poder dos líderes locais.

As capitanias hereditárias, com que a colonização começou, garantiam uma autonomia espetacular para seus donos.

Mesmo depois que estas lentamente se desfizeram, autoridades locais tinham controle sobre política e a violência.

“Homens bons”, como eram chamados os brancos, proprietários de terra e pessoas escravizadas, controlavam as milícias e ordenanças, que mantinham a ordem na colônia.

Essas tropas não eram do estado, mas particulares, apesar de agirem para o bem comum – dos “homens bons”, que fique claro.

O controle da violência sempre esteve junto com o poder político, que eles exerciam nas câmaras onde, claro, apenas “homens bons” podiam participar.

Essa estrutura evoluiu com os séculos até chegar à Guarda Nacional, durante o Império.

Latifundiários compravam a patente de coronel da guarda nacional para poder ter suas tropas, que usavam para manter seu controle sobre a população, inclusive sobre com ela votava.

Esses coronéis, que tem origem nos latifundiários da colônia, formam as oligarquias regionais cujos interesses modelam a república.

Política dos Governadores: o grande pacto que herdamos

Os primeiros anos da república foram bastante instáveis.

O impulso reformador dos primeiros republicanos enfrentavam resistência nas oligarquias regionais e na própria população, profundamente contrária a medidas como a laicização do estado.

A estabilidade política surgiu a partir de um “grande acordo nacional” chamado de Política dos Governadores, de certo modo existe até hoje e explica nossa contradição entre presidência progressista e congresso conservador.

A Política dos Governadores é simples e pragmática.

O governo central apoia as oligarquias locais a se perpetuar no poder, e essas oligarquias apoiam o governo central.

Nenhuma discussão ideológica e programática, apenas o apoio mútuo para permanecer no poder.

Essa política permitiu a estabilidade da República Velha, mas permitiu também que as oligarquias regionais, que estavam no poder desde a colônia e ao longo do império, permanecessem mais essa fase sem largar o osso.

Essa oligarquia, que nasce da propriedade de terra, forma uma classe no Brasil que é extremamente conservadora.

Mesmo quando sua atividade econômica muda, viram industriais, barões da mídia ou agro empresários, são a elite política e econômica há gerações no poder, que se sustenta em relações clientelares.

Apesar de termos tido uma mudança razoável na atividade econômica dessas oligarquias e em quais famílias estão na política, a permanência da mesma classe no poder é inegável.

O “centrão”, a “geleia geral” o “peemedebismo”, são conceitos que mobilizamos para entender esse acordo de apoio mútuo mais fisiológico que ideológico, que nada mais é que a sobrevivência da Política dos Governadores de Campos Sales.

A ideia que a Política dos Governadores se tornou uma estrutura básica do cenário político nacional consegue explicar fenômenos como o apoio do PT ao clã Sarney e a migração de deputados de direita para partidos da base petista.

O peemedebismo é certeiro ao apontar o conservadorismo dessa classe.

Sua agenda é negativa: um conjunto de vetos, e não um conjunto de propostas.

O fato dela ter se enraizado em suas regiões através de suas relações clientelares e do apoio fisiológico ao governo central levou os setores progressistas a assumirem como estratégia a reforma centralizadora.

A reforma pelo centro

A partir de seu golpe em 1930, Vargas conseguiu impor ao país diversas reformas.

Essas reformas estabeleceram um padrão que governos progressistas seguintes adotaram: a centralização.

O governo federal aumentou seu poder em todos os ciclos políticos, em algum sentido, progressistas.

Essa estratégia se tornou necessária porque o sistema político está estruturado em torno de manter as oligarquias conservadoras no poder regional, então é preciso dar ao poder central capacidade para realizar as políticas transformadoras ou de obrigar os mandatários locais a as realizar.

A centralização progressista é uma constante em nossa história política, do INAMPS ao SUS e outros sistemas, como o SUAS, de assistência social, as detalhadas leis federais sobre meio ambiente, os inúmeros “termos de referência” que definem como os serviços públicos estaduais e municipais devem funcionar e vários outros exemplos.

Não é sem motivo que muitos prefeitos reclamam de estarem cada vez mais se tornando gestores de programas federais e menos chefes de um poder autônomo.

Um exemplo de como desconfiamos dos governos locais é a reformulação do o Código Florestal em 2012.

O movimento ambientalista fez campanha contra várias regras nacionais serem revogadas para cada estado construir seu Zoneamento Econômico Ecológico, porque esses governos seriam mais vulneráveis às pressões do agronegócio.

Administração em vez de política

Um dos problemas dessa estratégia de reforma centralizada, é que se os parlamentares são os representantes do poder local, e esse poder é conservador, é impossível criar leis realmente progressistas.

Por isso, começamos a usar normas como resoluções de conselhos, portarias de ministérios e outras no lugar das leis que não conseguiríamos aprovar.

No caso do Código Florestal, as regras revogadas eram resoluções do CONAMA, conselho Nacional de Meio Ambiente.

O congresso derrubou essas resoluções e aprovou o Zoneamento Econômico Ecológico feito pelos estados.

Mas o maior problema não é a fragilidade dessas decisões, que podem ser derrubadas por políticos conservadores, mas a possibilidade de fazer reformas sem a política.

Mesmo com todas as suas distorções, em algum sentido, o congresso representa a opinião da sociedade.

Contornar o congresso para aprovar medidas que não passariam nele é contornar a democracia, em vez de construir apoio político e social para as mudanças.

Um exemplo de reforma sem base social foi a proibição da propaganda em programas infantis pelo CONANDA, Conselho Nacional dos Direitos da Crianças e do Adolescentes.

A maior parte da população tomou conhecimento da discussão sobre a publicidade infantil depois da resolução aprovada.

O avanço da sociedade não pode ser construído à revelia da população e do debate político com ela.

Então, a estratégia de um governo progressista evitar o conflito político com as oligarquias locais e tem dois problemas centrais: a fragilidade de suas conquistas e o fato que evitar a discussão política não combate o conservadorismo popular.

Os limites da Política dos Governadores

Há várias coisas que se pode dizer sobre a Era Vargas, mas não que ela foi estável ou democrática.

Tivemos mais de um golpe, conchavos de gabinete e a guerra civil paulista de 32, mostrando que ele sofreu uma oposição incessante.

Essa oposição nasceu do fato que Vargas orquestrou o que provavelmente foi a maior perda de poder das oligarquias rurais, ao abrir espaço para as classes urbanas na política.

Apesar de se eleger “nos braços do povo”, não conseguiu maioria no congresso, assim como Jango, Lula e Dilma.

Há um delicado equilíbrio nesse grande acordo, um equilíbrio que poucos presidentes conseguiram manter, e quando esse equilíbrio se perde o presidente cai.

O primeiro limite é fisiológico. O acordo prevê um presidente forte que possa oferecer apoio em troca de apoio.

Caso o poder central não tenha algo a oferecer, ele é trocado, como foi com Collor, um legítimo representante das oligarquias regionais.

Apesar das escandalosas negociações em torno de emendas parlamentares, o negócio central é em capital político.

Apoiar um governo impopular é um custo.

O segundo limite é ideológico.

Apesar de se adaptar ao governo central, seja qual for, o poder local é conservador e vai exigir mais de governos que defendam pautas progressistas.

Caso que se repetiu com Vargas, Jango e Dilma.

Caso esse governo tenha projetos que ameaçam a própria estrutura de privilégios do poder local, como Jango ao propor a reforma agrária, não há pagamento que dê conta.

O governo central representa um risco existencial para o poder local.

Só que democratizar a política, reduzindo radicalmente o poder dessas oligarquias regionais, é necessário para uma sociedade justa.

É preciso fortalecer o campo progressista localmente, e criar uma base de sustentação orgânica, em vez de depender do apoio de ocasião de lideranças conservadoras.

*Cochise César é historiador, dirigente do PCdoB em Divinópolis – MG, no qual mantém o projeto Comunismo Online.

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