Margarida Lacombe: Conceito de “propriedade atribuída”, inventado por Moro, simboliza 300 anos de regressão

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Juristas pela Democracia prometem enfrentar “restauração antidemocrática” que golpeou o Brasil

por Katarina Peixoto, de Porto Alegre, especial para o Viomundo, com fotos de Ireno Jardim

No começo da noite de 22 de janeiro, o auditório da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Instituições Financeiras do Rio Grande do Sul, a Fetrafi, lotou, de novo e, rapidamente.

Filas do lado de fora, calor e uma epifania.

Com o auditório lotado, Ana de Hollanda abriu as atividades cantando, com sua voz impressionante, todos calaram, diante da música de Chico para o poema de Cecília, que começa assim: “Toda vez que um justo grita/Um carrasco o vem calar/Quem não presta fica vivo/Quem é bom, mandam matar/Quem não presta fica vivo/Quem é bom, mandam matar”.

Enquanto ela cantava, o silêncio ao redor crescia.

Era como se estivéssemos nos juntando para um acontecimento solene, uma espécie de preparação.

Foram três horas de intervenções, aplausos e poucas palavras de ordem dos intelectuais e juristas.

O que os ocupou foi uma afirmação de compromisso e de esclarecimento.

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Em um palco com quase trinta pessoas, Eleonora de Lucena, jornalista experiente e reconhecida pela seriedade, pegou a palavra, em nome do Projeto Brasil Nação, iniciativa de Bresser-Pereira, que conta, também, com Celso Amorim.

“O Brasil está sob ataque. E o Pré-Sal é central no ataque que estamos vivendo”, afirmou.

Em seguida, Lucena lembrou de sua infância em Porto Alegre, no centro da capital, quando a sua mãe a fez ir para baixo da mesa da sala, naquele dia, em 61, porque havia o risco de um ataque aéreo ao Palácio Piratini.

“Eu lembro que foi o povo, nas ruas, que deteve o golpe, ali”.

Marcelo Lavenère, a dizer que os interesses golpistas “têm os bolsos e a cabeça fora do país”, Paulo Sérgio Pinheiro, via mensagem, a diagnosticar “o monumento à inação intelectual” em que consiste a sentença do juiz de primeira instância de Curitiba e, mais uma vez, Celso Amorim.

“Quem viver, verá”, disse o escritor Raduan Nassar, em mensagem lida na mesa, por Lucena.

É muito difícil traduzir à altura o que se está vivendo aqui, nestes dias.

Tudo é intenso, e gerações que se destacaram em diferentes momentos decisivos estão presentes. E são muitos.

“O conceito básico de democracia quem nos legou foi Rousseau, e está no conceito de soberania popular”, disse Amorim, para questionar: “como é que um sujeito pode ter a arrogância de, com base em falácias, querer tirar isso do Brasil?”

Em seguida, José Carlos Moreira Filho anunciou, com base na experiência recente de resistência de juristas ao processo golpista de 2016, a criação da Associação de Juristas pela Democracia.

E Margarida Lacombe, professora de direito constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (foto abaixo), deu uma breve e esclarecedora aula, sobre a gravidade do momento.

Ela começou apontando o risco do casuísmo apresentado na sentença “extremamente criativa” de Sérgio Moro, que inventou dois elementos alheios ao sistema de direito positivo brasileiro: o “ato de ofício indeterminado” e o “conceito de propriedade atribuída”.

Atos de ofício são atos administrativos que, por definição, no direito público brasileiro, requerem fundamentação legal.

A indeterminação, portanto, não pode ser algo mais estranho a um ato administrativo.

E o risco acarretado pela introdução desse tipo de ato no serviço público é nada menos que o da introdução do arbítrio persecutório, no âmbito da administração pública.

Se algum servidor ou alguma servidora, no exercício da sua função, for acusado de um “ato de ofício indeterminado”, quer dizer, de um ato praticado na condição de servidor, simplesmente, segue-se, por isso, a sua imputabilidade?

A lei brasileira não dá guarida a essa construção, alertou Lacombe.

Que acrescentou, a respeito da outra invenção do juiz de primeira instância de Curitiba: “como é que a gente vai ver esse tipos ‘legais’ novos, sobre nós? O direito é um sistema de garantias, o objetivo precípuo do direito é garantir, não punir”.

Para a professora, estamos vivendo 300 anos de regressão, desde que o Habeas Corpus Act, na Inglaterra, foi introduzido no sistema legal, para disciplinar o encarceramento, limitando o poder do Estado sobre os indivíduos acusados de delitos.

A racionalidade foi também o tom do professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Tomás Bustamante, que acusou a Operação Lava Jato de praticar uma “racionalidade alternativa” ao direito positivo.

Uma racionalidade que jogou para fora da moralidade e, pior, da vida cívica, que a combate e resiste às suas práticas de exceção.

“Quem critica a operação é tomado como corrupto, cúmplice com a corrupção ou criminoso de lesa pátria”, um expediente estranho a um processo judicial, embora muito comum em contextos autoritários, afirmou.

“Onde há provas, há certeza. Havendo dúvida, a absolvição se impõe”, disse a professora de direito penal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Vanessa Chiari, na sua intervenção, para defender a resistência ampla ao “autoritarismo que insiste em se infiltrar em nossas instituições democráticas”.

O professor português e membro do Partido Comunista de Portugal, Antônio Avelãs Nunes, tomou o microfone para explicar, em tom pedagógico, o “culpado” pelo golpe no Brasil.

Olhou para Celso Amorim, com quem dividia o palco, e disse, jocosa, mas seriamente, que ele assumisse a sua responsabilidade no episódio, arrancando aplausos e risos do auditório lotado.

[Nota do Viomundo: Amorim, como se sabe, liderou a política externa independente de Lula, que impediu, por exemplo, a expansão da ALCA pela América do Sul, um desejo ardente dos Estados Unidos]

E continou: “A cara de Lula não engana ninguém. Ele é a cara do povo brasileiro. Esse presidente operário, que representa os interesses do povo brasileiro em todo o mundo”.

E convocou a resistência para as ruas e a “luta de massas”, sem a qual, disse o professor português, não há democracia.

“A Constituição não substitui a vida, não substitui a luta de classes”, como disse o Celso, “ou fica a pátria livre ou morres pelo Brasil”.

O tom de seriedade do ato ficou com o professor de direito penal da Universiade Federal do Paraná (UFPR), Jacson Zilio, que se disse muito pessimista.

Recusando as palavras de ordem e confessando o seu pessimismo, denunciou o desmoronamento do estado de direito no Brasil e o clima persecutório que vem tomando conta de setores da administração do estado.

“Há um uso político descarado do direito penal. E agora, o problema desse uso é de outra ordem (não estamos apenas vivendo a experiência de reprodução da barbárie contra os desvalidos e vítimas do nosso racismo): é partidário. É preciso resistir ao estado de polícia no Brasil”, denunciou.

A partir de quarta-feira, dia 24, é possível que a luta política e a guerra judicial se intensifiquem.

Faz sentido esperar por aberrações jurisprudenciais que configurarão um efeito dominó de desmoronamento de garantias e da idoneidade do processo penal, no âmbito judicial.

A “restauração antidemocrática”, expressão do jurista Luigi Ferrajoli, em mensagem de solidariedade lida no ato, permite traçar uma linha de inteligibilidade que vai do afastamento ilegal da presidenta Dilma, em 2016, ao banimento da candidatura de Lula, em 2018.

É essa “restauração” que precisa ser enfrentada, portanto.

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