Jessé Souza: Rentistas precisam desmoralizar a política para acabar com a soberania popular
Tempo de leitura: 6 minCharge do Outras Palavras
Jessé Souza, CartaCapital, via Conversa Afiada
A sociedade brasileira foi vítima, a partir de 2013, de um dos ataques mais insidiosos e virulentos do capitalismo financeiro internacional.
O ataque teve um sentido duplo: quebrar a nascente experiência dos BRICS, enquanto tentativa de inserção internacional autônoma do país, e transformar o orçamento público via dívida pública – gigantesca fraude de socialização de prejuízos e privatização de lucros.
Além de transformar as riquezas nacionais em um espaço livre para a rapina econômica de uma ínfima elite.
Como as outras frações dos proprietários, como o agronegócio ou a indústria, retiram seu lucro maior, crescentemente, também da fraude financeira, a fração financeira do capital passa a ter o comando do processo econômico e do processo político.
O capitalismo financeiro não é apenas uma nova ordem econômica mundial.
Ele não muda apenas a forma e a velocidade da acumulação do capital e a forma de controle do processo de trabalho.
Ele também criminaliza e estigmatiza a esfera política para que esta perca qualquer autonomia, e a agenda predatória financeira possa se impor sem qualquer restrição.
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E, acima de tudo, deseja evitar a mediação política como expressão de interesses das classes populares.
Daí a criminalização dos movimentos populares, o ataque aos sindicatos e a estigmatização dos partidos de esquerda.
Na dimensão simbólica o ataque foi planejado há décadas pela disseminação de “think tanks” conservadores no mundo todo e pela compra e cooptação da indústria cultural e da imprensa a nível mundial.
O núcleo duro da nova forma de poder é bifronte: o capital financeiro assalta a população e legaliza sua corrupção pela compra da Política e do Judiciário; e a grande imprensa frauda o público com a distorção sistemática da realidade.
Essa estratégia de manipular as mentes para assaltar o bolso dos imbecilizados já tinha sólida tradição no Brasil.
Como mostro no meu livro mais recente (“A elite do atraso”, Leya, 2017) a elite paulistana constrói a criminalização seletiva da política, contra Getúlio Vargas e seu projeto nacional, ao cooptar a elite intelectual e fundar a imprensa elitista e venal que hoje possuímos.
A ascensão de Vargas, com apoio da classe média “tenentista”, havia mostrado à elite a necessidade de controlar a heterodoxia rebelde da classe média letrada.
Se, em relação à classe trabalhadora e à “ralé” de marginalizados, a violência material e física era, e continua a ser, o tratamento “normal”, em relação à classe média a estratégia teria que ser outra.
Como a pequena elite precisa da classe média como aliada carnal no exercício diário da dominação econômica social e política, a classe média tem que ser seduzida e conquistada.
Daí a estratégia de convencimento e, não, de repressão.
Para “convencer” são necessárias ideias e uma imprensa elitista e venal para distribui-las.
Essa elite cria então a USP como um gigantesco “think tank” do liberalismo conservador brasileiro.
E faz dela a universidade de referência nacional, que forma os professores e estipula os critérios das outras universidades.
Assim, temos a formação de todas as elites nacionais segundo uma referência comum.
Essa referência nacional comum vão ser as ideias centrais de patrimonialismo e de populismo ambas criadas e difundidas na USP.
A primeira diz que a corrupção é só do Estado e da política para tornar invisível a corrupção do mercado, que se torna possível pela captura do Estado enfraquecido e criminalizado.
Depois, ainda diz que a elite do mal está no Estado, enquanto o mercado é um espaço idealizado só de virtudes como o empreendedorismo, a honestidade, o trabalho duro e a iniciativa individual.
Já o populismo serve para tornar as classes populares suspeitas de burrice inata e, portanto, presa fácil de líderes demagógicos e manipuladores.
Com isso, de uma penada, pode-se mitigar o princípio da soberania popular e tornar suspeita qualquer liderança popular.
São essas ideias, distribuídas desde então pela mídia venal todos os dias, que envenenam a capacidade de reflexão da população e da classe média.
Como se não bastasse, criou-se também uma narrativa histórica de longa duração, baseada nessa visão distorcida.
Ela possibilita uma singularidade “vira lata”, hoje patrimônio indissociável de todo brasileiro.
É que a corrupção dos tolos, só do Estado e da política, passa a ser percebida como herança portuguesa e agora ensinada não só nas universidades, mas, também a toda criança brasileira na escola.
O ridículo dessa crença que supõe existir no século XIV em Portugal noções que foram criadas no século XVIII, como a noção moderna de ”bem público”, que pressupõe a ideia de soberania popular, não parece ter incomodado ninguém.
O ponto decisivo, ao arrepio da verdade e da inteligência, é inverter o sentido da apropriação do público: passa a ser um atributo do Estado e da política, e, nunca, do mercado e da elite de proprietários.
Sem esclarecer essa pré-história, a conjuntura atual é incompreensível.
O golpe de 2016 é uma continuidade aprofundada e mais cruel dessa grande fraude brasileira que começa em 1930.
Todos os golpes de Estado desde então tiveram exatamente o mesmo roteiro.
No golpe recente não apenas se reverberou a mentira pronta de cem anos da corrupção dos tolos e do populismo.
Sob o comando da Rede Globo e da farsa da “Lava Jato” atacou-se também o próprio princípio da igualdade social como maior valor do Cristianismo e da cultura ocidental.
O ataque seletivo ao PT, entre 2013 e 2016, como “organização criminosa”, narrativa criada pela Rede Globo e depois assumida pela própria “lava a jato”, desnudando seu conluio midiático e elitista, é o principal elemento da conjuntura política atual.
Assim, além da criminalização da política e das lideranças populares, procurou-se criminalizar, também, a própria noção de “igualdade” como valor em si.
É que o PT, com todos os seus defeitos, foi a única verdadeira novidade da política brasileira nesses últimos cem anos.
Um partido que nasceu, em grande medida, de baixo para cima, uma espécie de confederação de movimentos sociais e associações de trabalhadores do campo e da cidade, e que procurou assegurar uma pequena parte da riqueza social e do orçamento público também para a maioria mais carente.
Ao criminalizar apenas o PT – enquanto nos outros partidos se “fulaniza” a corrupção – a mídia e a farsa da “lava jato” conseguiram rebaixar a própria demanda por igualdade, que o PT simbolizava para as classes populares.
Para onde vão o ressentimento e a raiva que os excluídos sentem pela exclusão injusta?
Sem expressão racional e política possível, a raiva e o ressentimento popular se transformam em massa informe de anseios, medos e desejos irracionais à procura de expressão.
Esse é o verdadeiro pano de fundo para as eleições de 2018.
Jair Bolsonaro como ameaça real só é compreensível pela ação conjunta do conluio grande mídia/Rede Globo e Lava Jato.
Por sua vez, a imunidade parcial de Lula é reflexo da inteligência prática das classes populares, que percebem a política como jogo dos ricos e corruptos, e querem saber unicamente o que sobra para eles no final.
E foi Lula quem entregou algo a quem nunca teve nada.
Apesar do sucesso pragmático inicial, o golpe perde legitimação a cada dia.
Seu planejamento míope e de curto prazo cobra agora alto preço dos que sujaram a mão pela elite do saque: a imprensa venal que arriscou seu capital de confiança; a casta jurídica que acobertou a Lava Jato e destruiu a segurança jurídica; e a política tradicional, que perdeu qualquer legitimidade.
Articuladores tão medíocres fizeram com que, pela primeira vez nestes cem anos de domínio material e simbólico da elite do saque, as entranhas do país real estejam à mostra como nunca dantes.
Tudo que era sólido se desfez no ar.
Todas as ideias que colonizavam a Direita e a Esquerda também.
As oportunidades abertas pelo fracasso na legitimação do golpe são revolucionárias.
Elas podem, efetivamente, permitir expor a crueldade do domínio de uma elite mesquinha e de seus prepostos hipócritas na mídia e no aparelho de Estado.
Abre-se a possibilidade objetiva de um processo de aprendizado histórico inédito no Brasil.
O problema real da oposição de “Esquerda” é que ela foi criada neste mesmo jogo e, ainda pior, nas mesmas ideias.
A Esquerda é tão miopemente moralista quanto a Direita.
Também não possui ideias próprias acerca do funcionamento da sociedade nem do Estado.
Daí ter perdido a narrativa da ascensão social, que ela mesma produziu, para as igrejas evangélicas.
Daí ter aparelhado e dado força às instituições de Estado que, depois, a perseguiram com sanha assassina.
Como em toda crise radical temos agora em 2018 tanto a possibilidade do caos quanto a oportunidade do novo.
O discurso da Esquerda não pode ser o da volta ao passado, mas o do aprendizado de um novo futuro.
O desafio é difícil mas incontornável.
*Sociólogo, foi presidente do IPEA e hoje dirige a Escola do Tribunal de Contas do Município de São Paulo
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Comentários
Luiz A A do Sacramento
Excelente , o diagnóstico do professor Jessé Souza. Partindo da premissa de que nada neste mundo acontece por acaso; já podemos vislumbrar os principais entraves que imobilizam , nosso país, não obstante , toda generosidade com que a natureza tão prodigamente nos privilegiou.
Mark Twain
“O ridículo dessa crença que supõe existir no século XIV em Portugal noções que foram criadas no século XVIII, como a noção moderna de ”bem público”, que pressupõe a ideia de soberania popular, não parece ter incomodado ninguém.”
Creio que este fato fica mascarado pela santa inquisição / santo ofício, importada pelos luso-espanhóis.
Consultar “A Muralha” livro de Diná Silveira de Queirós, que inclusive teve minissérie feita pela Globo, com Tarcísio Meira no papel de vilão / inquisidor mór. Manipulação subliminar?
Julio Silveira
Vamos falar sinceramente com o povo, a verdade é que no Brasil nunca houve esse negócio de soberania popular. A soberania popular sempre foi um argumento, um blefe propagandistico dos indutores culturais e economicos do estado, para facilitar o controle popular concedendo-lhes um pouco de auto estima baseada na propaganda.
Basta olhar a construção historica do país, que nunca se livrou das amarras culturais do imperio. Tendo construido sua estrutura instituicional com base na estrutura imperial herdada. Por isso tanta distinção entre as diversas cortes instituidas, constituidas não para servirem ao povo e ao país, mas, como nas cortes absolutistas, para se servirem do país e do povo por conseguinte. Por isso tantos golpes sempre que a cidadania popular começa a tomar gosto pela tal soberania popular, quando a democracia começa a dar ao povo essas ambições de, ela propria, definir seus designios apostando naqueles que buscam aprofundar sua soberania. Ah! Que se entender, nem tudo que reluz é ouro, assim como nem tudo que é nacional do Brasil é brasileiro, ou nem todos que se passam por povo podem ser considerados, ou mesmo se consideram, populares.
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