Por Marco Aurélio Mello
por Marco Aurélio Mello
Foi o irmão mais velho quem partiu em busca daquela que, segundo as notícias, era a filha bastarda do capitão.
Teria exagerado o portador?
Ou de fato a criança havia sido abandonada pela mãe e passava por privações?
Viajar para o Sul naquele tempo não era tarefa fácil.
As estradas, de mão dupla, ficavam esburacadas na estação chuvosa.
E dirigir à noite então era uma loteria: animais na pista, curvas sem sinalização, motoristas alcoolizados…
Depois de uma viagem em que só parou para abastecer, tomar café e comprar cigarros finalmente o irmão franzino, elegante em corte inglês, chegou.
Num casebre caiado da zona rural, com um único bico de luz, porta e janela azuis, lá estava ela.
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A menina tinha olhos enormes, como duas jabuticabas, e espreitava com desconfiança.
Ela não falava palavra, não pedia e não chorava.
Tinha a revolta típica da solidão temperada de fome.
Capturada à força se debateu até que, exausta, desistiu de resistir.
Foi lançada no enorme banco de couro contínuo detrás do automóvel onde adormeceu.
Sobre o corpo magro e desnutrido foi lançado um sobretudo de lã.
Quando despertou amanhecia.
O carro seguia em alta velocidade a caminho de algum lugar.
Era o caminho de volta?
Era um novo caminho?
Era um caminho qualquer?
O que importa?
Num pacote pardo dois pães de forma comprimiam uma fatia de queijo amarelado.
Ela comeu com voracidade e voltou a dormir.
Quando a viagem terminou ela estava diante de dois meio-irmãos e três meia-irmãs.
Foi recebida com carinho e entusiasmo.
Primeiro, ganhou um banho e roupas limpas.
E dali em diante nunca mais ficou só.
Demorou meses até voltar a falar.
Algo em sua memória de traumas e faltas tinha apagado muitos dos registros.
Ela só sabia que se chamava Maria de Jesus.
E que veio ao mundo numa noite de Natal.
Marco Aurélio Mello
Jornalista, radialista e escritor.
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