Wallerstein: A grande manobra diversionista na Líbia

Tempo de leitura: 5 min

O conflito líbio deste último mês, olhado em sua totalidade – a guerra civil na Líbia, a ação militar contra Kadafi liderada pelos EUA -, não tem a ver com questões humanitárias nem tampouco com o fornecimento mundial de petróleo na atualidade. O que de fato está acontecendo é uma grande manobra diversionista, incentivada pelos sauditas, que tem como objetivo deixar na penumbra a principal batalha política que está ocorrendo na região: uma série de revoltas que afetam a Arábia Saudita, os países do Golfo e o mundo árabe em seu conjunto. O artigo é de Immanuel Wallerstein.

por Immanuel Wallerstein, em Znet, via Carta Maior

O conflito líbio deste último mês, olhado em sua totalidade – a guerra civil na Líbia, a ação militar contra Kadafi liderada pelos EUA -, não tem a ver com questões humanitárias nem tampouco com o fornecimento mundial de petróleo na atualidade. O que de fato está acontecendo é uma grande manobra diversionista – uma distração deliberada – que tem como objetivo deixar na penumbra a principal batalha política que está ocorrendo no mundo árabe. Há algo em torno do que tanto Kadafi como os líderes ocidentais, independentemente de sues pontos de vista políticos, estão totalmente de acordo. Todos querem desacelerar, canalizar, cooptar, limitar a segunda onda revolucionária árabe e evitar que mudem as realidades políticas fundamentais do mundo árabe e seu papel atual no teatro geopolítico do sistema-mundo.

Para ter isso claro, é preciso seguir a sequência cronológica dos acontecimentos. Ainda que os rumores políticos nos Estados árabes e as tentativas por parte de diversas forças externas de apoiar uns ou outros elementos dentro de certos Estados venham de longo tempo, o suicídio de Mohamed Bouazizi, no dia 17 de dezembro de 2010, marcou o início de um processo bem diferente.

Na minha opinião, este processo é a continuação do espírito da revolução mundial de 1968. Em 1968, do mesmo modo que vem ocorrendo no mundo árabe nestes últimos meses o grupo que teve o valor e a vontade para iniciar os protestos contra os poderes estabelecidos foi o dos jovens. Eles eram motivados por várias cosias: a arbitrariedade, a crueldade, a corrupção dos que estão no poder, sua empobrecida situação econômica e, sobretudo, a busca de seu direito moral e político de serem os atores principais de seu próprio destino cultural e político. Além disso, eles protestaram contra a estrutura geral do sistema-mundo e contra o modo pelo qual seus líderes tinham se curvado às pressões externas das grandes potências.

Estes jovens não estavam organizados, ao menos no princípio. E nem sempre foram completamente conscientes de seu entorno político. Mas introduziram valor nele. E, como em 1968, suas ações tiveram um efeito contagiante. Em muito pouco tempo ameaçaram a ordem estabelecida de quase todos os países árabes independentemente de critérios de política externa. Quando mostraram sua força no Egito, ainda o principal país árabe, todo o mundo começou a levá-los a sério. Há duas maneiras de levar estas revoltas a sério: uma é unir-se a elas e tentar controlá-las desde dentro; a outra é tomar as medidas que sejam necessárias para sufocá-las. As duas coisas foram tentadas.

Três grupos se uniram aos protestos, como observa Samir Amin em sua análise sobre o Egito: a ressuscitada esquerda tradicional, os profissionais de classe média e os islamistas. A força e o caráter destes grupos variaram dependendo do país. Amin considera a esquerda e a classe média profissional (na medida em que são nacionalistas e não neoliberais transnacionais) como elementos positivos, e os islamistas, os últimos a subirem no trem, como elementos negativos. E depois ainda temos o exército, bastião permanente da ordem, que se uniu à revolta no último momento, precisamente para limitar seus efeitos.

Assim, quando iniciou o levante na Líbia, ele foi consequência direta do êxito das revoltas nos países vizinhos, Tunísia e Egito. Kadafi é um líder particularmente desapiedado e fez declarações terríveis sobre o que ia fazer com os “traidores”. Se desde cedo se ouviram vozes na França, Inglaterra e nos Estados Unidos defendendo uma intervenção militar, não era porque Kadafi fosse um anti-imperialista infiltrado. Ele vendeu o petróleo líbio para o Ocidente por um bom dinheiro e se jactava de ter ajudado a Itália a conter a maré da imigração ilegal. Além disso, possibilitou acordos lucrativos para as empresas ocidentais.

No campo dos partidários da intervenção podiam se ver dois tipos de atitudes: aqueles para quem todas as intervenções militares do Ocidente são irresistíveis, e os que tratavam o assunto como um caso de intervenção humanitária. Houve uma forte oposição à intervenção por parte do exército estadunidense, que via a guerra na Líbia como algo impossível de ganhar além de trazer mais uma enorme tensão militar para os Estados Unidos. O último grupo parecia estar ganhando quando, de repente, a resolução da Liga Árabe mudou o equilíbrio de forças.

Como isso aconteceu? O governo saudita moveu-se com determinação e eficácia para obter uma resolução favorável ao estabelecimento de uma zona de exclusão aérea. Com o fim de obter a unanimidade entre os estados árabes, os sauditas fizeram duas concessões. A intervenção se limitaria somente ao estabelecimento de uma zona de exclusão aérea e, em uma segunda resolução, se acordou a oposição unânime à intervenção de forças terrestres ocidentais.

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O que levou os sauditas a propor tais resoluções. Alguém telefonou dos Estados Unidos para a Arábia Saudita e solicitou esse movimento? Creio que foi exatamente o contrário. Foram os sauditas que trataram de influenciar a posição estadunidense. E funcionou. A balança se inclinou.

O que os sauditas queriam, e obtiveram, foi uma manobra magistral que distraísse a atenção daquilo que os próprios sauditas consideravam como algo prioritário, algo no que já estavam trabalhando – a repressão da revolta árabe, na medida em que ela está afetando a Arábia Saudita em primeiro lugar, em segundo, aos países do Golfo e, por último, o mundo árabe em seu conjunto.

Do mesmo modo que em 1968, este tipo de rebelião contra a autoridade cria estranhas divisões nos países afetados e cria alianças inesperadas. Particularmente os chamamentos em favor das intervenções humanitárias provocam divisões. O problema que tenho com as intervenções humanitárias é que nunca estou seguro que sejam de fato humanitárias.

Os defensores sempre assinalam os casos onde ela não ocorreu, como Ruanda. Mas nunca levam em conta as ocasiões quando ocorreram. Sim, no curto prazo, pode-se evitar o que de outro modo seria um massacre. Mas no longo prazo é realmente efetiva? Para evitar matanças iminentes de Saddam Hussein, os Estados Unidos invadiram o Iraque. Massacrou-se menos gene nos dez anos transcorridos desde a ocupação? Parece que não.

Os defensores da intervenção humanitária parecem ter um critério quantitativo. Se um governo mata dez manifestantes, isso é “normal” ou, em todo caso, só algo digno de uma declaração de condenação. Se 10 mil pessoas são mortas, isso já é um crime e requer uma intervenção humanitária. Quantas pessoas precisam morrer antes que o normal se converta em criminal? 100, 1000?

Agora, as potências ocidentais estão se lançando em uma guerra na Líbia cujo resultado é incerto. É provável que se converta em um atoleiro. A intervenção teve êxito em distrair o mundo da revolta árabe em curso? Talvez. Não sabemos ainda. Ela terá êxito em derrotar Kadafi. Talvez. Não sabemos ainda. Se Kadafi se for, o que acontecerá depois? Inclusive os porta-vozes estadunidenses estão preocupados com a possibilidade de que seja substituído por um de seus velhos camaradas de armas, pela Al Qaeda, ou por ambos.

A ação militar dos Estados Unidos na Líbia é um erro, inclusive desde o estreito ponto de vista dos EUA, e também do ponto de vista humanitário. Não terminará logo. O presidente Obama explicou suas ações de uma maneira complicada e sutil. O que disse, em essência, é que se o presidente dos EUA, após uma avaliação minuciosa da situação, considera que a intervenção serve aos interesses dos Estados Unidos e do mundo, ela pode e deve ser realizada. Não duvido que tenha sido uma decisão dura para ele. Mas isso não é suficiente. É uma decisão terrível, odiosa e, em última instância, contraproducente.

Enquanto isso, a melhor esperança para todos é que a segunda onda de revoltas no mundo árabe recupere força – talvez uma possibilidade muito remota agora – e avance, em primeiro lugar, na direção dos sauditas.

Fonte: Znet

Tradução: Katarina Peixoto

Leia aqui o artigo de Pepe Escobar sobre a negociata EUA-sauditas em relação à Líbia

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Comentários

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Eli Soto

Dentro desta análise, fica sempre a possibilidade de que a Liga Árabe se reuna e mude sua posição, o que isolaria os sauditas e seus companheiros do Golfo. Para evitar esta possibilidade, seria crucial o enfraquecimento da Síria. A revolta na Síria tem todos os elementos de uma revolta artificial provocada por agentes externos. Primeiro, explode em região fronteiriça a Israel, longe de Damasco. Entenda-se que Damasco é uma cidade de sete milhões de habitantes. A Síria não é a Líbia, possui instituições fortes e uma justiça civilizada, nos moldes do Ocidente., embora seja governada por um partido político único com características autoritárias. Como Democracia é regime "alien' naquela região, a legitimidade do regime sírio se dá pelo maciço apoio popular. A suposta revolta conseguiu se estender até Damasco, embora por incidentes pontuais. Mas estes incidentes são amplificados ao extremo pelo aparelho de propaganda ocidental. E a Síria, deste modo, fica enfraquecida e de voz limitada na Liga Árabe. Já na Jordanuia, dá-se o contrário. As condições terríveis do povo jordaniano embasam uma revolta poderosa, que entretanto é minimizada pelo silêncio ou pela minimização por parte da propaganda ocidental. Por sua enorme importancia estratégica, a Jordania tem a infelicidade de fazer parte daquele grupo de países nos quais a aliança Ocidente-Arábia Saudita jamais permitirá que se instale uma democracia moderna.
Já quanto à Líbia, parece que a melhor situação para os interesses ocidentais seria a continuação do estado de guerra por muito e muito tempo, quiçá indefinidamente, contanto que tropas rebeldes garantam o fornecimento de petróleo, petróleo que será pago com armas. Não é à toa que os líderes europeus já avisaram que a intervenção terá muito longa duração. Quanto à União Africana, aflita pela busca da paz na Líbia, autêntico país africano, a máquina de propaganda ocidental não lhe brinda sequer com notas de rodapé nos jornais, é como se não existisse. O grande centro das atenções é o Egito. Conseguirão destruir ou interremper a marcha da democracia no Egito?

fernandoeudonatelo

Também , ainda me parece muito obscuro, no sentido econômico-militar as motivações que levaram à criação dessa zona de exclusão aérea sem o seguimento de ofensivas terrestres.

Pois a princípio, não há a regularização totalmente segura da prospecção petrolífera nos terrenos controlados pelos rebeldes, como também não se garante uma mudança de regime político, e de suas instituições territoriais.

Acredito que tenha essa influência saudita, inimiga extra-regional do regime Kaddafi, mas não seja a única.

Provavelmente entra em campo um fator mais geoestratégico, que seria o controle dos fluxos maritimos sobre o Golfo de Sidra, que conecta o escoamento comercial do Canal de Suez ao Mar Mediterrâneo, o que daria vigilância naval permanente em cima da logística de países mais atuantes no Chifre da África, como China e Índia.

Também, não só a Itália teria mais um "encabeçamento" privilegiado no continente.

SILOÉ

Os paises do oriente médio não só tem o petróleo como fonte de recursos.
Os EUA se apossando dessas fontes, transforma esses países em colônias e seu povo em escravos.
O mundo Árabe que abra o olho e se una, senão…

    SILOÉ

    Corrigindo, só tem o petróleo como fonte de recursos, mas como a união faz a força quem sabe eles consigam reverter estes papéis.

Arthur Schieck

É curioso pensar que existe "esquerda" no mundo inteiro, inclusive no mundo árabe.
Mesmo que seja uma parcela ínfima da população (caso dos EUA), em todo lugar há uma parcela da população que tem essa visão de sociedade.

Pedro

Sou contra o capitalismo por razões históricas. Sua hora, a do capitalismo, já expirou. Ele, o capitalismo, agora, só pode, atenção para o "só pode", organizar a destruição das riquezas. O capitalismo está, historicamente falando, na situação de Penélope, com a diferença de que esta desfazia à noite o que tecia durante o dia. A produção capitalista, a de armas, sobretudo, já é, ela própria, um processo de destruição de riquezas, materiais e humanas.

Pedro

Dessas interpretaçõe esquemáticas já estamos suficientemente satisfeitos. Queremos são posições políticas claras. Somos contra todas as agressões militares do império. O capitalismo não é mais uma boa perspectiva para o futuro da humanidade. A luta contra o capitalismo tem que se fazer em todas as frentes.

Silvio I

Azenha:
Essa e uma possibilidade mais existem muitas outras causas. Agora me parece uma muito importante que não se nomeou. Israel perdeu seu único amigo que era o Egito.Não sabemos como terminaram as coisas em esse país, já que todos os militares, foram formados em escolas militares americanas, e tem sofrido uma influência de 35 anos.E se encontram em este momento, sendo governo. Penso que eles vão a retirar Kadafi e colocar em seu lugar um boneco, que possam manobrar, desta forma poder pressionar ao Egito, porque têm limite com a Líbia, e desta forma manter presos na Faixa de Gaza os palestinos. Alem de ter pelo menos da seguridade que Egito, não intente nada contra Israel. Temos sempre que ter em conta que as medidas tomadas pelos EUA, são em grande parte tomadas, pelo sionismo.

FrancoAtirador

.
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Ao colocarem o Kadafi no foco,

os EUA cooptaram o Catar

e com este a Al-Jazeera,

que era quem estava fazendo a diferença

na revolução democrática puramente árabe.
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Parece que a Hillary Clinton,

até com certa facilidade,

acabou ganhando a "guerra da informação".
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Enquanto isso:

Segundo o jornal Lloyd´s List, especializado em notícias sobre o comércio marítimo,
cerca de 1 milhão de barris de petróleo deverão ser colocados no cargueiro e enviados para o Catar.

O país do Golfo reconheceu os rebeldes líbios como o governo legítimo do país,
e concordou em comercializar o petróleo de áreas controladas por forças de oposição.

O Catar foi o primeiro país árabe a participar das operações militares internacionais na Líbia.

AFP/BBC Brasil

    Eli Soto

    O Catar não é propriamente um país.

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