Marina Lacerda: Não é fake news; o contexto em que a PEC 77 foi desengavetada justifica as inquietações

Tempo de leitura: 5 min

por Marina Lacerda, especial para o Viomundo

O Senado aprovou, em março passado, requerimento que pede a criação de uma comissão especial para debater a adoção do parlamentarismo. [1]

Também em março do ano passado o STF pautou um mandado de segurança impetrado no longínquo ano de 2001 (nº 22.972), que pede que o Supremo se posicione sobre se o parlamentarismo poderia ser instaurado por emenda constitucional no Brasil ou se o sistema presidencialista seria cláusula pétrea.

Em abril de 2016 o Presidente do Congresso Nacional, Renan Calheiros, manifestou-se favoravelmente ao parlamentarismo nas informações que prestou a pedido do STF sobre a ação.

À época aventou-se que o primeiro ministro eventualmente eleito seria Michel Temer [2]. O processo acabou não sendo julgado. Afinal, a troca de presidentes se fez mesmo em uma espécie de eleição indireta, mas pelo instrumento formal do impeachment.

Ainda assim, o parlamentarismo continuava (e continua) como uma alternativa diante da dificuldade enfrentada pelos grupos que assumiram o poder central em ganhar eleições para presidente. Essas dificuldades residem em vários fatores.

Um conjunto deles se relaciona à contrarrevolução neoliberal em curso e às suas medidas antipopulares: aprofundamento da crise econômica por conta da forte austeridade adotada pelo executivo; retirada de direitos;reformas trabalhista e da previdência, rejeitadas pela maior parte da opinião pública.

Outro conjunto de fatores reside no absoluto anacronismo de Temer e sua equipe: a cada reafirmação de subordinação da mulher fica mais difícil a certas elites esconder seu dissabor, assim como em outras trapalhadas mais que simbólicas, como encarar um ministro da cultura que não se esquiva de bater boca, em público, com um dos maiores escritores vivos da língua portuguesa.

O terceiro conjunto diz respeito à consolidação do Estado de Exceção: lei penal suspensa; violência urbana e rural que piora no método e na quantidade; protestos gravemente reprimidos — algumas manifestações sequer podem começar a acontecer. Isso faz com que se aumente a percepção na sociedade de que as coisas não vão bem e de o Estado não consegue lidar com isso a não ser de forma extremamente agressiva.

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Resultado: a aprovação de Temer, na série histórica do Ibope [3],  só é maior do que a de Sarney em 1989.

Isso se reflete nas pesquisas de intenção de votos. Lula cresceu, pelo Datafolha, 20% em quatro meses e 43% em um ano – e a medição foi feita inclusive depois da delação do Leo Pinheiro, mostrando que se esgotou faz tempo o poder que a parceria mídia/sistema de justiça tem de desgastar Lula.

Bolsonaro — que não é um candidato ideal do status quo — cresce, mas provavelmente bateu em seu teto. E os tucanos derretem. Aécio perdeu 53% em um ano. Alkmin perdeu 33%. Marina, que poderia também ser uma representante do projeto neoliberal, caiu 23%. [4]

A solução do bloco neoliberalismo/oligopólio da mídia foi Doria. Mas ele não é um candidato tão confiável. Sua imagem dialoga bem com o sul e o sudeste, mas não mais que isso. Lula tem pelo menos o triplo de intenções de votos que o tucano. Doria é o menos conhecido e, portanto, aquele com menor rejeição. Mas ainda é cedo para saber como sua imagem evoluiu.

Sendo assim, temos um quadro em que se combinam: falta de legitimidade e de candidato competitivo ao bloco neoliberal; e redução das condições, à medida em que novas pesquisas são divulgadas, para inviabilizar a candidatura Lula. Tanto é difícil para o bloco aceitar eleições em 2018, que em fevereiro o Estadão falou em “eventual” eleição. [5]

Não é por menos que tenha causado pânico o desengavetamento, nesse contexto, de uma PEC que prevê, entre outros temas, a coincidência das eleições.

A proposta foi apresentada há 14 anos. Em 2007 foi admitida pela Comissão de Constituição e Justiça.

Desde então, até quinta-feira (04/05), estava parada. Como alguns órgãos da mídia democrática e alguns parlamentares alertaram, a retomada da PEC pode ser uma estratégia para adiar as eleições de 2018.

É uma possibilidade lógica na conjuntura atual, e com a qual de certa forma já se flertava antes: o parlamentarismo serviria para acabar com eleições diretas para presidente.

Assim, essa PEC serviria para postergá-las, ganhando-se tempo para consolidar as medidas de arrocho, para lidar com o fenômeno Lula ou mesmo para produzir outras reformas constitucionais.

Por outro lado, o Deputado Vicente Cândido (PT-SP) disse que a PEC 77/2003 foi lida a pedido da comissão especial da reforma política, da qual ele é relator.

Teria sido acordado, no âmbito desse colegiado, resgatar essa PEC para que se proponha, a partir dela, “descoincidência das eleições a partir de 2022 (em anos separados para executivo e legislativo)”.

Até mesmo alguns parlamentares de oposição garantem que não se trata de, com a emenda, buscar a prorrogação do mandato de Temer – que implicaria na dilação do mandato também de governadores, por exemplo.

Apesar dos esclarecimentos a preocupação persiste.

Cândido não se manifestou quanto à coincidência das eleições majoritárias nacionais, estaduais e municipais. Tampouco há garantia de que o tema não venha à baila, talvez justamente no âmbito dessa reforma – independentemente da vontade do relator ou de qualquer ator político individual –, fazendo com que, eventualmente, o sufrágio de 2018 seja postergado. Afinal, dependendo do arranjo, os parlamentares estariam prorrogando também seus próprios mandatos.

Cândido, dizem alguns, teria o compromisso do Presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de que a PEC não serviria para estender o tempo de Temer no comando do país.

Outros duvidam da validade de acordos verbais em tempos brutos como os que vivemos. Além disso, Cândido falou, em sua nota, que a comissão especial da PEC 77 seria apenas “simbólica”, figura aparentemente inusual nos trabalhos legislativos. Esses dois elementos deixam a inquietação no ar.

De qualquer forma, diferente do que alguns divulgaram – inclusive O Globo e a Folha –, não se trata “fake news”.

Formalmente a comissão especial da PEC 77 foi criada. Não há garantia do rumo que isso irá tomar; a coincidência dos pleitos pode na prática levar a um eventual adiamento, ainda que isso seja inconstitucional.

Como apontou o professor Luis Felipe Miguel, justamente na madrugada dessa sexta-feira (05/05), sobre entrevista em que Michel Temer chegou a dizer: “Espero que as reformas deem certo e que não haja necessidade de pedirem para eu continuar”. [6]

As medidas neoliberais e elitistas não combinam com a democracia substantiva (de igualdade de oportunidades e de efetivo poder de participação dos cidadãos) e, no limite em que estamos, também não combinam com a democracia formal.

É importante que exista vigília constante a respeito do aprofundamento do processo iniciado em 2016. A reação à PEC 77 demostra a capacidade de mobilização, coerente com termos visto, há poucos dias, a maior greve-geral de décadas. Apesar de tudo, as forças populares têm capacidade de influência política e estão exercendo-a.

Novas cartas têm sido constantemente colocadas na mesa. Cada jogador tem seu trunfo – nem todos dentro das regras.

Olhos e ouvidos bem abertos para não subestimar o adversário é o mínimo que se espera a essa altura do campeonato. Um pouco de perspicácia também não faria mal.

[1] http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/03/02/senado-aprova-criacao-de-comissao-para-debater-o-parlamentarismo

[2] http://www.migalhas.com.br/Pilulas/237776

[3] https://static-cms-si.s3.amazonaws.com/media/filer_public/bf/23/bf23068f-2cb8-44db-883e-aa2a384a668b/pesquisa_cni-ibope_avalgoverno_marco2017.pdf

[4] http://jornalggn.com.br/noticia/favoritismo-de-lula-supera-lava-jato-e-bolsonaro-pode-ter-atingido-o-teto-por-marina-lacerda

[5] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-lidera-com-30-5-dos-votos-em-eventual-disputa-em-2018-diz-pesquisa,70001666636

[6] https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10209183430363754&id=1260255422

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