Luiz Cláudio Cunha: Dilma entre o general e a verdade sobre a ditadura militar

Tempo de leitura: 6 min

Dilma no Guarani

Quem é refém de quem?

DILEMA URGENTE DA PRESIDENTE DILMA: DEMITE O GENERAL OU EXTINGUE A COMISSÃO DA VERDADE

GENERAL PROÍBE COLABORAÇÃO DO EXÉRCITO PARA APURAR CRIMES DA DITADURA

Por Luiz Cláudio Cunha, no Diário do Poder, em 22.08.2014

A presidente Dilma Rousseff acordou estarrecida nesta sexta-feira, 22, como qualquer brasileiro que se respeita. E diante de um dilema inadiável, indelegável, inquestionável:

Ou Dilma demite o Comandante do Exército ou Dilma extingue a Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Não há mais clima de convivência possível entre o general Enzo Peri, chefe do Exército, e os seis comissários da CNV, diante da espantosa manchete de hoje do jornal O Globo: “Anos de chumbo: comandante impõe silêncio ao Exército.”

O repórter Chico Otávio recebeu do procurador Sérgio Suiama, da Procuradoria da República do Rio de Janeiro, um inacreditável ofício enviado em 25 de fevereiro passado aos quartéis de todo o País pelo comandante do Exército, general Enzo Peri, proibindo qualquer colaboração para apurar crimes da ditadura que derrubou o presidente João Goulart. O general Peri chega ao requinte de mandar um modelo de ofício, em branco, instruindo cada quartel a rebater pedidos do Procurador-Geral da República para o seu gabinete em Brasília, no quarto andar do Bloco A do QG do Exército.

O cala-boca nacional do general Peri abrange qualquer pedido ou requisição de documentos feitos pelo “Poder Executivo (federal, estadual e municipal), Poder Legislativo (federal, estadual e municipal), Ministério Público, Defensoria Pública e missivistas que tenham relação ao período de 1964 a 1985”). Só quem pode responder a tudo isso, esclarece o ofício, é o Gabinete do Comandante do Exército, ou seja, o próprio general Peri, erigido agora com uma autoridade que transborda todas as esferas de poder.

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É útil lembrar que os desmandos e abusos cometidos entre 1964 e 1985 constituem o foco principal da investigação da CNV, que apresentará ao País em dezembro próximo o seu relatório final.

A solução do impasse agora revelado cabe exclusivamente à Suprema-Comandante das Forças Armadas (FFAA), a quem o general se subordina nos termos da Constituição, e à Presidente da República, que criou a CNV em 2011 e a instalou no ano seguinte justamente para apurar graves violações dos direitos humanos no País. Dilma acumula as duas funções e a dupla responsabilidade.

Cabe a ela, e a mais ninguém, repor a autoridade de seu comando e o prestígio de seu cargo. Se nada fizer, Dilma perderá ambos — a autoridade e o prestígio. Tudo isso em meio a uma brava campanha eleitoral, que não permite hesitações ou fraquezas. À esquerda ou à direita.

É útil lembrar que o ofício do general Peri foi remetido a todas OM (organizações militares) e com difusão para todos os Comandantes de OM e Estado-Maior, ou seja, todos os 108 generais da tropa – os 14 generais de Exército, os 32 generais de Divisão e os 62 generais de Brigada que integram a maior e mais poderosa força militar terrestre da América Latina, com 220 mil homens e a maior concentração de blindados do continente, com 2.000 tanques, 500 deles pesados.

Existe aqui uma clara confrontação da estrela máxima da República, a da presidente Dilma, com o firmamento das 276 estrelas que comandam a tropa — 14 generais de exército (quatro estrelas), 32 de divisão (três estrelas) e 62 de brigada (duas estrelas). A estrela maior deve brilhar sobre todas as outras, nos termos da Constituição e da hierarquia militar, ou então se apaga irremediavelmente.

O grave tom de insubordinação do general Peri se constata pela data em que enviou o ofício cala-boca a seus subordinados de todo o País: 25 de fevereiro de 2014, exatamente uma semana após a entrega pela CNV de seu relatório ao ministro Celso Amorim pedindo informações às Forças Armadas. Quatro meses depois a CNV recebeu um insolente, imprestável conjunto de 455 páginas de relatórios das FFAA que não investigam, não relatam e não respondem às perguntas objetivas e documentadas da Comissão da Verdade.

O relatório minucioso da Comissão da Verdade relacionava, com nomes e datas, graves violações aos direitos humanos nos sete endereços mais notórios da repressão coordenada pelos militares, situados no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco. São cinco quartéis do Exército — incluindo os DO-CODI do Rio e São Paulo, os endereços mais letais da repressão, onde morreram pelo menos 81 pessoas, segundo levantamento da CNV —, uma base da Marinha e outra da Aeronáutica, com os nomes, sobrenomes, datas, depoimentos e horrores sobre nove casos de mortes sob tortura e de outros 17 presos políticos torturados. O relatório do Exército de Peri tinha 42 páginas e, como constatou o procurador Suiama, cobria uma encenação.

O Exército, descobriu o procurador, fingiu que trabalhou durante quatro meses para atender ao pedido da CNV, mas uma semana após a solicitação já cumpria uma determinação exatamente oposta de seu comandante em chefe, o general Enzo Peri.

O dúplice comportamento do comandante da corporação, de um lado chefiando uma investigação e de outro lado impondo o silêncio aos quartéis, lança um manto de dúvida sobre o objetivo real do Exército. Na prática, o ofício cala-boca de Peri submete a CNV à zombaria pública de militares insubmissos e de generais refratários ao interesse nacional, à hierarquia e à verdade, escancarando um deboche corporativo que tripudia sobre a inteligência dos cidadãos e a própria democracia.

O documento da Procuradoria da República revelado pelo O Globo lança uma suspeita terrível sobre o Exército: a CNV foi vítima inocente de uma fraude, de uma farsa? Como o Exército poderia produzir um relatório consistente e crível diante de uma ordem de silêncio imposta por seu comandante?

O Brasil não pode mais conviver com esta grave contradição.

Ou o Exército leva a sério a missão institucional da Comissão da Verdade, ou não.

A presidente da República, num gesto altivo e corajoso, instituiu a CNV em 2012 com a missão expressa de apurar tudo. Agora, o comandante do Exército ordena o contrário: ninguém subordinado a ele pode ajudar nas apurações.

O general Peri não está zombando apenas da CNV.

Está achincalhando a autoridade da comandante-suprema, a presidente da República.

O Brasil deve agora se perguntar: o que fará a CNV?

O que fará o Ministro Celso Amorim?

O que fará a presidente Dilma Rousseff?

Se ninguém fizer nada, já, agora, de forma clara, decisiva, contundente, todos se desmoralizam perante o País e os brasileiros.

Os comissários da CNV precisam dar ao país uma resposta urgente, clara, digna, altiva.

O ministro Amorim precisa explicar ao país que confusão é esta. A quem ele presta contas: à presidente Dilma, que criou uma CNV para apurar, ou ao seu subordinado, o general Peri, que impôs o silêncio sobre a tropa?

A presidente Dilma precisa esclarecer ao país quem manda no Governo Federal.

É Dilma, chefe suprema do Executivo, ou é o comandante do Exército?

O Exército, que sonegou em seu relatório a constatação de que a guerrilheira Dilma é uma das torturadas no DOI-CODI da rua Tutoia onde o Exército jura não ter havido tortura, precisa explicar agora que confusão essa.

Quem manda, afinal: Dilma ou Peri? A presidente ou o general?

Os atuais comandantes, se não a compostura, perderam o prazo de validade.

Os três comandantes das FFAA — o general Peri, o brigadeiro Saito e o almirante Moura Neto — são gente do bem, fichas limpas em relação à repressão e aos abusos da ditadura. Nada têm a ver com elas, como o esmagador conjunto de seus 330 mil companheiros de farda no Exército, na Aeronáutica e na Marinha. Todos os três chegaram ao generalato, por nomeação do presidente Fernando Henrique Cardoso, apenas em 1995, quando a ditadura já era defunta há uma década.

São boa gente, mas atuam e agem como comandantes fracos e acomodados.

Estão em seus cargos desde 2007, como herança gelatinosa de Lula para a Dilma. Estão, portanto, há sete anos no cargo, mais do que o mandato de um presidente, quase o mandato de dois presidentes…

O DIÁRIO DO PODER contou que, na terça-feira, logo após ler o estarrecedor relato da jornalista Miriam Leitão sobre as torturas sofridas durante três num quartel do Exército em Vila Velha, ES, a partir de dezembro de 1972, o senador Cristovam Buarque mandou por fax um bilhete ao ministro Celso Amorim, fortalecendo o pedido de desculpas das FFAA à jornalista torturada. “Nenhum soldado de hoje pode ser acusado de responsabilidade por fatos do passado, mas serão responsabilizados por esconderem os fatos, o que também macula a História, ferida por escondida. O silêncio é uma conivência e cumplicidade”, ensinou Buarque.

Amorim ligou de volta, na manhã de quarta-feira, 20, dizendo-se também ‘impactado’ pelo depoimento de Míriam Leitão. E completou com uma frase enigmática: “Eu sei das coisas que precisam ser ditas, mas tenho algumas limitações…”.

As únicas duas limitações que Amorim tem para cima são o vice-presidente Michel Temer e a presidente Dilma Rousseff. Se um ou outro estão limitando o Ministro da Defesa são passíveis de crime de prevaricação.

As limitações que Amorim tem para baixo só podem ser os 108 oficiais que compõem sua tropa de generais. Se algum deles está limitando o Ministro da Defesa são passíveis do crime de insubordinação.

Amorim está obrigado a esclarecer quem limita suas ações na pasta da Defesa.

A presidente da República, chefe de Amorim e comandante do general Peri, está obrigada a procurar esta resposta.

Nenhuma eleição, nenhuma conveniência eleitoral justifica agora o silêncio, a omissão, a covardia, a inércia da Dilma.

Não se investiga o passado em cima do silêncio.

Não se constrói um país em cima do medo.

Não se consolida a democracia em cima da mentira.

A presidente Dilma precisa escolher entre o general Peri e a Comissão da Verdade.

Os dois não podem mais conviver no Estado Democrático de Direito.

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Comentários

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Dan Moche Schneider

O comandante do Exército mancha a instituição ao promover a impunidade por crimes de sequestro, tortura e assassinato. Lamentável.

Urbano

Uma situação típica entre a ‘traição’ e a ‘conivência’, que um ‘inocente’ pode enfrentar…

    Urbano

    Nem sei quantas combinações, mas as aspas colocadas em três palavras do comentário acima servem exatamente para a não definição de quaisquer das hipóteses. E tenho dito.

    Urbano

    E mais ainda: as combinações em relação a quem e a qual, digamos, geografia?

Véio Zuza

Prezado L C Cunha: a Presidente não tem força política para isso. Não se trata propriamente de medo de golpe, mas de uma situação ainda mais difícil: não há consenso na condenação da ditadura. A Presidente proibiu comemorações do golpe e choveu político de direita e/ou oposição simplesmente criticando. Para dar um basta, exigir um acerto de contas, o Governo teria que ter apoio, no mínimo, do PSDB (FHC, Serra, Alkmin e Aécio (candidato) juntos) e do PMDB; e isso sabemos que não vai ocorrer. Eles vão ficar naquela de que não é hora de reabrir feridas… Só o PT, a esquerda em geral, as vítimas remanescentes e os jovens militantes não são suficientes. E cobrança muito forte só enfraquece o Governo – e fortalece a direita/oposição.
Estou muito errado?

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