Ressurge a dúvida, 30 anos depois: Quantos morreram na Vila Socó?

Tempo de leitura: 5 min

Comissão da Verdade de SP vai investigar tragédia da Vila Socó

OAB de Cubatão conseguiu desarquivar o caso na justiça e pretende ingressar com ação na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA

Por Lúcia Rodrigues, especial para o Viomundo

Trinta anos depois, o Brasil está prestes a conhecer a verdade sobre o que ocorreu no que pode ter sido a maior tragédia do país em número de mortos. A OAB de Cubatão acaba de conseguir na justiça, o desarquivamento do caso sobre o incêndio da Vila Socó, que matou oficialmente 93 pessoas; segundo a ação movida à época pelo Ministério Público, foram 508 vítimas.

No início da madrugada do dia 25 de fevereiro de 1984 um imenso clarão de fogo se espalhou como rastilho de pólvora pela favela construída sobre palafitas na Vila Socó, em Cubatão, região metropolitana da Baixada Santista, consumindo corpos e barracos em poucos segundos.

Muitas vítimas derreteram e viraram cinza. Não puderam ser reconhecidas por parentes ou vizinhos sobreviventes e, por isso, não foram contabilizadas no número oficial de mortos.

A temperatura no local pode ter ultrapassado os mil graus centígrados devido à enorme quantidade de litros de gasolina que vazaram durante mais de 11 horas por um duto rompido da Petrobras que cortava a favela: 700 mil, segundo dados oficiais, mas que pode ter chegado aos dois milhões de litros de combustível, de acordo com cálculos de especialistas.

Era final da ditadura militar e o regime tratou o caso como assunto de segurança nacional, minimizando os números da tragédia.

Nenhum morador de Vila Socó foi alertado por técnicos da Petrobras sobre o risco iminente de incêndio, apesar de o vazamento ter começado quase meio dia antes do momento da explosão. As vítimas morreram, sem que nenhuma ordem de retirada fosse determinada para evitar a carnificina.

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Violação de direitos humanos

Com a reabertura do caso, a OAB de Cubatão pretende ingressar na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a Organização dos Estados Americanos, até o final do primeiro semestre do ano que vem, para solicitar a responsabilização do Estado brasileiro por violação aos direitos humanos.

No Brasil, a ditadura militar travou a apuração. Nenhum responsável pela tragédia foi punido. “O Tribunal de Justiça inocentou todos os envolvidos”, ressalta o presidente da subseção da OAB de Cubatão, Luiz Marcelo Moreira, autor do pedido de desarquivamento do caso na justiça.

Ele explica que na época, dois promotores do Ministério Público chegaram a ingressar com denúncia contra 24 pessoas, dentre elas o então presidente da Petrobras, Shigeaki Ueki, e o ex-prefeito de Cubatão José Passarelli, mas ninguém foi punido.

“Shigeaki e o prefeito foram alguns dos que conseguiram HC (habeas corpus) para trancar a ação penal”, enfatiza ao se referir aos subterfúgios utilizados pelas autoridades para se eximirem de culpa.

O advogado conta que o crime já prescreveu para as 93 mortes, mas não para as que ainda não foram reconhecidas oficialmente. “Se vier à tona que uma pessoa faleceu, mas não foi contabilizada dentre os mortos, o crime não estará prescrito.”

Ele pretende se debruçar sobre os 23 volumes do processo, que também seriam incinerados em breve, para conseguir elementos para a elaboração da peça jurídica que será encaminhada à OEA. “Vamos levar à Corte para que o Estado seja punido. Cubatão era área de segurança nacional e a ditadura abafou a dimensão da tragédia”, afirma.

No aspecto cível, Luiz Marcelo ressalta que as indenizações para os sobreviventes, além de terem sido irrisórias, também excluíram menores de 12 anos. “Não há no direito brasileiro nem no internacional nada que permita isso. Se o Estado for condenado, todas as vítimas serão indenizadas.”

O número de crianças que viviam na favela é ainda hoje uma incógnita. Na escola próxima à Vila Socó existiam 300, matriculadas, segundo o advogado Dogival Vieira, que à época era vizinho da comunidade e vereador no município. “No dia seguinte à tragédia só apareceram 60 crianças na escola”, afirma, enfatizando que as demais podem ter morrido no incêndio.

Dogival acredita que o número total de mortos supere o apontado, inclusive pelo Ministério Público. “Eram colocados três, quatro cadáveres em um único caixão”, frisa.

Ele revela ainda que um laudo da Cetesb registra que foram jogados sobre o terreno, onde antes estavam erguidas as palafitas, 93 toneladas de cal, sob o pretexto de evitar doenças.

“Não tem o menor sentido, uma quantidade tão grande de cal, se o número de mortos fosse só de 93 pessoas”, justifica.

De acordo com ele, três anos após o incêndi, ainda foram encontrados restos humanos no terreno, apesar de todo o esforço dos militares para apagar os vestígios das mortes.

Inferno

As cenas dantescas presenciadas por quem acompanhou o rescaldo do incêndio dão a ideia do inferno vivido pelos moradores. Famílias carbonizadas foram encontradas abraçadas dentro das casas, corpos de pessoas que tentaram diminuir a intensidade da dor provocada pelas queimaduras, e se atiraram na água do mangue, tiveram parte dos membros inferiores derretida pela chama da gasolina — que também ardia ali. Um feto visto na barriga da mãe também chocou quem foi à Vila Socó.

O repórter da Rede Globo Tonico Ferreira foi um dos que cobriram a tragédia para o telejornal da emissora. Ele recorda a indignação que sentiu e deixou transparecer durante a entrevista coletiva com o representante da Ciesp, o Centro das Indústrias de São Paulo em Cubatão, Nei Serra, logo após a tragédia.

“Fiquei com muita raiva. Queria pegar o microfone e bater nele. Perdi o distanciamento de repórter”, afirma. Santista, ele conta que já tinha feito uma série de entrevistas com Serra sobre o risco de acidentes na área, mas que o empresário sempre negava essa hipótese.

Tonico explica que governo e indústrias não se preocupavam com a questão ambiental nesse período. “Os militares diziam que isso era assunto de país rico. Era essa a mentalidade na época. Eles nunca ouviram a população. Não havia conselhos populares. Essa foi a base do acidente da Vila Socó”, reforçou o repórter, na audiência pública sobre os 30 anos da tragédia, que ocorreu na quarta-feira, 11, na Assembleia Legislativa, durante o encontro da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo.

Crime social

Como a tragédia aconteceu no período previsto pela investigação dos crimes da ditadura, a Comissão Paulista da Verdade também atuará para desvendar esse episódio.

O deputado Adriano Diogo (PT-SP), que preside a Comissão, vai solicitar informações junto aos órgãos envolvidos no caso, como Petrobras, Prefeitura de Cubatão, IML e Serviço Funerário.

O parlamentar informa que os dados obtidos também serão repassados à Comissão Nacional da Verdade, para serem anexados ao relatório final do grupo.

“Fará parte do capítulo sobre as empresas, para demonstrar como estas agiam durante a ditadura. Tem muita coisa a ser apurada, essa história não foi concluída”, ressalta Adriano.

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Comentários

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Nilvasader

Lembro muito bem pois amig@s Assistentes Sociais estiveram lá e me punham a par da situaçâo. Foi um momento de grande tristeza.

renato

O dedo de Deus aponta…
Não desaponta.

Mário SF Alves

Parabéns, Azenha. Parabéns, Tonico Ferreira; parabéns deputado Diogo (PT); parabéns, Comissão Estadual da Verdade de São Paulo e parabéns à OAB de Cubatão que conseguiu desarquivar o caso na justiça e pretende ingressar com ação na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
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1- “…madrugada do dia 25 de fevereiro de 1984 um imenso clarão de fogo se espalhou como rastilho de pólvora pela favela construída sobre palafitas na Vila Socó, em Cubatão, região metropolitana da Baixada Santista, consumindo corpos e barracos em poucos segundos.
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Era final da ditadura militar e o regime tratou o caso como assunto de segurança nacional, minimizando os números da tragédia.”

2- “Cubatão era área de segurança nacional e a ditadura abafou a dimensão da tragédia”, afirma.”

3- “Tonico explica que governo e indústrias não se preocupavam com a questão ambiental nesse período. “Os militares diziam que isso era assunto de país rico. Era essa a mentalidade na época. Eles nunca ouviram a população. Não havia conselhos populares. Essa foi a base do acidente da Vila Socó”, reforçou o repórter, na audiência pública sobre os 30 anos da tragédia, que ocorreu na quarta-feira, 11, na Assembleia Legislativa, durante o encontro da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo.”
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“Tonico explica que governo e indústrias não se preocupavam com a questão ambiental nesse período.”

Mas, ah, se fosse só a questão ambiental que não os preocupava. Quem dera?

Cubatão, salvo engano, era a cidade mais poluída do Brasil.

Mas, se não preocupavam com a questão social, iam se preocupar com a ambiental?

Aliás, meio ambiente, pressupõe conjugar bem as relações entre causa e efeito. E aí, residia um nó do sistema: essa discussão era e é terminantemente proibida numa ditadura.

Imagine-se. O cara lá, comportadamente, condicionamente, alienadamente, discutindo as causas da degradação numa dada Unidade de Conservação. De repente, pimba, se depara com as causas da degradação social como motivadoras da dita degradação ambiental. Pronto. Após isso, onde iria parar o esquema de contenção de consciências imposto regime ditatorial?

Então, fica cada vez mais claro: ditadura militar não combina nem com discussão aberta sobre relações entre causa e efeito e muito menos com internet e comunicação em tempo real. You Tube, então, nem pensar.

Mardones

Só mesmo a ignorância para explicar o pensamento positivo de alguns sobre a ditadura. Não há nada, além de horrores daquele período.

Vanderlei

Assim como o Lindolfo, eu também trabalhava neste mesmo setor da Petrobras (operador)havia entrado as zero hora e por volta das 00:30h houve a primeira explosão. Vários órgãos são culpados por este fato, mas poucas pessoas não tem o conhecimento que os moradores local quando souberam do vazamento ao invés de comunicar o fato começaram a recolher em baldes, latas, garrafas… a gasolina que vazava. Meu falecido irmão trabalhava na RPBC como vigilante e foi um dos primeiros a chegar ao local. Não só ele mas vários colegas tiveram que passar por psicólogos.

    Mário SF Alves

    “…mas poucas pessoas não tem o conhecimento que os moradores local quando souberam do vazamento ao invés de comunicar o fato começaram a recolher em baldes, latas, garrafas… a gasolina que vazava.”
    _____________________________
    “baldes, latas, garrafas…”

    Ainda que essa não fosse a verdade factual, essa seria a verdade lógica. Era o contexto da época. E, pior, de certo modo, ainda é. E, o que é ainda mais grave, a depender de certos pseudo-políticos, continuaria sendo.
    __________________________________________
    Parabéns, Vanderlei, pela humanidade e boa vontade do depoimento.

Fabio Passos

Terrível.
A ditadura pouco se importava com risco de tragédias com os pobres. Um governo a serviço exclusivo dos interesses da “elite” branca e rica.

Urbano

Alguém já disse por aqui, que foram feitas obras grandiosas naqueles tempos. E foram mesmo. Essa que fizeram na Vila Socó é uma das cag, digo, das outras com esse mesmo viés. Sem contar outras, como elevado caindo (essa é do consórcio), estrada bilionária sendo tragada pela hiléia amazônica. Há também nessa mesma área, uma outra ainda mais inteligente, que vem a ser o maior ultraje ao ecossistema, feita através de um afogamento (não era só na cafua, não) de árvores milenares; ou para apressar a obra, senão para corrigir uma outra escaterina qualquer.

    Urbano

    Para os desavisados: o alguém que disse foi um internauta da oposição ao Brasil, quando do seu comentário, obviamente, há coisa de duas ou três semanas.

    Mário SF Alves

    “…que vem a ser o maior ultraje ao ecossistema, feita através de um afogamento (não era só na cafua, não) de árvores milenares; ou para apressar a obra, senão para corrigir uma outra escaterina qualquer.”

    ________________________
    Aí, Urbano, há um livro escrito pelo valoroso engenheiro agrônomo, Sebastião Pinheiro, que toca exatamente nisso. E vai além. Diz como foi o enfrentamento com a ditadura para encaminhar a laboratórios no exterior [na Suíça, se não me engano] os exames para verificação do índice de contaminação ambiental causado pelos desfolhantes usados nas árvores. Usaram um similar do agente laranja, o herbicida, 2,4,D.

    O nome do livro é:

    “O Agente Laranja Em Uma República de Bananas”

    https://humbertocapellari.files.wordpress.com/2010/07/serra-charge-na-canoa.jpg

    Urbano

    Obrigado por mais essa informação, Mário; você é mesmo o Cara! Buscarei o livro, até para ter mais informações sobre o ‘pra frente Brasil’… que na verdade era pra frente de trabalho, Brasil.

Hélio Jacinto Pereira

Em 1984 o Governador de SP era Franco Montoro do PMDB,que depois fundou o PSDB e o Secretário de Planejamento era José Serra,que dispensa comentários !
Montoro fundador do PSDB e José Serra também tem responsabilidade neste caso !

    Patricio

    Agora é tarde. Os dois já não estão mais aqui.

    Hélio Jacinto Pereira

    Patricio Franco Montoro se foi,mas José Serra continua “vivinho da silva” !

    Patricio

    Ops! Quem já era é o Serra.

    Mauro Assis

    Nossa, quanta paranóia… Cubatão era área de segurança nacional, e quem fez a lambança foi a Petrobrás. E vivíamos uma ditadura militar.

    Nem tudo que dá errado em Sampa é culpa dos tucanos, bicho. Menos.

    Hélio Jacinto Pereira

    Ora Mauro eu não disse que tudo éra ou é culpa dos Tucanos,eu disse que o Governador de SP era Franco Montoro e que o Secretário de planejamento era José Serra e também disse que: (Eles também tem responsábilidade neste caso),pois poderiam ter removido as familias das áreas de risco!
    Ora Mauro já que você se doeu com meu comentário,então me diga o que José Serra e os seguidos Governadores do PSDB fizeram pra remover as Familias que vivem em áreas de risco no Estado de SP ?

Lindolfo Campos

Na época, já trabalhava na Petrobras, a unidade em questão era chamada de TEDEP terminais de derivados de São Paulo. Atuava na área de segurança interna e eu ficava baseado no terminal de Alemoa.
Esta unidade foi criada incorporando os ativos da Rede Ferroviária, que mantinha as bases e a rede de dutos,
Naquele tempo, a malha de dutos era extremamente mal cuidada, foi a partir dessa tragédia que a empresa passou a substituir toda a rede. Era impressionante o mal estado do sistema, cheio de “bacalhaus”, ou seja remendos. Era frequente fazer horas extra, devido a quantidade de vazamentos Hoje é impensável usar um sistema naquele estado.
Com a advento de novas tecnologias e conhecimento técnico, é praticamente impossível ocorrer vazamentos devido a corrosão. Sistemas de pig, “capsulas” são injetadas na malhas e com uso de ultra-som e gps, os técnicos são capazes de detectar qualquer nível de corrosão interna ou externa dos dutos e assim se pode realizar a substituição do trecho que esteja apresentando um início de desgaste. Alem disso, existe sistemas de alerta para variação de pressão, proteção catódica, etc.

Infelizmente na época não existia essas tecnologias, era meio bruto mesmo. Sem falar na incompreensão com o meio ambiente e segurança social, sem falar na crise econômica, e da conta petróleo das importações de óleo.

    Mauro Assis

    Pois é, bicho, tá certo que detectar vazamento naquela época era difícil. Mas a Petrobrás ficou sabendo do vazamento horas antes da tragédia e não se mexeu para evacuar a área. Criminosa atitude dos responsáveis naquela época.

Elvys

Tinha 12, 13 anos na época e recordo das imagens. Corpos carbonizados, parecia que tinham bombardeado a favela. Foi no mesmo ano do acidente da Union CArbide, na Índia?

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