O governador Geraldo Alckmin e o reitor Marco Antônio Zago
por Antônio David
Há poucos dias o Departamento de Filosofia da USP divulgou uma nota, sem data, intitulada “Manifestação de professores do Departamento de Filosofia à comunidade universitária”. Disponível na íntegra no site do DF, a manifestação é assinada por 24 docentes, o que representa dois terços do quadro de docentes do DF na ativa.
A manifestação é longa. Por isso, os comentários que decidi escrever e divulgar são igualmente longos. Desnecessário dizer que tais considerações são de caráter individual.
Antes de mais nada, considero bastante positivo que os signatários da nota afirmem seu entendimento de que “greves são instrumentos legítimos de pressão e luta” e que “algumas [das greves anteriormente deflagradas na FFLCH] foram movidas por razões justas e obtiveram resultados importantes e benéficos”. A nota chega a dizer “não [ser] senão natural que, [nas atuais] circunstâncias, se deflagre uma greve”.
Imagino que muitos receberão a manifestação com hostilidade ou desdém. Eu não. De minha parte, penso que tais afirmações são importantes e merecem crédito. Sendo o reconhecimento da legitimidade do instrumento greve, elas tornam possível a interlocução reclamada pela nota. Já é meio caminho andado. Vou além: encaro tais afirmações como uma autocrítica de parte de alguns dos signatários da nota, que sempre afirmaram e reiteraram o exato oposto, ou seja, colocaram-se sempre contra as greves por princípio, em toda e qualquer circunstância, e trataram o movimento estudantil sempre com hostilidade, desprezo e desrespeito. Penso tratar-se (essa autocrítica) de um grande avanço.
Convém também dizer, antes ainda de entrar na questão que me parece central, que a nota faz menção a problemas reais e que merecem a atenção do movimento estudantil. Refiro-me, em particular, ao “esvaziamento, causado, sobretudo, pela deserção da grande maioria dos estudantes”. Independentemente do inteiro teor da nota, é forçoso reconhecer que este é um problema real. Um fato. Como tal, a única atitude respeitável é encará-lo e enfrentá-lo. Negá-lo não é o caminho. O esvaziamento não é culpa dessa ou daquela pessoa ou entidade.
Entretanto, o movimento estudantil tem grande parte de responsabilidade nisso. Não é o único responsável, mas talvez seja o principal. De nada adianta inventar desculpas e pretextos, do tipo “a culpa é do individualismo”. Agir assim é pior. É o mesmo que jogar a sujeira para debaixo do tapete. Penso que o movimento estudantil deveria fazer uma autocrítica na prática. Caso contrário, o esvaziamento se perpetuará nas greves vindouras que se fizerem necessárias. Tenho certeza que não é isso que o movimento estudantil quer.
Entremos agora na questão central. No que toca às críticas à greve em curso e às recentes greves, tais como aparecem na nota – a saber, de que haveria um “processo de introdução das greves na rotina acadêmica e, consequentemente, sua banalização”, processo esse acompanhado de um “déficit de credibilidade e de poder persuasivo” e da “imposição de força” (“expedientes como piquetes, obstrução de salas de aula, cadeiraços etc.”), o que levaria ao “aumento da evasão e do desinteresse, má formação dos estudantes, além da crescente dificuldade do diálogo e da comunicação”, “degradação da qualidade de nosso trabalho” e “crescente esgarçamento das relações entre as pessoas” -, convém dizer duas coisas que, por lapso, escapou aos signatários da nota.
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Em primeiro lugar, se é verdade que “quando se fazem greves com tamanha frequência, seu caráter extraordinário, condição necessária para sua força, se perde, e o resultado é a inevitável diminuição do poder persuasivo e da credibilidade dos que as promovem”, é igualmente verdade que as causas das greves na USP não são extraordinárias. São ordinárias. Remetem à estrutura de poder da universidade, autocrática e autoritária. De uma maneira ou de outra, seja por salários, seja por contratação de professores, seja por outro motivo, todas as greves são indiretamente contra o arbítrio na administração da universidade.
Temos na USP a triste característica de que, aqui, o reitor administra a universidade como se estivesse administrando a própria fazenda. Ora, justamente porque é “absolutamente inadiável e urgente que se procure olhar para esses acontecimentos como parte de um arco histórico mais extenso, que remonta pelo menos há uma década, e não como um episódio isolado”, é que se deve olhar para as causas dessa e de todas as greves. Criticar as greves sem falar de suas causas não faz sentido. Surpreendentemente, a nota apega-se ao efeito (greve), mas não às causas. Ignora um fato elementar: se a causa não cessa, tampouco cessa o efeito.
Em segundo lugar, e embora façam o elogio da autocrítica – “Não há pensamento crítico sem autocrítica. Está mais do que na hora de fazê-la” -, os signatários da nota incorrem num dos piores erros que se pode cometer: reivindicam dos outros a autocrítica, quando eles próprios não a fazem.
Vejamos: a nota diz que as greves tornaram-se banais, mas não faz menção às causas das greves e à maneira como eles próprios colocaram-se (ou não se colocaram) em face delas. No que toca à greve em curso, a nota faz menção à “profunda crise financeira, gerada pela irresponsabilidade da última gestão reitoral”, mas não faz a devida autocrítica pelo fato de seus signatários terem se calado diante dos abusos e arbitrariedades da gestão Rodas. Ou, pior, pelo fato de alguns de seus signatários terem apoiado e até mesmo participado da gestão Rodas com cargos na administração central. Ou seja, os signatários – embora em situações e posições diferentes uns dos outros – não fazem a autocrítica que eles próprios reclamam.
Assim, se as greves tornaram-se banais e conduzem a um “déficit de credibilidade e de poder persuasivo”, cabe indagar: qual é a parte de responsabilidade dos signatários da nota nesse déficit? Ou seja, que contribuição deram, ou deixaram de dar, para que as greves – que eles próprios reconhecem como legítima – tivessem credibilidade e poder persuasivo? Se, ao terem tornado-se frequentes, as greves concorrem para o “aumento da evasão e do desinteresse, má formação dos estudantes, além da crescente dificuldade do diálogo e da comunicação”, qual é a parte de responsabilidade dos signatários também aqui, sendo que eles têm contato diário com os alunos em sala de aula? Se as greves levam à “degradação da qualidade de trabalho”, o que fizeram os signatários da nota contra as reiteradas ações da reitoria que produzem exatamente essa degradação da qualidade de trabalho? Se, enfim, as greves têm levado a um “crescente esgarçamento das relações entre as pessoas”, qual é a parte de responsabilidade dos signatários nesse processo – seja por omissão, seja por ação, como quando se chama os estudantes de “ignorantes”?
A nota é sintoma de incômodo e mal-estar. Esse é o sentimento entre os signatários da nota. Eles não o escondem. Aliás, o objetivo principal da nota parece não ser outro senão tornar público esse sentimento. Porém, e seguindo o método sugerido pela própria nota – “olhar para esses acontecimentos como parte de um arco histórico mais extenso” -, é necessário constatar: a percepção entre os estudantes engajados nessa e nas outras greves têm é de que, aos signatários da nota – ou parte deles -, apenas a greve produz incômodo e mal-estar; as causas da greve, não. Ora, justamente porque o DF deveria exercer sua “vocação para a análise crítica” é que os signatários da nota deveriam saber que essa ausência de incômodo e mal-estar produz neles – estudantes – um enorme incômodo e um enorme mal-estar.
Os signatários da nota criticam o esgarçamento das relações pessoais, mas não perceberam que é precisamente com seu silêncio e sua ausência de mal-estar diante da estrutura de poder da USP que as relações pessoais começam a esgarçar – não é com as greves.Trocando em miúdos: tão ruim quanto não haver aula é ter aula sem que tenham lugar o incômodo e o mal-estar – ou seja, quando a “vocação para a análise crítica” vale só para os textos, não para os absurdos que acontecem na administração da universidade.
É lamentável constatar que, diante das causas da greve, a maioria dos docentes age de maneira decorosa e reverencial. “Como criticar o Reitor se ele é Reitor?”, perguntarão alguns.
A crítica, quando acontece, é feita por meio de ofício, em papel timbrado, endereçado ao reitor, com o mesmo vocabulário utilizado pelo Itamaraty: “Gostaríamos de manifestar nossa preocupação /…/”. O tratamento não poderia ser outro senão o reverencial “Vossa Magnificência”.
Mas a maioria opta mesmo por calar-se, simplesmente. Não é decoroso envolver-se em atritos. “Vão me confundir com os sindicalistas; eu, que sou um professor doutor da USP”. O decoro é a praga que está destruindo a universidade. Não sabem os signatários da nota – isso não vale para todos, apenas para uma parte deles – que seu decoroso silêncio fora dos períodos de greve também é causa dessa e de todas as greves, e de tudo o que delas decorre, ironicamente tão bem apontadas pela nota. Não fosse o decoro, talvez as coisas começassem a mudar na USP. Mas, infelizmente, o decoro parece fazer parte da própria identidade do professor da USP – em termos filosóficos, de sua essência.
Não havendo o menor resquício de autocrítica por parte dos signatários da nota – pois fazê-lo equivaleria a criticar o decoro e a reverência, algo impensável para muitos deles -, não posso deixar de concluir: o futuro nos reserva dias ainda piores.
Antônio David é pós-graduando pelo Departamento de Filosofia da USP.
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Comentários
abolicionista
Um idiota escreveu na Carta Capital que estudantes não podem entrar em greve, e que greve de estudantes é algo inútil.
Certamente ele não conhece a história das greves estudantis do Quebec.
http://www.lactualite.com/societe/greves-etudiantes-une-histoire-en-sept-temps/
Alexandre Maruca
Muito bom.
Cientista filosófico
Antônio David,
legal o ponto. Também acho que os professores estão mais próximos da governança da USP do que os alunos e se eles estivessem participando ativamente do processo de gestão, colaborativamente, com o Reitor e toda a comissão da governaça, que são constituídos exclusivamente de professores, a situação já poderia ser outra. Isso porque os maiores pensadores e pesquisadores do Brasil, de maiores reconhecimentos e reputação, estão na USP.
A greve dos alunos, frente a essa situação, é uma tentativa coontrasensual e equivocada de resolver a situação. Já conseguiram algumas bagatelas, é fato, mas uma mudança de base, só sendo construído por quem, de nossas cabeças, já está lá. E também pelos alunos, claro. Pela capacidade de fazermos o que precisamos saber fazer de melhor, que é, no mínimo, saber conduzir a universidade que depositamos nossas energias de trabalho e construção de pensamento todos os dias.
Deste ponto de vista, observado pelos professores, a universidade nesses ultimos anos devido aos movimentos de paralização está reduzida a um flagelo. Negligenciada no seu objetivo. E nesse ponto, observando dentro das salas de aula, a culpa é menos do Reitor do que dos alunos. [“reiteradas ações da reitoria que produzem exatamente essa degradação da qualidade de trabalho?”]
Nosso papel é de ação (transformadora), dentro das estruturas da própria universidade (porque não?). Não dá pra negar, ainda! temos muitos recursos.
abolicionista
Pelamor, paulista é estúpido mesmo. O reitor meteu a mão na grana e ficamos debatendo filigranas. Acorda, boiada!
Cláudio
Com Dilma, a verdade vai vencer a mentira assim como a esperança já venceu o medo (em 2002 e 2006) e o amor já venceu o ódio (em 2010). ****:D:D . . . . ‘Tá chegando o Dia D: Dia De votar bem, para o Brasil continuar melhorando!!!! ****:L:L:D:D ****:D:D . . . . Vote consciente e de forma unitária para o seu/nosso partido ter mais força política, com maioria segura. . . . . ****:L:L:D:D . . . . Lei de Mídias Já!!!! ****:L:L:D:D ****:D:D … “Com o tempo, uma imprensa [mídia] cínica, mercenária, demagógica e corruta formará um público tão vil como ela mesma” *** * Joseph Pulitzer. ****:D:D … … “Se você não for cuidadoso(a), os jornais [mídias] farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo” *** * Malcolm X. … … … Ley de Medios Já ! ! ! . . . … … … …:L:L:D:D
Hokuspokus
muito bom
abolicionista
Quando entrei na USP, em 2001, as salas ficavam lotadas e tínhamos que assistir às aulas no corredor. A reitoria dizia que não iria contratar mais claros. Uma greve imensa conseguiu reverter a situação e foram contratados centenas de professores, tornando possível entrar nas salas de aula.
Quanto à evasão, sem dúvida é um problema grave. Mas, se não fosse pela evasão, sem aumentar a quantidade de professores e salas de aula, os cursos ficariam inviáveis.
abolicionista
A USP está com os dias contados, a grande universidade do México, a UNAM, seria o grande modelo a ser seguido. Mas o reitor tem delírios de grandeza e acha que a USP deve seguir o modelo das universidades estadonidenses.
A USP tem 92 mil alunos e um orçamento de 4 bilhões. Harvard tem 21 mil alunos e orçamento de mais de 10 bilhões (e grande parte disso é dinheiro público). Se formos falar de infraestrutura, aí nem dá pra começar a conversar. Os propósitos das universidades são diferentes. Isso sem falar que Harvard hoje vive uma crise gravíssima de orçamento. Enfim, o reitor está delirando. O máximo que ele vai conseguir fazer com a USP é sucateá-la a ponto de torná-la algo equivalente a uma espécie de Uninove sofisticada.
Nosso modelo deveria ser a Unam, repito. Uma universidade que não pára de crescer e logo vai desbancar a USP no ranking de universidades latinas.
abolicionista
Corrigindo, “estadunidenses”
abolicionista
Muito bom texto. Ademais, as greves poderiam ser mais efetivas e menos frequentes se não fossem sabotadas pela Adusp, né?
Urbano
Ao nobre estilo, eu empurro e tu dá a tapa…
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