Professor da UFPA denuncia ameaça à pesquisa científica no Brasil
em Racismo Ambiental, sugestão dos professores Marcos Garcia e Caio Toledo
A autonomia da pesquisa científica encontra-se ameaçada na universidade brasileira. No dia 10 de fevereiro de 2012, através do Memo nº35/12FA/PG, assinado pela Sra. Sandra Valeska Martins Leal, Procuradora Federal, foi comunicado ao Prof. Enéias Barbosa Guedes, aluno egresso do Curso de Mestrado, do Programa de Pós-Graduação em Geografia – Faculdade de Geografia e Cartografia, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará a existência do Processo Ação Ordinária de Dano Moral 35947-07.2011.4.01.3900, no qual a UFPA e o Prof. Enéias Barbosa Guedes são constituídos Réus.
A Sra. Eva Maria Daher Abufaiad, representada pelos advogados Abraham Assayag e Marcos J. Assayag do Escritório de Advocacia Abraham Assayag, introduziu uma ação de indenização por danos morais c/c obrigação de fazer e pedido de tutela antecipada em 03 de outubro de 2011. O documento encaminhado ao Juiz Federal da Vara da Seção Judiciária do Estado do Pará expõe como “razões de fato e de direito” – Dos Fatos que “Ao navegar pela rede mundial de computadores – internet, a autora se deparou com a dissertação de mestrado em Geografia, abordando o tema “TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE DE PESCADORES NAS LOCALIDADES CÉU E CAJUÚNA, SOURE, PARÁ”, publicada nos endereços eletrônicos da UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARA e do MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO”. (Processo P. 4) E continua: “Ao acessar o conteúdo da referida tese de pós-graduação a autora teve mais que um profundo dissabor, eis que possui excertos com afirmações infundadas, inverídicas e denegritórias da imagem e reputação não apenas da mesma como também de sua família, senão vejamos:
“(…) Essas vilas limitam-se ao norte, com a fazenda Caju-Una (propriedade da família do Sr. Alacid Nunes), ao Sul, com a fazenda Bom Jesus, a leste com a Baia do Marajó: e oeste, com as terras do patrimônio da união arrendadas pela família Abufaiad, constituindo em grande latifúndio no município, terras que hoje essa família diz lhes pertencer (Grifo nosso).
“Há, ainda, os conflitos envolvendo fazendeiros criadores de búfalos e os moradores vizinhos. Tais conflitos são frequentes, pois nos campos naturais de Soure existem grandes lagos, concentrando espécies de peixes de água doce que sempre foram explorados pelas populações locais. Não obstante, a intensificação da criação de gados bufalinos vem destruindo esses territórios de pescadores, pois a natureza do próprio búfalo provoca erosão, diminuindo as possibilidades da pesca de subsistência das populações locais. Fato que provoca intensos conflitos como os que ocorrem na fazenda da proprietária Eva Abufaiad. Essa proprietária contrata seguranças para vigiar os lagos e córregos de água da sua fazenda, impedindo a pescaria das coletividades ceuenses e cajuunense que historicamente sempre exploraram esses territórios. Ê a propriedade privada privando os humanos de suprir suas necessidades de existência materiais. (Grifo nosso).” (Processo p. 5)1
No resumo dos fatos lê-se que “Humilhada, a autora registrou um boletim de ocorrência 0080/2011.000128-0, em 19.02.2011, em que expõe ter sido acusada “peremptoriamente a autora e sua família de perseguir pescadores das localidades de Cajuúna e Céu, no Município de Soure, PA”.
“No Mérito”, com o título “Da configuração do dano moral” situa a idoneidade e boa fé da autora, não se podendo dizer o mesmo em relação ao réu Enéias Barbosa Guedes, o qual colocou em risco a incolumidade moral de uma família tradicional do Marajó, trazendo transtornos de cunho psíquico imensuráveis, ao criar, temerariamente, tese cientifica alicerçada em afirmações sem qualquer embasamento empírico”. (Processo p. 8).
Acrescenta “Portanto, resta evidente a presença de dano moral, passível de compensação pecuniária nos termos do artigo 5, V da CF/88”. No Pedido II, a condenação dos réus, no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), como forma de compensar o dano moral impingido. IV sejam condenados os réus ao pagamento dos honorários advocatícios a razão de 20% sobre o valor da causa” (Processo P. 14-15).
Inicialmente é preciso considerar e respeitar a seriedade do trabalho acadêmico de qualidade, que consiste uma dissertação de mestrado em geografia, visto que se trata de um trabalho de cunho científico que sintetiza os resultados de investigação, análise e interpretação de uma determinada situação geográfica. Tudo isso sustentando, presidido e estruturado por categorias, conceitos, teorias e método necessários à pesquisa científica.
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É preciso respeitar a seriedade do Programa de Pós-graduação em Geografia onde a dissertação foi gestada. Trata-se do primeiro curso de mestrado em geografia da Amazônia, com um quadro de professores reconhecidamente respeitado, por sua trajetória de pesquisa séria e comprometida com a construção de um conhecimento necessário à melhoria da sociedade onde a Universidade está inserida. Pesquisadores conhecidos nacional e internacionalmente pela seriedade de suas pesquisas e grupos de pesquisa.
É preciso respeitar o trabalho de orientação desenvolvido pelo docente do programa, pois no decorrer de sua pesquisa de dissertação o discente é orientado por um professor, que acompanha a trajetória da pesquisa, discutindo cada passo. O trabalho de orientação começa desde o momento em que docentes e discentes são apresentados e compreende um longo percurso de reuniões, elaboração de texto, coleta de informações, sistematização de dados, apresentação dos primeiros resultados em encontros de área. Neste percurso um dos momentos fundamentais é a construção do relatório de qualificação, onde o discente expõe para uma banca de examinadores os resultados preliminares de sua pesquisa.
É preciso respeitar a seriedade dos pesquisadores que compõem as bancas examinadoras da dissertação, seja no momento da qualificação, seja no momento de final de sua defesa. Pois bem, quando a dissertação está concluída, ela é submetida ao exame de defesa, onde pesquisadores de várias instituições estudam os resultados da mesma, expõem suas considerações e submetem o discente a arguições. Enfim, emitem parecer acerca do mérito acadêmico e científico da pesquisa. Neste caso, a dissertação foi concluída e defendida publicamente no dia 20 de abril de 2009. A arguição foi realizada pela banca examinadora composta pelos Professores: Dr. João Márcio Palheta (Orientador – IFCH/UFPA), Dra. Márcia Aparecida da Silva Pimentel (Co-orientadora – IFCH/UFPA), Dr. Sérgio Cardoso de Morais (Examinador Interno – Centro de Educação/Campos Bragança/UFPA) e Dra. Lisandra Pereira Lamoso (Examinadora Externa – Universidade Federal de Grande Dourado/ UFGD, Mato Grosso do Sul).
Por fim, mas não menos importante, é preciso respeitar o tema de preocupação científica da geografia que é a sociedade, mais precisamente sua dimensão espacial. A pesquisa em geografia consiste em elucidar como a sociedade adquire dinâmica espacial e como esta influencia na dinâmica social. Desse modo, enfoca com maior ou menor intensidade os usos e abusos do território pela sociedade; este entendido como quadro da vida. A dissertação do professor Enéias integra esse campo científico, trata-se de um estudo que debate a problemática da pesca nas localidades Céu e Cajuúna no município de Soure, na microrregião do Ararí, na mesorregião do Marajó, no Estado do Pará. Nele o autor revela a dimensão territorial da pesca para entendimento dos territórios e territorialidades dos pescadores. A partir de um olhar geográfico, o trabalho questiona a apropriação, o domínio e o uso do espaço pelos pescadores. Para tanto, apontou, com base em trabalho de campo, as ações dos diferentes atores sociais envolvidos na problemática abordada, entendendo o sentido da territorialidade dos pescadores locais, suas formas de relação com a natureza e de organização do trabalho para melhor visibilidade dos territórios dos pescadores. Esses territórios são definidos e apropriados no meio aquático, tendo sua configuração imprecisa e por ser vasta sua “posse” é muito fluida, devido à dinâmica sazonal da água e do pescado.
Portanto, a ação movida contra o professor Enéias Barbosa Guedes desrespeita a autonomia do pensamento científico, desrespeita o Programa onde a dissertação foi gestada, desrespeita o trabalho do professor orientador, dos pesquisadores que compuseram as bancas examinadoras de qualificação e de defesa; enfim, desrespeita o próprio tema de investigação da ciência geográfica. Por tudo isso tal ação é repudiável!
Pesquisadores da Universidade Federal do Pará em conhecimento deste processo consideram importante divulgar e construir uma reflexão sobre as restrições e imposições para o trabalho de pesquisa cientifica. Formas de amordaçamento, de judicialização dos pesquisadores constitui um perigo para a Ciência, para os agentes sociais, que mediante relações de pesquisa confiam neste conhecimento balizador de esquemas de compreensão e transformação da sociedade ao seu favor. A quem e a que serve a Ciência? Este processo constitui uma seria ameaça para os pesquisadores e discentes da Universidade Federal do Pará e de todas as Universidades Brasileiras que poderão encontrar na sua frente o peso da censura, da autocensura, como o medo de uma decisão judicial que venha julgar sob a perspectiva da moral.
Peço aos pesquisadores que apoiam a causa, que enviem notas de apoio ao Prof. Eneias Guedes, para o e-mail ené[email protected] ou ené[email protected]
Prof. Dr. João Santos Nahum
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Geografia
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARA
Campus Universitário do Guamá
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Nota:
1 . As citações foram retiradas das paginas 91 e 130 da dissertação. O trabalho de mestrado está disponibilizado na internet, no site: www.ufpa.br/ppgeo/ocumetnos/eneiasbarbosaguedes.pdf.
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Comentários
Ícaro Cardoso Maia
Vamos fazer uma moção de apoio no site Petição Pública! Pela liberdade da pesquisa crítica!
mariazinha
Meu DEUS! Em cada esquina desse país, uma cilada contra os mais indefesos. Tolher a pesquisa e amedrontar os pesquisadores brasileiros já é grave delito, mais, torna-se assustador qdo. nota-se que a justiça, como sempre, é cooptada pelos ricaços poderosos. Estes, usam-na sem medo ,para conseguirem seus intentos e os cientistas e desvalidos desse país continuam à mercê da sanha dos poderosos. Quem é eva dos búfalos?
[…]Eva Abufaiad é irmã de uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Eliana Abufaiad. Recentemente, a fazendeira compareceu para "dialogar" com as comunidades quilombolas. Mas havia um detalhe: ela queria conversar com as pessoas ao lado de um delegado e um policial.[…] http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_c… http://www.brasildefato.com.br/node/1695 http://www.grupos.com.br/group/religioes_afro_bel…
Antenor
A Ciência está cumprindo o seu papel: incomodar a elite narcísica, gananciosa e estúpida.
Lu_Witovisk
Desgosto. Contra a coronelada não se pode abrir a boca. Parabéns ao Eneas!! Divulgando.
Ronei C. Mocellin
Prezado Prof. Nahum, sua denuncia é de grande relevancia. Mas, primeiramente, quero dizer-lhe que, graças a ela, conheci o trabalho do prof. Enéias Guedes. Quero felicitar o senhor Enéias pela excelente dissertação, um trabalho de grande valor científico. Seu trabalho é um exemplo objetivo, concreto, da aplicação do rigor acadêmico na comprensão fina de questões sociais que demandam soluções contextuais bem estabelecidas. Ou seja, seu trabalho é um instrumento conceitual que pode sustentar politicas públicas concretas. No caso desse processo, muitas questões podem ser colodadas, das quais o senhor pontua a liberdade da investigação científica. Estou inteiramente de acordo. Por isso mesmo, faz bem o senhor em se responsabilizar institucionalmente pelo trabalho do Enéas. Sem dúvida, o mais urgente é a própria defesa juridica dele. O que diz o MP do Pará sobre o caso? Pergunto isso, pois o texto da dissertação (p. 130) faz a denuncia de uma situação que pode ser observada (neste ponto, acho que o Enéas poderia ter sido um pouco mais rigoroso. Não que não seja bastante evidente que o que diz seja o fato, mas com mais elementos de prova). Mas isso não significa que sejam falsas e, justamente, cabe ao MP investigar também, ou não? Contudo, prof. Nahum, não sei se daria para dizer que trata-se de um processo contra a "pesquisa científica", em particular a geografia. Não trata-se de um "caso Galileu". Parece-me que o caso demonstra mais os limites de apropriação social do conhecimento científico. Se um método analítico rigoroso é posto para funcionar contra uma estratégia de dominação (atualmente o capitalismo liberal), produzindo conceitos científicos desde outras perspectivas e a partir atores sociais historicamente oprimidos, o seu propositor corre sérios riscos,desde de dificuldades para obter financiamento para suas pesquisas, até coerções mais diretas como a que está vivendo o senhor Enéas.
Carlos
Será que nesse processo está mesmo sendo representada somente esta limítrofe?
Lúcia Santis
Parece que estamos vivendo uma ditadura imposta pelos detentores do poder econômico que não aceitam leituras da realidade que não seja a que lhes interessa. Até que ponto o Judiciário vai ser conivente com isto?!
Daqui a pouco a modo pega e as ciências sociais não poderão fazer análise da realidade? Querem uma ciência atrelada ao poder econômico como são as mídias hoje?
Há que se denunciar isto mundialmente. Não podemos permitir esta imposição ditatorial do poder econômico que se colocam como impune e com direitos a fazer o que quiserem com os trabalhadores e meio ambiente.
Lúcia
Ingrid Mariana
É nesse contexto que os grandes donos da mídia pintam e bordam e qualquer tentativa de regular-lhes a sanha é interpretada como censura/ameaça ao livre pensamento. Quer maior ameaça ao livre pensamento que a tentativa de controlar o conteúdo de um trabalho científico.
A falta de pudor da elite e seu modus operandi ganha contornos cada vez mais perigosos, instrumentalizando processos e abrindo caminho para o controle da academia.
Se o controle da academia ganha ares de facismo na gestão Rodas na USP, na Universidade de Brasília parece ocorrer o mesmo com decisões arbitrárias do Consuni e a total desmobilização do movimento estudantil. Estudantes despolitizados votando em reacionários de direita "chapa branca", quem acompanha os acontecimentos de perto percebe uma tentativa sorrateira de controle do pensamento… Se antes a academia era o lugar da inovação e debate que impulsionam a sociedade, cada dia mais se torna instrumento de doutrinação ideológica e mantenedora do status quo.
Infelizmente, educação para autonomia não é, nem nunca foi prioridade e enquanto permanecer assim (educação para o mercado) a tragédia se perpetuará. George Orwell certamente foi o grande profeta do século XX….
Cláudio Medeiros
É o seguinte: o pesquisador relatou alguma mentira? Não? Então não houve ofensa!
Tem que parar com essa mania que alguns endinheirados têm obnubilar as verdades que lhes tocam.
Helmir
Já nao basta termos, no caso dos núcleos de pesquisa ligadas a areas das ditas ciencias humanas, uma precarização no que tange ao investimento em pesquisas – a maior parte de investimentos hj em dia é para as áreas de tecnologia e engenharia -, ainda temos que nos preocupar se o que estudamos vai ser ou não alvo de processos. Tá complicado ser pesquisador hj em dia, principalmente se assumimos postura de denunciarmos as mazelas que cada vez mais se dão sobre a população brasileira.
Felipe
Vide o circo que será a Rio+20… A pauta comprada pelos financistas e industriais e o discurso modalizado pela politicagem com endosso da grade mídia.
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