O problema não é a pesquisa, é o poder (II)
A revelação mais assombrosa da pesquisa veio com a reação a um índice corrigido que, em si mesmo, não representa qualquer alteração ao quadro apresentado.
por Katarina Peixoto, em Carta Maior
Na semana que passou, dois temas mobilizaram o país: os 50 anos do golpe civil-militar que instaurou a última ditadura e a pesquisa do IPEA sobre a tolerância com a delinquência sexista contra mulheres e gays.
Menos de uma semana após a divulgação da pesquisa, no dia 04 último, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas veio a público divulgar a correção em dois índices, que teriam sido publicados de maneira invertida: um relativo à tolerância com o abuso doméstico do parceiro sobre a parceira, e outro, à afirmação de intenção delinquente de abusar mulheres que usam decote ou algo parecido.
A pesquisa e sua correção, pelo IPEA, revelaram um quadro macabro de disposição, mais do que tolerância, à delinquência sexista, e a correção de dois índices divulgados originariamente reforçaram, de maneira inaudita, a distância que ainda nos separa da democracia no Brasil, hoje. A revelação mais assombrosa da pesquisa veio com a reação a um índice corrigido que, em si mesmo, não representa qualquer alteração ao conjunto do quadro perceptivo apresentado. Esta reação explica a nitidez de nossas disposições autoritárias que seguem ameaçando a democracia.
Então, 26% estão dispostos a estuprar mulher que usa decote e isto é motivo de piada, quer dizer, a cada 4 brasileiros, 1 é um estuprador confesso e isto é irrelevante! E 65% consideram que mulher que apanha e segue com o parceiro gosta de apanhar e isto também é irrelevante.
Pior: o instituto que repôs os números nesses índices é irrelevante! Por quê? Como é isso de ter tanta gente a se dizer e se reivindicar de esquerda, republicanos, esclarecidos, que conseguem rir disso, denunciar a pesquisa, e não o horror que nos assola, a todos?
Num país que segue matando milhares de mulheres por ano, tratadas como delinquentes se tiverem gravidez indesejada, este desprezo por uma retificação honesta, que revela antes de qualquer outra coisa probidade administrativa e funcional, mereceria ele mesmo uma investigação.
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Num dia, a democracia é celebrada contra a ditadura. No outro, ter um quarto de brasileiros como estupradores confessos diante de um decote é motivo de piada.
Num dia, denúncia contra a corrupção, no outro, deboche de uma instituição pública que retifica um dado, dando provas de probidade administrativa inconteste.
Pior do que ver um ou outro adolescente com ódio machista e hormônios mal educados a bradar vídeos com apologia ao crime, é ver gente que se pensa de esquerda menosprezando, pelo silêncio retumbante, a revelação de que, para a maioria dos brasileiros, casais gays não podem adotar crianças, e mulheres que apanham e seguem com o parceiro gostam de apanhar.
Também é digna de nota a melancólica observação da falta de limites éticos dos que desprezam esse quadro de tolerância com delitos dessa magnitude civilizatória, em nome de pestilentas disputas por poder. Ditaduras sempre são gratas à mesquinhez.
Quantos institutos, inclusive universitários, já vieram a público retificar suas avaliações antirrepublicanas e decisões avessas a qualquer legalidade? Com que frequência estamos acostumados a lidar com a realidade brutal e dificilmente apreendida, pela via institucional, da violência contra meninas e adolescentes, dentro de suas famílias?
Eu escrevi um texto sobre a pesquisa do IPEA (O problema não é o decote, é o poder) em que afirmo o vínculo político determinante na relação entre os dois dos índices que tiveram seus números divulgados de modo inverso. Nada tenho a mudar no que escrevi: a pesquisa sobre a tolerância com a violência contra nós é uma pesquisa que denota, com rara consistência, a barbárie machista expressa no delírio místico e perverso da naturalização do poder do macho sobre a fêmea.
O conjunto dos dados da pesquisa, que em nada sai abalado pela retificação de dois números, segue autorizando a seguinte afirmação: o problema não é o decote, é o poder. Para 64% dos brasileiros, mulher não pode mandar. É por isso que 26% podem estuprar. Os 26% não contradizem coisa alguma, e poderiam, caso o Instituto de Pesquisa fosse desonesto, ser ocultados. Eles revelam, pode-se inferir do conjunto da obra, uma hipocrisia. Então, quem manda é o macho, mulher que apanha e segue casada gosta, gays não podem adotar, briga entre casais se resolve dentro de casa (e a mulher que não toma providências externas – suprema crueldade – gosta de apanhar).
Pesquisas de percepção são fotografias borradas. Borradas como a memória, como imagens de corpos rasgados e costurados, com laudos fabricados e corpos desaparecidos, como a lembrança daquela tentativa de estupro que não se pôde denunciar, como aquele espancamento que foi denegado, como aquela agressão de histeria e de obscurantismo, que ninguém respeitou. Em cada dado capturado, há um mundo perdido e um mundo encontrado. E entre ambos há a memória, a história e, eventualmente, um diagnóstico.
A pesquisa do IPEA, na semana em que se lembrou do quanto a democracia pode ser frágil e ameaçada, é ela mesma uma denúncia, do quão frágeis e capengas, desonestos e mesquinhos, violentos e tolerantes com a violência, podemos ser.
De todas as revelações, choros e velas da semana que passou, esta foi e é a mais hedionda. Esta pesquisa mostrou por que Paulo Malhães sai andando na rua, por que há milhares de mulheres lutando pela vida agora, em UTIs de hospitais públicos, com infecções causadas por curetagens imundas, por que instituições que admitem erros são atacadas, em vez de respeitadas. Borrada é a nossa memória da tortura, da barbárie, do estupro como arma de silenciamento e humilhação. Borrada é a percepção que organiza todas as formas cotidianas de assédio, de violação sobre a imagem mesma daquilo que vestimos, falamos, expressamos.
Esse caráter turvo contrasta com a nitidez, desgraçada e despudoramente explícita, da nossa tolerância e aceitação com a vigência desses delitos. O problema não é a pesquisa, é a nossa resistência cotidiana à democracia. Isso o que foi revelado e isso é o dramático e triste, em todo esse episódio.
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Comentários
Marcelo
Texto ótimo,constatou o óbvio, mas faltou debater as causas dessa violência e apresentar soluções para o problema.
Eunice
O problema é também os juros sobre nós todos.
Ver artigo de Amir Khair em Escrevinhador (Rodrigo Viana)
Acho que as esquerdas devem se juntar e se mobilizar e fazer pressão sobre o voto de segundo turno. Tentar arrancar o Pudê de cima do Congresso e Executivo. Estamos andando muito lentos nesse quesito. Devemos formar blocos que sejam eleitos e tenham certos compromissos.
Do contrário as máfias continuarão dominando o Estado.
Vlad
Eu continuo (mesmo que já quase partindo) achando que a raiz do problema não é a pesquisa e tampouco o “poder do macho”, e sim o descaso com a educação infantil. Descaso que é traço comum a TODOS os governos desde que gritaram “terra à vista!”, exceto talvez Brizola.
Mas aí haveria responsáveis pela omissão e solução real.
O que não interessa aos acadêmicos abilolados e tampouco ao stablishment lambuzado.
juliano xavier
O interessante é que mais de 70% dos mesmos são a favor de que o Homem que bate em mulher merece ir preso . Contraditorio não .
Leo V
Concordo com a autora que a mudança do índice da pesquisa não altera em nada a realidade.
Porém, por que então quando apareceu o índice de 65% na resposta àquela pergunta se fez tamanho alvoroço? Como se a realidade tivesse sido mudada pelo índice.
Sinceramente, desde o início faltou muita visão crítica sobre a pesquisa, sobre as perguntas formuladas, como se dados estatísticos dissessem necessariamente muito sobre a realidade, independente da amostra, das perguntas e do objetivo e de uma análise em cima dos dados.
Silvestre
Aquele erro não muda nada.
O que mais impressionava naquela pergunta não era as pessoas terem respondido afirmativamente, era a surpresa por tantas pessoas terem tido coragem de admitir aquele pensamento na resposta. Um pensamento que muitos tem como um fato cotidiano, por isso parecia que a pesquisa apenas confirmava oficialmente algo que “todos já sabiam”.
Essa impressão foi reforçada pelos 58% da pergunta “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. Ela questiona o mesmo, a única diferença é que nela você pode admitir de forma menos escancarada.
Mas enfim, o problema não é machismo, é como alguém disse, é a cultura patriarcal.
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