Salem Nasser: África do Sul contra Israel, o caso do século

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Nos dias 11 e 12 de janeiro de 2024, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judicial da ONU, realizou audiências públicas sobre o pedido apresentado pela África do Sul contra Israel por violações da Convenção sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio. As audiências foram no Palácio da Paz em Haia, Holanda, sede do Tribunal. Foto: CIJ/ONU

África do Sul vs. Israel: O caso do Século

Será interessante ver como se posicionam os usuais aliados de Israel, que intervieram num ou noutro dos casos anteriores, em relação à demanda da África do Sul.

Por Salem Nasser*, em Cegueira Seletiva

Não há exagero em dizer que o caso apresentado pela África do Sul, contra Israel, diante da Corte Internacional de Justiça (CIJ), por violações da Convenção sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio, será o equivalente legal, jurídico, do famoso confronto “Rumble in the Jungle”, a luta entre Mohamad Ali e Foreman, no Zaire.

Eu ensaio a seguir uma explicação tão completa quanto possível do caso e de sua relevância, em termos não tão técnicos e de modo sintético.

Alguns detalhes jurídicos importantes

A CIJ não julga pessoas. Ela julga casos entre dois Estados de cada vez, em casos contenciosos. Além dessa competência contenciosa, ela tem outra dita consultiva, pela qual dá pareceres, respondendo a perguntas jurídicas de instituições da ONU.

O caso da África do Sul é um caso contencioso contra Israel.

A soberania dos Estados é o princípio fundamental do Direito Internacional. Por causa desse princípio, um Estado só pode ser julgado por um tribunal internacional se tiver aceitado expressamente a sua jurisdição.

Isto quer dizer que, neste caso, se Israel não fosse parte da Convenção do Genocídio e se não tivesse aceitado o artigo da Convenção que determina a jurisdição da CIJ, o caso não poderia existir.

É claro que nos próximos movimentos Israel vai, muito provavelmente, desafiar a jurisdição da CIJ.

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Se isso acontecer, estaremos diante de um ou dois anos de discussões sobre esse tema apenas. Se, ao final, a Corte decidir pela sua própria jurisdição, teremos então mais alguns anos de discussão do mérito e logo uma sentença final que nos dirá se Israel é culpado ou inocente. A decisão, portanto, sobre as violações da Convenção, não virá tão cedo.

A discussão que começou nos dias 11 e 12 de janeiro, é outra.

A África do Sul pediu medidas provisórias ou cautelares, entre estas uma ordem da Corte para que Israel interrompa os ataques contra Gaza. Quando tais medidas são demandadas, elas têm preferência sobre todos os outros casos sob análise.

Para poder decidir sobre as medidas provisórias, a Corte precisa decidir algumas coisas básicas.

A principal é esta: tem o que se chama de jurisdição prima facie.

Como disse, discutir a jurisdição pode tomar muito tempo. Aqui, a Corte precisa apenas estar satisfeita de que há a alta probabilidade de ser competente, de poder julgar o caso.

Todas as coisas consideradas, é muito provável que a CIJ considere ter jurisdição prima facie e que acabe emitindo algum tipo de medida provisória neste caso.

Essa conclusão decorre, para mim, de uma leitura do Direito, mas também de uma leitura do contexto em que o caso será julgado na Corte.

O contexto do caso dentro da Corte

Este é o quinto caso contencioso trazido à Corte em que um Estado acusa outro de descumprimento da Convenção do Genocídio.

Os quatro anteriores são estes: Bósnia-Herzegovina vs. Sérvia-Montenegro, iniciado em 1993; Croácia vs. Sérvia, iniciado em 1999; Gâmbia vs. Mianmar, de 2019 e Ucrânia vs. Rússia, que começou em 2022.

O histórico dos casos pode nos dar pistas, sobre o que se pode decidir sobre medidas provisórias e sobre o que pode ser o resultado final em relação à violação da Convenção.

As pistas decorrem da jurisprudência da Corte, como instituição, e também do posicionamento de juízes individuais em casos anteriores.

Sobre isso, é preciso dizer que, em princípio, os juízes que compõem a Corte são independentes e não respondem a seus países de nacionalidade ou aos países que os indicam quando são juízes ad hoc (nomeados apenas para um caso específico, o que acontece com um juíz da África do Sul e outro de Israel agora).

Ainda que os juízes frequentemente se posicionem levando em conta a sua própria origem e os interesses dos Estados de onde provêm, as decisões do coletivo acabam sendo equilibradas pela diversidade, pelo número de juízes e pela consciência de que a Corte Internacional mais importante do mundo não pode ser vista como irresponsável, incompetente ou ilegítima.

Em comparação com tribunais internacionais de Direitos Humanos ou de Direito Penal Internacional, assim como com tribunais arbitrais em matérias de investimento, a CIJ tende a manter um padrão de qualidade das decisões que é superior em precisão jurídica e em equilíbrio.

Tudo isso será testado agora, talvez de um modo sem precedentes.

Vamos considerar apenas os dois últimos casos trazidos à Corte para vermos como podem impactar a demanda da África do Sul contra Israel.

Em Gambia vs. Mianmar, a Corte aprovou por unanimidade medidas provisórias a serem observadas por Mianmar, em 2020.

Desde então, três novos juízes se juntaram à Corte. Todas as coisas consideradas, os casos tendo vários elementos em comum, deve-se esperar que também aqui a Corte determine medidas provisórias que obriguem Israel.

Em Ucrânia vs. Rússia, a Corte, por maioria de 13 votos a dois, também impôs medidas provisórias contra a Rússia. Os votos dissidentes vieram do juiz russo e da juíza chinesa.

O que é mais relevante neste segundo caso é o fato de que a Ucrânia não acusa a Rússia de cometer genocídio ou de não prevenir ou punir o cometimento do crime.

A Ucrânia diz que a Rússia teria invocado, falsamente, a ocorrência de genocídio nas províncias do leste da Ucrânia, como justificativa para a sua operação militar.

Não há dúvida, portanto, de que, na substância, é um caso muito mais frágil e que as chances de sucesso, nas fases seguintes, é menor.

Outro aspecto muito importante deste caso, da Ucrânia, é o fato, sem precedentes, de que 32 países, vários deles ocidentais, pediram e obtiveram o direito de intervirem no processo. A Rússia considerou que esta era uma manobra pela qual se construía um caso contencioso de 33 Estados contra um.

Uma estratégia similar foi também empregada, por um número menor de Estados, no caso de Gambia contra Mianmar.

Agora, é preciso esperar para ver se Estados pedirão para intervir no caso da África do Sul e se serão os mesmos.

Será interessante ver como se posicionam os usuais aliados de Israel, que intervieram num ou noutro dos casos anteriores, em relação à demanda da África do Sul.

O teste para a Corte pode ser resumido assim: nos casos de Mianmar e Rússia, o coletivo foi na direção que agradava ao que se costuma chamar de Comunidade Internacional (EUA e Europa, basicamente); neste caso, para ser consistente com o que decidiu no passado, terá de caminhar em sentido contrário.

A ser continuado….

*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito Internacional. É autor de vários livros, entre outros os quais Direito global: normas e suas relações (Alamedina)

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