Sóter, Moretti e Ventura: Em plena pandemia, governo Bolsonaro quer tirar R$ 14 bi do orçamento do SUS para 2021

Tempo de leitura: 4 min

Em plena pandemia, proposta de orçamento do governo para 2021 pode tirar R$14 bi de um SUS já espremido

por Ana Paula Sóter, Bruno Moretti e Otávio Ventura*, especial para o Viomundo

A pandemia do novo coronavírus torna ainda mais visível a relevância do Sistema Único de Saúde – SUS.

Cronicamente subfinanciado, o sistema público de saúde dispõe de menos da metade dos leitos de UTI, ao mesmo tempo em que cerca de 3/4 da população dependem exclusivamente do SUS.

O cruzamento dos números relativos à distribuição de leitos e ao acesso às redes pública e privada de saúde dá contornos nítidos às nossas desigualdades:

 Fonte: DataSus e ANS. Elaboração dos autores.

O desfinanciamento do SUS, sobretudo em razão do congelamento do piso de aplicação de saúde pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, agrava o quadro.

Comparando o valor obrigatório anteriormente vigente com os valores executados (2018 e 2019) e aprovados pelo Congresso na Lei Orçamentária Anual (2020), estima-se perda de R$ 22,5 bilhões para o SUS [1].

Entre 2017 e 2019, os valores per capita aplicados em saúde, a preços de 2019, caíram de R$ 594 para R$ 582. A combinação de menos recursos e aumento da demanda cria um quadro insustentável para o SUS.

Estruturalmente, o setor já convive com demandas crescentes em razão da transição epidemiológica, demográfica e nutricional, entre outros fatores. A pandemia do coronavírus acrescenta novas pressões.

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Durante o estado de calamidade, as regras de gasto restritivas estão temporariamente suspensas, viabilizando alguma expansão da despesa.

Neste contexto, créditos extraordinários, não contabilizados no teto de gastos, alocaram R$ 13,3 bilhões no SUS.

O orçamento de ações e serviços públicos de saúde passou a ter dotação de R$ 138,5 bilhões em 2020.

A constituição de um orçamento paralelo, por meio da PEC nº 10, de 2020, é uma maneira de realizar despesas adicionais e temporárias, em função da crise sanitária e econômica, mantendo as regras fiscais intactas para o período pós-pandemia.

Ou seja, o orçamento paralelo (ou de guerra, como alguns denominam) é uma maneira de mudar para tudo ficar no mesmo lugar.

A maior vítima da insistência na austeridade será, mais uma vez, o SUS.

Após o estado de calamidade, haverá ainda mais demandas dirigidas à saúde, considerando, entre outras questões, o aumento do desemprego, que deverá reduzir o número de usuários dos planos de saúde. Entre 2015 e 2019, 3,5 milhões de pessoas ficaram sem acesso à saúde suplementar.

O número deve crescer com a piora do mercado de trabalho.

Outro aspecto que evidencia a miopia das regras fiscais é o complexo industrial da saúde (medicamentos, vacinas, equipamentos, materiais médicos, entre outros).

O Brasil importa cerca de US$ 20 bilhões na área da saúde. A dependência tecnológica drena recursos para o exterior e dificulta o acesso da população a insumos de saúde.

A pandemia evidenciou que as políticas públicas de desenvolvimento da base produtiva e de fomento à pesquisa no setor são investimentos fundamentais para a garantia do direito à saúde.

A retomada de políticas públicas que reduzam nossa vulnerabilidade externa esbarra, contudo, no contingenciamento e redução de recursos do SUS e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Retomando-se as regras fiscais no período pós-pandemia, o principal parâmetro para elaboração do orçamento de saúde de 2021 será o valor mínimo obrigatório de aplicação no setor, congelado pela Emenda Constitucional nº 95.

Para um Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA estimado, de julho de 2019 a junho de 2020, de 3%, o orçamento mínimo da saúde seria de R$ 124,9 bi em 2021, cerca de R$ 14 bilhões menor que o orçamento previsto de 2020.

Fonte: SIOP e BCB. Para 2020, considerou-se LOA + créditos. Para 2021, considerou-se o piso da EC95, estimando IPCA de 3,0%. Elaboração dos autores.

Uma proposta, apresentada no âmbito da PEC 10, define um piso emergencial de saúde para 2021, constituído do valor aplicado em 2020, mais o IPCA, o que garantiria cerca de R$ 143 bilhões ao SUS no projeto orçamentário de 2021, R$ 18 bilhões acima do que seria o piso congelado pela EC 95 [2].

O Senado votará a PEC 10/2020, sob a justificativa de dotar o Poder Executivo de instrumentos fiscais e monetários para agir durante a crise. Em especial, deverá ser aprovada autorização para o Banco Central comprar carteiras de ativos privados no mercado financeiro, de modo a conter a sua desvalorização e salvar bancos e fundos de investimentos.

Na mesma PEC, o Parlamento deveria rever a regra do mínimo obrigatório do SUS, evitando a possibilidade de o Executivo encaminhar um orçamento para o SUS em 2021 com redução de R$ 14 bilhões em relação ao autorizado para 2020.

A emergência de saúde pública, decorrente do novo coronavírus, impõe desafios ainda maiores ao sistema de saúde, cabendo ao Congresso Nacional definir regras de financiamento compatíveis com as demandas da população por mais e melhores serviços públicos.

Afinal, os representantes do povo não podem legislar apenas em favor da turma da Faria Lima.

PS do Viomundo: Este texto foi atualizado para correção do volume de recursos que o SUS perderá no orçamento de 2021. O correto é R$ 14 bilhões e não R$ 18 bilhões, como constava inicialmente.

*Ana Paula Sóter é médica e doutoranda em saúde coletiva pela Unifesp.

Bruno Moretti é economista pela UFF, mestre em economia pela UFRJ, doutor e pós-doutor em sociologia pela UnB.

Otávio Ventura é mestre e doutorando em ciência política pela UnB

[1] https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/mudar-a-politica-economica-e-fortalecer-o-sus-para-evitar-o-caos/46220/

[2] Para maiores detalhes, ver https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/dinheiro-novo-da-saude-deve-ser-permanente/.

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