Lelê Teles: A noite que um diabo punk escapou da garrafa e abalou Brasília

Tempo de leitura: 4 min

Legião Suburbana: a noite que abalou brasília

Por Lelê Teles*

02 de fevereiro de 1988, a noite mais esperada do urderground de brasília.

cinco bandas do gama enlouqueceriam o bar bom demais, na 706 norte, importante reduto da cena cultural da capital.

por lá transitavam, trôpegos e tronchos, professores e estudantes universitários, artistas, poetas e filósofos embriagados, tragadores de fumaça, vendedores de ervas, boêmios clássicos, punks e afins.

o evento foi capa do caderno dois do correio braziliense por dois dias seguidos: “o gama invade as asas do poder”.

o boteco nunca havia recebido tanta gente, embora a incrível cássia eller costumasse se apresentar por lá.

crematório, sthultzapfchen, komsomolskaya, necrotério e o dia d subiriam no pequeno palco espremido no fundo do puxadinho do bar.

o sthultzapfchen já era uma velha conhecida da cidade, foi a primeira banda punk a gravar um disco no centro oeste, dividindo um split com o bsb-h.

os selvagens suburbanos, que estão na ativa até hoje, cantavam em alemão, inglês e português.

minha banda, komsomolskaya, era composta por três molecotes de 16 anos e um baterista de 13.

e eu compunha em português de trás pra frente, inglês e espanhol.

era uma gritaria desvairada, vagabunda, vigorosa e estridente: xingamentos, ofensas, críticas, peidos, arrotos e escarrações.

o crematório era a melhor banda de death metal que o df já teve.

depois de um show memorável que fizeram com o chakal, no sesc da 913 sul, a empresária do sepultura tentou levá-los pra gravar na cogumelo, selo que lançou os famosos mineiros.

o dia d misturava poesia periférica e delírios suburbanos com protesto juvenil e crítica social.

e a necrotério era uma espécie de teatro punk com guitarras metaleiras: gritos, urros e pé na porta.

o público sabia que a noite seria absurdamente louca.

às oito da noite parou, na frente do bar, um caminhão baú, que fazia entrega de leite no comércio.

do fundo daquela garganta úmida e escura, saiu uma horda de cabeludos com seus instrumentos na mão.

eram os caras do gama, os punks da periferia.

uma molecada empoeirada, divertida e cheia de ódio.

o crematório (acima, na foto da manchete de jornal), com o meu irmão (branco) no vocal, botou a casa abaixo.

o baterista, maciel, tinha uns 14 anos e já era considerado um dos melhores bateras do df.

só a apresentação dos caras já teria valido aquela noite.

em seguida, subiu o dia d, cujo baterista (negão) era guitarrista da minha banda.

a cabeçada estava ensandecida.

minha mãe, que gostava de ver os filhos punks enlouquecidos, disputava cotoveladas no meio da multidão.

de repente, no meio da segunda música, uma cadeira voou, do nada, e acertou o baterista.

algo havia saído do controle.

uma malta de skin heads anabolizados invadiu o recinto.

além dos músculos e da falta de cérebro, os brutamontes exibiam soco inglês, porretes, tacos de baseball, correntes e machadinhas.

foi um quebra-quebra geral.

no meio da penumbra esfumaçada – cigarro, maconha, gelo seco e bufa de roqueiro – ouvia-se gritos, lamentos e pedidos de socorro.

estilhaços de copos e garrafas espalharam-se por toda parte, ruídos de cadeiras se arrastando e sendo quebradas…

socos, ponta-pés, cabeçadas, choro e ranger de dentes.

desatou-se uma desesperada correria…

sangue no chão, sangue nas mãos, sangue no olho.

a blitzkrieg dos carecas pegou todos de surpresa.

com o bar destruído, a pancadaria ganhou a rua.

em pouco tempo, o grupo de operações especiais da pm, a temida patamo, fechou o cerco.

pretendiam acabar com a porradaria distribuindo mais porradas.

as paredes escuras da comercial se iluminavam com o pisca-pisca azul e vermelho.

sirenes rasgavam a neblina, homens fortemente armados, conduzindo cães com dentes à mostra, avançavam contra agressores e vítimas.

o diabo havia escapado da garrafa.

satanás, sorrindo e dançando, lançava gás lacrimogêneo na moçada, misturando na opacidade carecas, punks, pms e headbangers, transformando tudo numa massa só.

e todo mundo se espancava.

cassetetes golpeavam impiedosamente, balas de borracha passavam zumbindo, correntes rasgavam carnes, punks socavam punks, os cães mordiam a polícia, uma confusão dos infernos.

a burocrática vizinhança, com seus crachás pendurados em pijamas, estava apavorada com aquele frenesi turbulento.

aqueles bunda-mole, que detestam a alegria do carnaval de brasília, só queriam voltar a dormir.

os que apareciam no portão, para falar deasaforos, levavam cusparadas.

a polícia chamou reforço.

passamos a ouvir o som ruidoso de um helicóptero.

a nave militar, qual um terrível monstro alado, abria a boca e cuspia fogo.

o movimento das hélices do pterodáctilo de aço, levantou muita poeira, assanhando cabelos e dispersando a balbúrdia.

como zumbis encachaçados, adolescentes corriam para todos os lados, deixando rastros de sangue e lágrimas.

protegi minha mãe o tempo todo e consegui levá-la para um lugar seguro.

aos poucos, o alarido das vozes foi diminuindo, como o mugido ruidoso de um rebanho que passa e logo mais vai dobrando uma curva da estrada.

o cheiro de gás lacrimogêneo criou uma redoma de fumo sobre a arena onde ocorria a refrega.

uma névoa apimentada e irritante sufocou as vozes, até que sobraram apenas alguns muchochos tímidos, os últimos ruídos metálicos de um cassetete elétrico, o latido fino de um cão que retorna à jaula, o surdo bater de portas, pneus em derrapagens…

e o silêncio.

satanás, de fininho, voltou para o fundo da garrafa.

na manhã seguinte, o jornalista irlan rocha publicava uma pequena nota no caderno dois, anunciando que os carecas estragaram uma noite apoteótica.

sei não.

há quem acredite que a noite foi perfeita.

palavra da salvação.

*Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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