José Eli da Veiga: Metade do Brasil continua pobre

Tempo de leitura: 3 min

Metade do Brasil continua pobre

José Eli da Veiga, no Valor Econômico – 21/09/2010

É ilusão supor que aqueles que ganham salário mas convivem com o risco de contrair parasitoses

Como a pobreza é privação de capacidades básicas, ela jamais deveria ser medida apenas com estatísticas de insuficiência de renda. É pobre mesmo quem tem renda superior ao critério de corte (“linha de pobreza”) se não puder convertê-la em vida decente. Por falta de saúde ou de educação ou outras carências.

Essa conclusão se apoia na imensa quantidade de minuciosas pesquisas feitas por equipes de primeira linha junto às populações mais desvalidas do mundo. Foram sintetizadas no livro “Desenvolvimento como liberdade”, do prêmio Nobel Amartya Sen (Companhia de Letras, 2000). Principalmente no quarto capítulo, intitulado “Pobreza como privação de capacidades”.

É leitura recomendável a quem acredita que só menos de um terço da população brasileira continua pobre porque em 2008 já não passavam de 28,8% os condenados a se virar com menos de meio salário mínimo. Basta outro dado bem objetivo para perceber que metade da população permanece pobre: a falta de acesso à rede de esgoto. Em 2009 eram 41% os domicílios sem saneamento básico, e é neles que ocorrem as mais altas densidades de habitantes.

Falta de acesso a esgoto impacta a inteligência das pessoas por causa de infecções parasitárias na infância. Evidência consolidada por recente estudo de Cristopher Epping e colaboradores, publicado no prestigioso periódico científico “Proceedings of the Royal Society”, e relatado pelo doutor Dráuzio Varella em sua coluna na “Folha de S. Paulo” de 11 de setembro.

O cérebro é o órgão do corpo humano que mais consome energia: 87% no recém-nascido, 44% aos cinco anos, 34% aos dez. As infecções parasitárias desviam energia para ativar o sistema imunológico. Repetidas diarreias até os cinco anos roubam do cérebro as calorias necessárias a seu desenvolvimento, podendo comprometer a inteligência para sempre.

É pura ilusão, portanto, supor que não sejam pobres pessoas que padeçam dessa catastrófica privação que é o permanente risco de contrair parasitoses, só porque ganham mais de meio salário mínimo. Chega a soar como propaganda enganosa o uso do tosco critério de renda monetária para dizer que a pobreza está despencando. Encobre a inépcia dos governos em enfrentar o desafio do saneamento.

O número de moradias consideradas inadequadas pelo IBGE só diminuiu dez pontos entre 1995 e 2002 (59,1% para 49,5%), e apenas cinco pontos entre 2003 e 2008 (48,3% para 43%). Se, ao contrário, tivesse sido dada prioridade ao acesso do andar de baixo a algo tão essencial quanto o esgoto, isso teria favorecido rápidos aumentos das médias do quociente de inteligência (QI), o chamado “efeito Flynn”.

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Mas não é só. Essa tragédia do saneamento básico também ajuda a entender quanto é falsa a afirmação de que a agenda socioambiental não seria de interesse dos menos favorecidos. Ou ainda, de que tal agenda só conseguiria sensibilizar os segmentos minoritários da sociedade que já estariam cultivando valores “pós-materialistas”.

A hipótese de significativa alteração das prioridades valorativas individuais em direção a uma postura “pós-materialista” foi lançada no final dos anos 1970 no livro “The Silent Revolution”, pelo cientista político americano Ronald F. Inglehart. Hoje ele dirige o World Values Survey, uma rede que pesquisa esse tema em 80 sociedades dos seis continentes habitados, cobrindo 85% da população global (www.worldvaluessurvey.org/).

Essa rede coleta evidências de que os fortes contrastes culturais não impedem que a prosperidade sempre provoque esse tipo de reorientação valorativa, com desdobramentos em várias esferas: da organização do trabalho às relações de gênero, do comportamento sexual à religiosidade. Na política, ela teria efeitos dos mais positivos para os processos de democratização.

No entanto, isso não foi confirmado pela pesquisa “Participação e pós-materialismo na América Latina”, dos professores Ednaldo Ribeiro e Julian Borba, cujos resultados estão no número de junho da revista Opinião Pública (vol. 16, n. 1, p. 28-63). Para a quase totalidade dos casos analisados, o simples grau de escolaridade do entrevistado superou a escala de materialismo/pós-materialismo.

O mais importante, todavia, é rejeitar a ideia de que a sustentabilidade como novo valor só poderá empolgar elites, sejam elas pós-materialistas ou só de alta escolaridade. Isso certamente acontece quando toda a ênfase é colocada nas mais complexas questões, como a ruptura climática, a erosão da biodiversidade, o plantio de sementes transgênicas, ou a geração nuclear de eletricidade, por exemplo. Todavia, não existem temas mais imediatamente socioambientais do que acesso à rede de esgoto, à água potável, ou à coleta de lixo.

Em suma: como a queda do contingente com menos de meio salário mínimo não está sendo acompanhada por mais acesso às exigências mínimas para decente padrão de vida, isso só reconfirma que será muito mais decisivo para o desenvolvimento um programa de qualidade socioambiental do crescimento do que o ilusório PAC.

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Comentários

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[…] e pelo governo, é como encaminhar a solução de problemas para erradicar a pobreza em suas condições não estritamente monetárias, como acesso a saneamento básico, algo que parece ter saído completamente do horizonte da […]

paulo

taí um bom debate, essa é a grande questão do basil pra todos, e viva esse brasil. acho que será esse sujeito que antes só lavava o carro do outro, e agora tem o seu que vai obrigar a gente a pensar melho em o que é qualidade de vida, dignidade vida decente e tudo mais. imagina cada brasileiro com seu carrinho, e cada chinezinho com mais um. então carro pra todo mundo não dá. nem pro amigo da baixada nem pro daniel dantas no leblon ok. o que muda esse mundo é a inclusão do que estava de fora, é o novo que traz a novidade não é? por isso mesmo tá certo distribuir a riqueza e a luxeza sim, até pra gente ver que esse luxo é o lixo que não dá mais pra esconder. a gente inventou os dois e pode inventar tudo de novo. as bases do raciocínio do eli são perfeitas, as conclusões são parciais.

Baixada Carioca

Êpa! 'Pera aí. Conheço um cidadão em Engenheiro Pedreira, distrito de Japeri, cidade que já foi considerada a mais miserável do RJ, que mora no bairro Caramujos (pelo nome vocês imaginam o porquê?) que não tem rede de esgoto oficial. Então o sujeito é pobre, pela avaliação do autor? Eu que moro num bairro agraciado pelo PAC do governo Lula, que foi saneado na gestão de Lindberg quando prefeito de Nova Iguaçu, posso ter deixado a pobreza, segundo o autor? Tá. Eu troco, sem pedir nada de volta, a minha "riqueza" pela pobreza do cara lá de Engenheiro Pedreira. Pô, o cara tem 2 carros na garagem e dois caminhões basculantes e uma motocicleta 400cc; uma casa que parece ser duas; título e barco na represa de Ribeirão das Lages e duas lojas de materiais de construção. Fora aquilo que não é do nosso conhecimento.

Êta textinho ruim de engolir sô!

ruypenalva

No dia que caganeira destruir inteligência é que a inteligência foi parar nos intestinos, saiu pela porta do céu e foi limpada com papel. Me poupem, Eli Veiga, com seu artigo é ideológico, despido de inteligência, quer apenas descontruir o PAC.

Antenor L Moreira

Sr. Eli,
Demagogos da sua marca não fazem mais sucesso por aqui.
A minha cidade, Vitória da Conquista, já foi conhecida como uma cidade que proliferava esgoto a céu aberto em todo o seu perímetro urbano.
Hoje já tem bastante esgoto nos bairros e em breve estará terminada a instalação da rede em toda a cidade e são obras do PAC.
Reconheço que nem todas as cidades é assim, mas, convenhamos, estamos no caminho certo.
Acho mesmo que é ilusória a sua afirmação de que o PAC inviabiliza crescimento ou diminuição da pobreza.

Gerson Carneiro

Olha aqui mermão: num sô pobre mais não. Não venha com essa milonga pra cima de mim, não. Hoje eu como salmão, viajo de avião, comprei carro novo, comprei apartamento, tomo vinho, compro roupa e tênis de marca. E tenho emprego fixo. Tenho até plano de saúde. Lembro que em 1992 eu e um colega ficávamos sentados no Cristo da Barra em Salvador olhando os carros passarem na orla e ficávamos conversando sobre quando um dia a gente ia ter um carro. Lembro bem que eu dividia o mundo entre os que tinham carro e os que não tinha. Hoje eu já não posso mais fazer essa divisão. A maioria tem. Então segura essa onda aí, mermão. Não vem com esse xingamento pra cima de mim, não. Esse negócio de que eu sou pobre, isso era no tempo de FêAgáCê, mermão. Isso aí já era.

Emilio Matos

Esse último parágrafo aí foi tirado de trás da orelha, não? "(…) a queda do contingente com menos de meio salário mínimo não está sendo acompanhada por mais acesso às exigências mínimas para decente padrão de vida (…)".

ruypenalva

Não existe nenhum estudo sério que prove que a subnutrição comprometa a inteligência. Seria preciso provar antes que a subnutrição diminui o número médio de neurônios ou o peso médio do cérebro. Tem muito comelão burro. Imaginar que rede de esgoto aumenta o QI é querer cagar fora do penico. O corpo, como um todo, dá prioridade ao cérebro por defaut, para se ter uma baixa de alimentação cerebral seria preciso uma desnutrição severíssima. A pobreza mental, antes da pobreza física, destroi mais o cérebro. Comer pouco é bom. Quanto menos se come mais se vive. Comida é um veneno, pois comemos muito além do que precisamos. O que se vê no Brasil de hoje é que o povo está cada dia ficando obeso. O pobre está comendo mais e melhor. Existe uma tendência hoje a não se olhar mais para o PIB como sinônimo de desenvolvimento, mas sim para indicadores sociais, nada mais justo. Mas se fome tivesse feito danos no cerébro o que seria dos russos, durante o tempo de Stalin e durante o cerco a Leningrado, a China, que nunca teve alimento suficiente para alimentar tanta gente. Imaginem a Índia, cada dia mais pujante. O mundo foi criado sem esgoto e se desenvolver. No Renascimento não havia esgoto.

    Roberto Takata

    "Não existe nenhum estudo sério que prove que a subnutrição comprometa a inteligência." Que isso? A literatura é abundante, só alguns: http://pediatrics.aappublications.org/cgi/contenthttp://journals.lww.com/pedresearch/Abstract/1976http://www.bmj.com/content/317/7171/1481.full?viehttp://jn.nutrition.org/cgi/content/abstract/125/
    ————-

    Roberto Takata

    ruypenalva

    Roberto, precisaria se isolar outros fatores: como educação, falta de oportunidade, convívio, relacionamento, acesso a informação para se mesurar a subnutrição como fator isolado, e isso é dificil de se fazer. Não é tão óbvio, precisaria ser uma subnutrição crônica, severa, tipo kwashiorkor para afetar o cérebro. Teríamos de admitir que a África não tem jeito, foi perdida para sempre para desnutrição. O nosso cérebro precisa mais de oxigênio e glicose, e isso não deve faltar tanto em desnutridos, pelo menos o oxigênio. Esse tipo de desnutrição, consequente à falta de saneamento básico (água e esgoto), não é tão severa no Brasil, mormente nas grandes cidades, nem mesmo no campo. Quem está falando isso não conhece o Brasil, fica na USP paginando trabalhos estrangeiros e dando assunto ao Drauzio Varela, que é blefe, médico de TV. Ao invés de se estar medindo o QI de desnutridos e procurando relacioná-lo com desnutrição, precisaria se verificar se existe diminuição neuronal, diminuição de sinapses, reduções orgânicas irreversíveis, na ausência de lesões por toxoplasma, cisticerco e outros parasitos que possam se alojar no tecido cerebral e danificá-lo. Esses estudos são provavelmente de África, de regiões devastadas por guerras, diárreias crônicas, falta de amamentação, desnutrição de adultos, falta total de alimentos, não só de doença diarreica, não se aplicam ao Brasil, que não presencia isso a esse nível. Durante os anos 1924 Stalin utilizou a fome como maneira de dobrar determinados grupos étnicos, mormente ucranianos, não existe relato que a inteligência desse pessoal diminuiu. Nem mesmo a inteligência de judeus de campos de concentração diminuiu, pois continuam a ganhar dinheiro mais do que ninguém. Japonês passou a vida inteira comendo arroz e conseguiu fazer a civilização de hoje, e olhe que arroz não alimenta. O Vietnam poderia ser um caso irrecuperável, mas não é isso que se vê. Inteligência, tal como medida em QI, tem muito de base genética e de informação adquirida. Não vou dizer que desnutrição faz bem ao cérebro, não faz, mas daí a concluir, como o Sr. Eli Veiga, que metade do Brasil é pobre e burro porque não tem água tratada e saneamento vai uma grande distância. Espero ter sido claro, mas não vou me dar ao trabalho de consultar os seus trabalhos, pois não estamos numa discussão desse nível. Talvez esses brasileiros que o Eli (Deus em hebraico) fala não consigam entrar na USP, mas são espertíssimos, artesões, constroem cidades, compõem, fazem poesias, são artífices, mas realmente, não servem para USP, que também não serve para nada. Tá, kata!

    mario

    Excelente. Barba, cabelo, bigode e muito mais… Novamente parabéns… Resposta, texto e contexto imbatíveis…

    Augusto Gasparoni

    Rui, você falou tudo que esse teórico precisava de contraponto. Teorias de subnutrição aliado a falta de saneamento conduzindo a deficiências mentais às favas. Estão aí a India, China, e todos os tigres asiáticos para demonstrar evidências contrárias. O mais importante é que o povo se sinta motivado, sendo cuidado.
    Diferentemente da África, afinal qual a motivação, sinergia?
    Evidentemente que por cidadania, saúde pública, custos previdenciais, humanismo, e muitos outros motivos, o saneamento é meta indispensável, porém fazer terrorismo com isso é oportunismo barato.
    Caminhamos prá lá, resolver este problema também herdado. É Dilma lá!!!!.

    Baixada Carioca

    Pela suposição do texto, um fazendeiro no interior do MS é pobre. Não importa quantas cabeças de gado, quantos tratores ou bens se possua na fazenda. Ele não tem a sua privada ligada à uma rede de esgoto, é pobre! Pobre Eli.

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