por Fábio Konder Comparato, no Conversa Afiada
A Corte Interamericana de Direitos Humanos acaba de decidir que o Brasil descumpriu duas vezes a Convenção Americana de Direitos Humanos. Em primeiro lugar, por não haver processado e julgado os autores dos crimes de homicídio e ocultação de cadáver de mais 60 pessoas, na chamada Guerrilha do Araguaia. Em segundo lugar, pelo fato de o nosso Supremo Tribunal Federal haver interpretado a lei de anistia de 1979 como tendo apagado os crimes de homicídio, tortura e estupro de oponentes políticos, a maior parte deles quando já presos pelas autoridades policiais e militares.
O Estado brasileiro foi, em conseqüência, condenado a indenizar os familiares dos mortos e desaparecidos.
Além dessa condenação jurídica explícita, porém, o acórdão da Corte Interamericana de Direitos Humanos contém uma condenação moral implícita.
Com efeito, responsáveis morais por essa condenação judicial, ignominiosa para o país, foram os grupos oligárquicos que dominam a vida nacional, notadamente os empresários que apoiaram o golpe de Estado de 1964 e financiaram a articulação do sistema repressivo durante duas décadas. Foram também eles que, controlando os grandes veículos de imprensa, rádio e televisão do país, manifestaram-se a favor da anistia aos assassinos, torturadores e estupradores do regime militar. O próprio autor destas linhas, quando ousou criticar um editorial da Folha de S.Paulo, por haver afirmado que a nossa ditadura fora uma “ditabranda”, foi impunemente qualificado de “cínico e mentiroso” pelo diretor de redação do jornal.
Mas a condenação moral do veredicto pronunciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos atingiu também, e lamentavelmente, o atual governo federal, a começar pelo seu chefe, o presidente da República.
Explico-me. A Lei Complementar nº 73, de 1993, que regulamenta a Advocacia-Geral da União, determina, em seu art. 3º, § 1º, que o Advogado-Geral da União é “submetido à direta, pessoal e imediata supervisão” do presidente da República. Pois bem, o presidente Lula deu instruções diretas, pessoais e imediatas ao então Advogado-Geral da União, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, para se pronunciar contra a demanda ajuizada pela OAB junto ao Supremo Tribunal Federal (argüição de descumprimento de preceito fundamental nº 153), no sentido de interpretar a lei de anistia de 1979, como não abrangente dos crimes comuns cometidos pelos agentes públicos, policiais e militares, contra os oponentes políticos ao regime militar.
Mas a condenação moral vai ainda mais além. Ela atinge, em cheio, o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República, que se pronunciaram claramente contra o sistema internacional de direitos humanos, ao qual o Brasil deve submeter-se.
E agora, Brasil?
Bem, antes de mais nada, é preciso dizer que se o nosso país não acatar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ele ficará como um Estado fora-da-lei no plano internacional.
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E como acatar essa decisão condenatória?
Não basta pagar as indenizações determinadas pelo acórdão. É indispensável dar cumprimento ao art. 37, § 6º da Constituição Federal, que obriga o Estado, quando condenado a indenizar alguém por culpa de agente público, a promover de imediato uma ação regressiva contra o causador do dano. E isto, pela boa e simples razão de que toda indenização paga pelo Estado provém de recursos públicos, vale dizer, é feita com dinheiro do povo.
É preciso, também, tal como fizeram todos os países do Cone Sul da América Latina, resolver o problema da anistia mal concedida. Nesse particular, o futuro governo federal poderia utilizar-se do projeto de lei apresentado pela Deputada Luciana Genro à Câmara dos Deputados, dando à Lei nº 6.683 a interpretação que o Supremo Tribunal Federal recusou-se a dar: ou seja, excluindo da anistia os assassinos e torturadores de presos políticos. Tradicionalmente, a interpretação autêntica de uma lei é dada pelo próprio Poder Legislativo.
Mas, sobretudo, o que falta e sempre faltou neste país, é abrir de par em par, às novas gerações, as portas do nosso porão histórico, onde escondemos todos os horrores cometidos impunemente pelas nossas classes dirigentes; a começar pela escravidão, durante mais de três séculos, de milhões de africanos e afrodescendentes.
Viva o Povo Brasileiro!
Comentários
caf
os torturadores fardados da ditadura militar devem ser julgados e condenadospor todos os seus crimes.
Henrique
"E agora Brasil?" Muito simples: vamos "abrir as portas dos porões da ditadura" APÓS o último benificiário da Anistia (ampla, geral e irrestrita) já tiver morrido! O tempo na historiografia é muito lento, desejar acelerá-lo é querer satisfazer o desejo de vingança!
Baixada Carioca
E quem acredita nesse judiciário brasileiro? Eles até podem dar umas migalhas aos pobres e injustiçados, mas isso é exceção. Em regra, vale o que pensa a elite que dominou nesse Brasil por anos e anos.
Luci
E a gora Brasil? Que o povo conheça o que habita o "porão histórico" pela memória, verdade e justiça.
Sem "porão histórico" e sem tortura.
fernandoeudonatelo
Apesar do conteúdo da decisão ser corretíssima, representando senso de humanidade por parte de um organismo internacional ao qual somos vinculados, é inadmissível ser ameaçado e punido como fora-da-lei, sendo um Estado que ao menos iniciou movimentos de discussão com a sociedade civil e fomentou grupos sociais na direção de um Consenso em Direitos Humanos, a partir dos preceitos apoiados por nós no CDH da ONU.
Mesmo que não tivessemos batido de frente com as forças reacionárias, acobertadoras da tortura e dos assassinatos, fizemos programas, criamos diretrizes estratégicas e desenvolvemos planos integradores a partir da CF de 88, tentando reformular nosso senso de bem-estar socio-econômico, deteriorado pelos Anos de Chumbo.
Fomos negligentes e até certo ponto coniventes, merecemos o resultado do julgamento, mas daí compactuar com possíveis sanções diplomáticas ou restrições comerciais internacionais, vão me desculpar, mas como o Stedile falou seria uma sacanagem.
Luci
Justiça seja feita aos ministros Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Carmen Lucia e Aires Brito. Por trás desta confirmação de Anistia a torturadores pelo STF, há o que está escondido no porão histórico; definição de Fabio K. Comparato; quais são as empresas que bancaram a ditadura, quais veículos de imprensa e personalidades. Há muita gente posando de mocinho e que se omitiu, diante do momento trágico e doloroso que o país viveu.Quais os fatos marcantes do período que encobriam as torturas.Que se arrebentem as correntes do "porão histórico", que caiam as máscaras, porque diante do mundo aqui não se pune torturadores, sequestradores, estrupadores. Viva o Povo Brasileiro, que tem Fabio Konder Comparato, o Ministro do Povo.
Marcelo Fraga
O Governo e o Judicíário precisavam desse "sacode" pra entenderem que gente de fora está vendo a omissão nessa questão de anistia e punição de torturadores.
Paulo Roberto
Manda quem pode, obedece quem tem juízo. As "forças ocultas" citadas por Jânio Quadros ainda estão presentes entre nós. Oxalá a nossa Presidenta Guerilheira consiga, afinal, vencê-las, para o bem do povo brasileiro.
Fabio_Passos
E agora tem de investigar e punir os responsáveis por crimes contra a humanidade.
Chega de esconder a sujeira debaixo do tapete.
Guilherme
Não é por nada, mas será que já ouviram falar em soberania do Estado brasileiro? Que piada é essa. Vem um tribunal internacional e tenta reformar decisão da Suprema Corte do país? Nem estou discutindo o mérito da questão,mas se o STF decidiu, está decidido. Repito: é a Corte Superior do país.
Só me faltava essa agora. Gente de fora querendo dar pitacos nas nossas leis!
Pedro
Bem, se o Brasil assinou com a OEA e se submeteu à seu julgamento.
Mas não concordo com seu julgamento. Sabem quem são os países que não se submetem ao Tribunal Penal Internacional? EUA, Israel, China e outro que preferem que coisas como direitos humanos, crimes contra a humanidade e outras barbáries sejam julgadas de acordo com eles. Resumindo, fojem de um Tribunal que não os condenaria.
Organismos internacionais são essenciais para julgar crimes, imagine se cada um julgasse do jeito que quisesse, se um país considerasse ou não algo um crime contra a humanidade por pura conveniência ou coisa parecida?
Mário
Meu caro Guilherme, isso não é ofensa à soberania brasileira, pois o Estado brasileiro é signatário do Pacto de San José da Costa Rica e, assim, está sujeito à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Você sabe muito bem que esse Tratado tem natureza jurídica de norma constitucional, conforme reconhece o próprio STF.
Mário Henrique Alberton
dukrai
A Corte Interamericana de Direitos Humanos deu uma bofetada na cara do presidente Lula, do STF, do Legislativo e das Forças Armadas, em suma, do estado brasileiro e a sua dignidade só será restaurada com a punição dos torturadores e assassinos de presos políticos.
A covardia que imobiliza os três poderes nasce da suspeitíssima fidelidade das forças armadas à democracia e deste modo reconhece o espírito anti-democrático e ectoplasmático da ditadura de 64 que continua a nos reger, um cadáver insepulto que assombra corações e mentes.
Pedro Luiz Paredes
"O Estado brasileiro foi, em conseqüência, condenado a indenizar os familiares dos mortos e desaparecidos."
Condenado…
kkkkkkkkkkkkk
Agora mudaram a CF e eu não fiquei sabendo!
Wanderson Aguilar
É por causa de juristas como Conder que eu não larguei a faculdade de direito ainda! É o antro mais conservador da Terra, talvez até do Universo e isso se reflete na qualidade geral de nossos promotores – hoje todos com tendência para o estrelismo midiatico – e os nosso magistrados – se acham Deuses e pra quem duvida de tal natureza divina, eles são capazes de editar uma súmula vinculante atestando a mesma…
mariazinha
Pelo seu jeito de falar, meu filho, VC será necessário para que esses inúteis,aos poucos, sejam defenestrados. Como tem gente incompetente e frívola entre advogados e afins, nesse país! É impressionante a empáfia que acomete essas pessoas! Magistrados, não parecem DEUSES; são o DIABO em pessoa.
mariazinha
Muito bem que o BRASIL tem uma justiça inépta mas, depois dos uikiliques é impossível qqer. órgão internacional fazer-se de bonzinho e cumpridor das LEIS; fecharam os olhos para montes de horrores. Os buches ajudaram e ensinaram às nossas forças armadas a serem cruéis; está nas declarações de um espião da cia, baseado no Brasil. Quem irá punir eua/israel por suas guerras fratricidas, injustas e horrendas, por Guantánamo, pelo Afeganistão?
Deixa que, do BRASIL, cuidamos nós, né seu Comparato?
galvão
Que os torturadores fiquem com você mariazinha!!!!
mariazinha
Se torturadores me fossem entregues para o castigo, caro, saberia muito bem como faze-lo. Não precisaria nem recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos, para pedir conselhos. Garanto-lhe que iriam se arrepender do que fizeram. O problema seria chegarem até às minhas unhas afiadas.
Aldo
Aos companheiros da Lapa : Presente!
Luci
E agora quando falamos em Justiça No Brasil ficamos com a sensação de cadeira vazia por respeito a memória, a verde e a justiça. A tortura é impune desde 1540, quando torturas foram praticadas impunemente contra africanos e afrodescednetes, esta sé a origem da violência e da impunidade o "porão' como identifica o professor Fácio Konder Comparato.Justiça e Direitos Humanos são valores universais. Interpretação jurídica por vaidade arraigada a valores ultrapassados , conservadores, sem independência, sem imparcialidade representam a cadeira vazia diante da nova ordem mundial pelaprevalência dos Direitos Humanos. http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2010/04…
Mário SF Alves
Luci,
A questão tem, sim, uma delicadíssima dimensão política. E, independentemente disso, a luta por fazer valer os princípios democráticos da Constituição Federal é cada vez mais imprescindível. O PIG representado pela sua coligada FSP, sem o menor pudor, sem a menor consideração quanto a desdobramentos políticos, sem o menor respeito com a via institucional e sem a menor consideração ao eleitor, escarafunchou os porões da ditadura com a única finalidade de expor possíveis fragilidades da Presidente eleita. Gesto desleal; revanchismo; deselegância e arrogância de quem se acostumou ao “tudo pode”. Tão simples, assim.
Mas, nada disso já nos surpreende. A desfaçatez chega ao ponto de se utilizar como argumento as abominações de 500 anos atrás ou voltar aos primórdios da civilização recordando as desumanidades de então com a indisfarçável intenção de justificar a tortura no presente. É a lógica do tempo parado e das consciências congeladas. Mas, como diria o Chico Buarque, vai passar!
Heitor
O Brasil tem um problema crônico. Os juízes são velhos e oriundos de feudos que se deram bem na época da ditadura. São homens incapazes de julgar com isenção, pois tem em si uma genética a favor das minorias. O STF é uma vergonha. Infelizmente somente o tempo nos libertará do convívio destes senhores mal amados.
Luci
Todos de cabelos brancos, mas sem consciência do que suas decisões representam para a Nação, para a vida de milhões de brasileiros e para as futuras gerações. Parecem se importar só com a oligarquia.É um escândalo, vergonha e decepção.
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