Elaine Santos e Rachel Gouveia: O copiloto alemão e a proibição de adoecer em tempos de crise

Tempo de leitura: 5 min

Copiloto alemão

Em tempos de austeridade, adoecer não é permitido.

por Elaine Santos e  Rachel Gouveia, especial para o Viomundo

Em tempos de crise, admitir seu próprio adoecimento e reconhecê-lo como direito à licença trabalhista, tornou-se algo impensável. A reportagem da Folha de São Paulo, publicada no dia 28 de março de 2015, nos chamou a atenção de como foi retratado o caso do piloto que, supostamente, lançou um avião Airbus A320, deliberadamente, com mais 149 pessoas.

Vale destacar também que depois dos ataques de 11 de setembro os serviços de proteção à aviação intensificaram as regras de proteção dos pilotos. No caso do modelo A320 implantou-se uma tecnologia que permite a abertura apenas da porta por quem estivesse na área ocupada pelo piloto e copiloto. Há ainda um botão com código de segurança, que pode ser acionado para abertura da cabine, caso um dos pilotos esteja ausente, mas o mesmo só pode ser ativado quando alguém o destrava da parte interna.

Ou seja, há uma dependência entre os pilotos para o acesso a cabine, tudo isto para que o acesso seja limitado e possivelmente mais seguro.  Tal tecnologia fora confirmada pelo presidente da Lufthansa, proprietária da Germannwings:

“Se um dos pilotos deixa a cabine, é possível chamar do lado de fora. O piloto pode olhar e ver quem quer entrar e você pode abrir a porta, controlada eletronicamente. Temos procedimentos, se o piloto saiu e o que ficou dentro está inconsciente, há um código que pode ser utilizado. Há um barulho dentro da cabine, e se ninguém abrir, a porta se abre eletronicamente. Mas a pessoa que está do lado de dentro pode impedir que a porta se abra”.

Para além das políticas antiterroristas, que agora podem ter sua eficácia interrogada, uma vez que a premissa era a garantia proteção da vida humana tanto dos pilotos como dos passageiros que são cada vez mais numerosos em virtude dos voos chamados low cost,vale questionar a quem tais medidas serviram efetivamente.

O caso tem sido noticiado em todo mundo, a diferença foi que ao lermos a chamada da página inicial da Folha de São Paulo, está à distinção do olhar em relação à situação. Problematizar os inúmeros porquês que envolvem o piloto e sua atitude faz parte da necessidade imediata de explicarmos o que realmente o levou a cometer tal atitude, ou seja, dar significado a um fenômeno aparentemente individual. Considerando que nenhum homem é uma ilha, os fenômenos devem ser analisados sempre no âmbito coletivo.

Nesta toada, é preciso questionar em que e em quais condições, hoje, se encontram os trabalhadores em tempos de austeridade. Esconder um determinado adoecimento, para manter-se empregado, é um sinal de que os fatores econômicos interferem diretamente nas relações do cotidiano e na organização psíquica dos indivíduos.

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Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos” apresentou ao mundo, de forma cômica e brilhante, o processo de trabalho fabril e os impactos na organização psíquica do trabalhador.

A submissão dos trabalhadores ao estresse desenvolvido pela exploração do trabalho tem se aprofundado, chamando-nos a atenção de que, em tempos de crise, a submissão, a flexibilização e a precarização perpassa a vida de milhares de homens e mulheres, junto com o fantasma do desemprego.

Segundo o sociólogo Ruy Braga, em sua recente publicação A Pulsão Plebeia [1], as políticas agressivas de austeridade vêm degradando as condições de vida da população europeia.

Para o autor, estas políticas objetivam apenas capitalizar os bancos e restabelecer a taxa de lucro das empresas, a desagregação do trabalho e as consequências da instabilidade da crise podem ser assistidas no recente aumento do número de acidente e mortes no trabalho, além da resiliência dos trabalhadores, jovens em sua maioria, submetidos à informalidade e aos contratos temporários.

Tal aviltamento aparece em inúmeros artigos que relacionam a precarização do trabalho com o chamado “risco invisível” que são as patologias psicossociais geradas a partir das condições de trabalho em que cada indivíduo é submetido.

Na Grécia e na Espanha, o número de distúrbios mentais e suicídios têm aumentado desde 2007. Desde a Troika [2], o número de suicídios tem aumentado circunstancialmente em Portugal.

Também é necessário avaliar que não se trata de uma crise momentânea capaz de aumentar o número de suicídios e sim da mensagem pública que acompanha as políticas de austeridade, uma vez que os cortes aparecem aos indivíduos como uma situação de pobreza imediata sem qualquer perspectiva futura de prosperidade, uma ruptura de um suposto equilíbrio, que sem ambições e regulamentações causam sofrimento e consequentemente suicídios e distúrbios.

O direito de adoecer está sendo negado por tais condições e colocado em xeque à competência dos trabalhadores, tudo em busca de um trabalhador “perfeito” e nada vulnerável. Por outro lado, tem-se a expansão da indústria farmacêutica e suas múltiplas pesquisas na busca incansável da construção de novas patologias e claro, de medicamentos para saná-las.

Ademais, na sexta-feira passada (27 de março), foram publicados diversos artigos documentando a vida do piloto, enfatizando sua condição psicológica e sua estreita relação com os medicamentos.

A  revelação deste problema individual adiciona novos elementos à discussão. A primeira delas é de que o piloto teria ocultado sua condição médica. Como é próprio da sociologia reivindicar o ângulo do debate e de analise, a nós cabe questionar as condições em que estão inseridos os trabalhadores que pilotam aviões, uma vez que a rapidez e a imprevisibilidade e a profundidade em que a vida, no seu âmbito coletivo, está inserida requer uma análise mais profunda.

A rapidez das análises, muitas vezes isolando casos problemáticos, trivializa e banaliza pontos extremamente importantes do convívio social sob a égide do atual sistema econômico. Ao que parece, neste caso, a individualização do problema parece ser uma justificativa muita mais aceita socialmente que procurar as causas na lógica de organização do trabalho.

Além disso, a centralidade dessas análises imediatistas e reducionistas expostas por uma mídia sensacionalista tende a centralizar a “culpa” do sofrimento psíquico do piloto que, aparentemente, vinha se tratando com um especialista, seja à priori a causa do acidente, ou seja, haveria uma doença que justificasse tal fatalidade.

Em tempos de austeridade, ser diagnosticado “louco” pode até ter seus benefícios, mas os malefícios são maiores por sermos uma sociedade perversa, excludente e preconceituosa. Os discursos que reforçam a patologização da vida e dos problemas sociais e econômicos transformam em fetiche o uso de medicações que possam trazer alívio imediato.

É preciso trabalhar, ter saúde para acordar todos os dias e não enxergar o que há de ruim na vida, é preciso negar o sofrimento e buscar nas drogas medicamentosas a solução rápida para se manter-se vivo em tempos que a esperança já se foi. Obviamente que, neste artigo, não buscamos justificar a tragédia ocorrida, mas problematizar o cenário que todos nós estamos vivenciando e sofrendo calados, já que, adoecer é proibido.

No Brasil, a maior parte dos salários dos pilotos vem da quantidade de horas voadas o que significa que eles precisam trabalhar, caso adoeçam terão redução salarial.

Na reportagem da Folha de São Paulo, aborda-se o percentual de 75% em relação ao corte salarial que um piloto tem caso se afaste do trabalho por adoecimento. Dejours já nos alertava que atividades mecanizadas e repetitivas, enquanto conteúdos ergonômicos de tarefas a serem executadas cotidianamente, produzem sofrimento. Claro que o autor também reconhece em sua famosa literatura “A Loucura do Trabalho” que o sofrimento também advém de causas externas, causando ansiedades, angústias, medos.

A tragédia relatada nos leva à reflexão da vulnerabilidade individual, social e econômica na qual todos nós estamos submetidos em todas as circunstâncias da vida. É preciso que exercitemos a perplexidade partindo do nosso contexto sócio temporal, só assim será possível encontrar respostas e aliviar o sofrimento atual. Atinando para reflexão proposta por Marx acerca das relações dentro do capitalismo em que cada indivíduo é um entre milhões, vivendo uma espécie de solidão em massa, onde as pessoas agem entre si como estranhas em uma sociedade de luta e de competição impiedosas.

[1] Livro lançado na  Faculdade de Economia de Coimbra em 24 de março de 2015.

[2] Formada pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional, a Troika avaliou as contais reais de Portugal, definindo as necessidades de financiamento do país.

Elaine Santos é socióloga, doutoranda do Centro de Estudos Sociais – CES (UC/PT). Rachel Gouveia é doutoranda em Serviço Social pela PUC/SP.

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Comentários

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Edgar Rocha

Acho que é possível estabelecer algumas relações que, embora minimalistas e limitadas, podem garantir ao leitor um ponto de partida em sua avaliação pessoal sobre o tema em questão.
Trabalho –> função social
emprego–>reconhecimento social
produtividade—> comprometimento social

Em suma, quem tem um emprego, nem sempre trabalha; quem trabalha nem sempre está empregado; quem trabalha e tem um emprego, nem sempre é produtivo.

Eu creio que o atual sistema privilegia muito mais a quem trabalha ou tem um emprego, em detrimento de quem produz. Considerando a correlação acima, podemos ponderar: tem coisa mais irritante do que ter um emprego, executar um trabalho que não gosta e ainda deparar-se com alguém que julgue ser necessário produzir algo para a sociedade, gostando do que faz?

Nestes tempos modernos, em que a felicidade constante, a competitividade desumana e a inveja diante da possibilidade de alguém ser mais feliz ou realizado que você dão o tom das relações sociais, o ser produtivo, aquele que vê sentido naquilo que faz e que se mostra capaz e mais apto para uma atividade, passa a ser o alvo de todos os ódios. Aquele sujeito animadinho que te dá um “Boooom diiiia!”, com a certeza de que tem algo de útil, necessário e agradável a fazer, deve ser aniquilado, antes que sua competência exponha o total desestímulo diante da vida dos que não dão a mínima pra aquilo que fazem.

Trabalho e emprego são nada mais que um veículo pra se alcançar o que realmente te dará realização. E esta é externa ao mundo profissional. Uma realização que nunca vem, que sempre está aquém das expectativas, que te coloca na corda bamba sempre que tem de calcular a triste equação imposta aos que se julgam especiais demais pra cumprir uma tarefa decentemente: reconhecimento social + lugar social = felicidade – produtividade.

Falando da questão da competência, a atual lógica do mercado de trabalho consegue opor diametralmente o significado de eficiência e competência. Eficiência são números, dados satisfatórios e o cumprimento de funções de forma a se alcançar metas. Competência, por outro lado, é cumprir sua função tendo em vista todas as variáveis impostas pela realidade, com integridade e compromisso em relação aos resultados obtidos. Por exemplo, para um professor, entregar as notas na data, cumprir todos os procedimentos burocráticos e, sobretudo, aprovar o aluno, são metas profissionais que definem, em tese, o “o professor eficiente”. Se este professor avaliar seriamente ao aluno, atrasar a entrega de uma nota para que o aluno tenha uma nova chance, empenhar-se em oferecer um serviço de qualidade e submeter-se a necessidade de reprová-lo, caso lhe seja o melhor a ser feito, em tese, isto seria “o professor competente”. O problema é que, não só o sistema educacional privilegia o professor eficiente, como penaliza àquele que deveria fazer o que lhe compete, mesmo que a eficiência tenha de esperar um pouco. Esta separação entre ser competente e ser eficiente, estabelecendo juízos de valores que suprimem uma das partes, pode gerar um desestímulo e uma falta de foco no que diz respeito a função do educador.

Terminando, ser produtivo tem por premissa, ser também competente. E aí, a questão final: como se realizar sendo trabalhador e tendo um emprego, se a relevância do teu trabalho (competência) é propositalmente abortada pelo sistema? Resposta: mandando à merda o conceito de relevância, produtividade, competência ou qualquer coisa que te torne um agente transformador, com auto-estima e consciente de seu papel na sociedade. Tem psique que aguenta???!!!

Tirando a possibilidade de o profissional em questão ser um psicopata com alto grau de demência, seria melhor começar a lutar pelo direito de ter acompanhamento psiquiátrico compulsório desde o primeiro dia de trabalho.

Engolir o sapo de ser um lixo e estar a serviço de interesses escusos prioritários ao sistema, tendo qualquer efeito positivo apenas como colateral ao cumprimento da meta, faz qualquer um pedir uma camisa de força no amigo secreto de fim de ano.

Somente um doente mental grave poderia se adequar impunemente a esta lógica do mercado. Gente capaz de tudo pra alcançar algum cargo, status e bons salários. O preço de se “qualificar” profissionalmente o sociopata – geralmente bom em números e muuuito eficiente – é este que vemos: profissionais competentes pressionados ao limite da loucura, serviços prestados em todos os setores, de forma insatisfatória (embora eficiente) e formação de uma lógica e moralidade que refletem esta demanda permeando toda a sociedade. Quem tiver dúvida, olhe para os profissionais do jornalismo no Brasil. Isto sim, é um hospício composto somente de alienistas cacifados socialmente!

Aos que desistem de seus ideais profissionais, em função desta pressão, resta o suicídio ou o que pejorativamente alguns já definem como “precariado”. Se eu entendi o que é isto, são só um bando de doidos de rua, desajustados e sem muita função social. Loucos, tampinhas, fracos… É isto! O precariado é que é louco.

    Mark Twain

    Edgar: A produtividade excessiva reduz a quantidade de postos de trabalho necessários.

    Solução criativa: Desatrelar função social do trabalho propriamente dito.

    Solução conservadora: Reduzir a carga horária.

    Solução reacionária: Classificar os que nunca terão acesso ao trabalho como vagabundos.

Mark Twain

Olá Equipe do VioMundo!
O link “suicídios tem aumentado circunstancialmente em Portugal.” está quebrado ;)

Francisco

O capitalismo roda, roda e acaba sempre no século XIX…

Liberal

Estava demorando para surgir um texto tão ridículo como este. Culpar o capitalismo pelo acidente é realmente do balacobaco.

FrancoAtirador

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“Não Sois Máquinas! Humanos é que Sois!”
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O ADOECIMENTO DA SOCIEDADE DE CONSUMO DE MASSA
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A partir da metade do século passado, já estava previsto que – dado o ritmo veloz do crescimento populacional fundamentalmente nas regiões mais pobres do Planeta e com o advento da mecanização da produção decorrente dos avanços tecnológicos e, por conseqüência, com o êxodo rural e o povoamento desordenado das cidades, concentrando o proletariado em aglomerados urbanos estabelecidos em espaços territoriais restritos –
a competitividade no Universo do Trabalho na Sociedade de Consumo de Massa provocaria o agravamento do Adoecimento Físico e Psíquico dos Trabalhadores,
principalmente depois da implementação, em nível mundial, do “Toyotismo”
(Qualidade Total, Plano de Metas, Meritocracia: http://www.infoescola.com/industria/toyotismo)
e após a aceleração dos processos de desestatização, de desregulamentação estatal e de Globalização
do Sistema Econômico-Financeiro, gerando a Concentração cada vez maior do Capital Privado Internacional em Poder das Corporações Industriais e Comerciais, através de subterfúgios cambiais e fiscais articulados e operados por Mega-Instituições Financeiras Transnacionais, como SuperBancos e Bolsas de Mercadorias (Commodities) e Futuros (Hedge Funds).
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E quanto menos um País oferece Proteção Social do Estado à Classe Trabalhadora,
tais como Auxílio-Doença, Aposentadoria por Tempo de Serviço, Seguro-Desemprego,
e Jornada de Trabalho Compatível, com intervalos para Repouso e Alimentação,
limitada ou Reduzida de acordo com o Rigor Exigido pela Atividade Exercida,
mais se agravam os Problemas de Saúde dos Trabalhadores e Trabalhadoras.
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(http://noticias.r7.com/economia/cresce-o-numero-de-pedidos-de-auxilio-doenca-por-alcool-ou-cocaina-08092014)
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Textos para Reflexão e Análise Crítica:
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A DITADURA DO RELÓGIO E A DESTRUIÇÃO DO HUMANO
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(http://coletivosp.blogspot.com.br/2009/07/ditadura-do-relogio-george-woodcock.html)
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(http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ofjor/ofc211020031p.htm)
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Leia também:
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PSICOFOBIA É CRIME!
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(http://abp.org.br/portal/clippingsis/exibClipping/?clipping=18983)
(http://www.abp.org.br/portal/a-sociedade-contra-o-preconceito-psicofobia-e-um-crime)
(http://www.abp.org.br/portal/campanha-contra-psicofobia-ganha-repercussao-internacional)
(http://www.abp.org.br/portal/?s=%23psicofobia%C3%A9umcrime)
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