Débora Pinheiro: O quilombo Caiana dos Crioulos abre as portas no domingo para festejar o São João e visitantes; vídeo

Tempo de leitura: 7 min
Grupo de coco de roda do quilombo Caiana dos Crioulos: Construindo seu acesso à cidadania sem abrir mão da identidade cultural. Fotos: Acervo pessoal de Severina Silva (Cida) e reprodução de vídeo

Em Caiana dos Crioulos, a cidadania se aquilomba

Por Débora Pinheiro*, em Brasil de Fato – Paraíba 

Na véspera de São João, 23 de junho, a partir das 15h, a maior comunidade quilombola da Paraíba aguarda visitantes em festejos marcados por tradições, místicas e riquezas a serem compartilhadas com quem se dispuser a percorrer uns 13 quilômetros de estrada de terra desde a cidade asfaltada mais próxima, Alagoa Grande.

Grupo de coco de roda em Caiana dos Crioulos. Foto: Acervo pessoal de Severina Silva, Cida

O caminho para Caiana dos Crioulos pode parecer inóspito para quem não tem experiência nem carro capaz de rodar na terra cravejada de pedregulhos e grandes blocos de rochas, de tempos em tempos amansadas por um trator de terraplanagem da prefeitura da cidade vizinha.

Os taxistas locais, porém, transitam ali com destreza para garantir o acesso a um tesouro defendido com muita luta e resiliência.

O próprio caminho que leva ao Quilombo é um personagem da história da comunidade e de sua relação com o espaço urbano que a cerca.

Prova disso é a menção, em placa comemorativa na praça principal de Alagoa Grande, de um pleito desde os idos dos anos de 1940 pelo calçamento da via impraticável em período de chuva, forçando mães a parirem sem assistência, desmotivando crianças e jovens a frequentarem a escola, afastando pessoas de seu direito de ir e vir, reforçando preconceitos e, enfim, dificultando a vida de quem teimou em se manter perto de suas raízes afetivas e culturais.

Reprodução /Imagem Instagram

Antes da terraplanagem e da popularização de veículos motorizados, a dificuldade de acesso ao antigo quilombo era mais um componente de seus mistérios, alguns dos quais persistem até hoje, como escrituras rupestres nunca decifradas em um lajedo chamado de Pedra do Reino Encantado.

Relatos de visões místicas pelos habitantes da comunidade apontam para revelações metafísicas, em que ninguém enxerga exatamente a mesma imagem fantasmagórica.

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Ainda conta-se que, quando enfim for descoberto o que está escrito na pedra, uma cidade encantada emergirá.

Convivem com as tradições e desafios históricos várias conquistas cidadãs, como escola, quadra de esportes, posto de saúde e uma sede própria para a associação de moradores, que já completa três décadas de existência, além de novos espaços construídos em mutirão para que a comunidade se agregue e se reconheça em suas riquezas culturais e históricas.

A próxima novidade a ser revelada é um museu vivo, com inauguração prevista para o dia da festa de São João (para a comunidade é o dia 23/06).

Percursos femininos

Em meados dos anos oitenta, uma adolescente nascida e criada em Caiana dos Crioulos descia a pé com as amigas os 13 quilômetros da estrada pedregosa e empoeirada para participar da festa da Boa Viagem em Alagoa Grande quando escutou: “Caiana pegou fogo!”.

Associação de moradores de Caiana dos Crioulos. Foto: Jamerson Lucena

Cida (registrada Severina Luzia da Silva) sabia que o chiste era uma alusão ao seu tom de pele, à cor do que estaria queimado, rendendo também às pessoas de Caiana dos Crioulos o comparativo com urubus.

Altiva, a mocinha respondia de bate-pronto aludindo à mãe do interlocutor.

“Doía na época e dói até hoje”, menciona, dessa vez em tom sereno, a atual presidente da Associação Caiana dos Crioulos, reconhecida por seu trabalho de mestra de coco de roda e liderança engajada pela luta por direitos de sua comunidade quilombola.

Já para Elza Ursulino do Nascimento Silva, o significado da identidade quilombola foi se formando à medida em que, aos 14 anos, desafiou os padrões estéticos da época em que raras mulheres negras portavam tranças ou exibiam seus cabelos naturalmente crespos em ocasiões especiais ou mesmo no cotidiano; menos ainda quando desciam do Quilombo para a cidade.

Elza Silva (ao centro) em atividade sobre ervas medicinais em Caiana dos Crioulos. Foto: Acervo do Projeto Vivenciando Caiana dos Crioulos

“A regra era esconder as tranças com um pano, fosse na missa ou mesmo no roçado, mas eu passei a me sentir mais bonita exibindo minhas tranças. Quando soube que as negras escravizadas usavam suas tranças para guardar sementes ancestrais, passei a amar mais ainda esse penteado”, rememora a atual presidente da Organização de Mulheres Negras de Caiana dos Crioulos, que também é a primeira agente de saúde de sua comunidade, e agora, pré-candidata a vereadora pelo município de Alagoa Grande.

Filha e neta de parteiras, a mulher das tranças tem se empenhado para abrir caminhos às próximas gerações de profissionais de saúde quilombolas, buscando inserir colegas em cursos e processos seletivos.

Sua avó era conhecida como “Mãe da Gente”, por ser uma parteira experiente e conhecedora de ervas medicinais.

Porém, com os partos que passaram a ser realizados nos hospitais, e não mais na comunidade, o desafio da acessibilidade tornou recorrentes nascimentos no meio da estrada entre Caiana dos Crioulos e Alagoa Grande, incluindo o de uma filha de Cida, há 25 anos.

“Fomos nos apropriando das questões de políticas públicas e de controle social, percebendo todos esses processos e aprendendo o que é empoderamento”, reflete Elza, que tem se empenhado no processo de melhoria para a estrada que leva à Caiana.

Da esquerda para a direita: Cida, Débora e Elza. Foto: Jamerson Lucena

Cida se lembra que, nos tempos de sua infância, as pessoas ao seu redor tinham vergonha e até medo de falar com brancos, mas os sentimentos foram se transformando à medida em que as lideranças, formadas principalmente por mulheres, passaram a buscar novos horizontes por meio do estudo e da conscientização sobre o valor dos legados quilombolas.

Aos 37 anos, ela resolveu terminar o ensino fundamental e não parou mais de estudar até que, concluído o ensino médio, conseguiu a pontuação necessária no Enem para cursar enfermagem, apenas com o objetivo de encorajar os jovens da comunidade a tentarem ir para a universidade.

A escolha foi não sair de Caiana dos Crioulos e ali seguir preparando novas gerações para que a comunidade siga se valorizando e construindo seu acesso à cidadania sem abrir mão de sua identidade cultural.

“Nesse mês de junho, três mulheres quilombolas que encorajei a perseguir os estudos universitários concluíram ensino superior em Sumé, em Educação do Campo, e minha filha está se preparando para se formar em engenharia, biotecnologia e bioprocessos, também em Sumé, no ano que vem”, anuncia a mestra de coco de roda que tem se dedicado também a ensinar a dança para as crianças da comunidade, muitas delas já tornadas adultas e replicadoras das tradições ancestrais.

Cida conta que foi recente o entendimento de que, ao ser chamada para dançar ciranda em festas, é justo que o grupo de dança receba uma remuneração.

“A gente dançava de graça em eventos, arcando com as vestes típicas das danças, dispondo de nosso tempo e deixando de estar junto de nossas famílias, mas hoje estamos atentos aos editais de incentivo à cultura e sabemos do valor que temos”, comemora.

Ao mesmo tempo, a liderança quilombola preocupa-se com o silenciamento de tradições culturais preciosas, como a banda de pífano que foi desativada na comunidade depois do falecimento dos mestres e a ausência de recursos que assegurem aos jovens uma dedicação maior a se aprimorar nos instrumentos.

Enquanto buscam incentivos de políticas públicas para a valorização de sua cultura e seu legado, Cida, Elza e outras mulheres tornadas lideranças de Caiana dos Crioulos empenham-se coletivamente em encontrar soluções para fortalecer seus projetos envolvendo turismo ecológico e formação cultural, entre vários eixos de trabalho que envolvem visitas ao espaço.

Cuidam, porém, de se distanciar de um turismo predatório, em que visitantes, acadêmicos ou curiosos, apenas exploravam os conhecimentos e habilidades da comunidade sem se preocupar em contribuir com ela.

Para promover o turismo sustentável no quilombo foi criado o projeto Vivenciando Caiana, no âmbito do qual são planejadas visitas em grupos, pré-agendadas, com atividades pactuadas, como visitas guiadas a pontos históricos, refeições preparadas com temperos colhidos pelos quilombolas, oficinas de dança e várias atividades que ampliam horizontes sobre o patrimônio histórico, cultural e sobretudo humano que resulta de resistência e vitalidade.

A cidade encantada talvez esteja por se revelar, não apenas por ser mística, mas por sua capacidade de fazer a sociedade enxergar o valor inestimável de seu povo.

Serviço

A celebração do São João da comunidade quilombola Caiana dos Crioulos (Alagoa Grande/PB) será uma experiência autêntica e vibrante de sua rica herança cultural, na festa que une tradição, cultura e diversão, com atrações especiais:

Inauguração do Museu do Coco de Roda e Ciranda: Um espaço dedicado à preservação e valorização das tradições do Quilombo.

Lançamento do Projeto Sala de Leitura — Promovendo a educação e a cultura na comunidade.

Comidas Típicas — Sabores únicos da culinária quilombola.

Quadrilha e Forró — Dança e música para aquecer o coração e o corpo.

Ritual do Cruzeiro Roubado — Uma cerimônia cheia de significado e história.

Data: 23 de junho de 2024

Horário: A partir das 15h

Local: Comunidade quilombola Caiana dos Crioulos, Alagoa Grande/PB

Transporte: A organização do evento orienta que todos entrem em contato para verificar a possibilidade de traslado para a festa, mas é possível também contratar motoristas previamente em Alagoa Grande.

Para comprar ingresso (conga) clique aqui

Cada Conga dá direito a:

  • Visitação no Museu do Coco de Roda e Ciranda
  • Refeição individual típica junina quilombola

Para agendar uma visita guiada, envie uma mensagem para a conta Instagram do Projeto Vivenciando Caiana

> Para apoiar financeiramente as atividades da Associação de Moradores de Caiana dos Crioulos, envie um pix para 83991809941.

*Débora Pinheiro é jornalista, mestra em ciências da comunicação pela Universidade de Montreal, no Canadá, e servidora pública federal da carreira de Analista Técnico de Políticas Sociais, em exercício na Superintendência Estadual do Ministério da Saúde na Paraíba.

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Zé Maria

Estrada Não Pavimentada Não é Problema.
Ao Contrário, faz Parte do Evento Festivo.

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