Caio Toledo entrevista Boris Vargaftig: O professor e o cientista

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Boris Vargaftig e Caio Toledo

por Caio N.Toledo, especial para o Viomundo

Bernardo Boris Vargaftig é um cientista brasileiro que tem trabalhos científicos, na área da pesquisa farmacológica, reconhecidos internacionalmente.

Este reconhecimento se manifesta por prêmios recebidos aqui e lá fora.

No exterior, por exemplo, o Grande Prêmio do Institut Electricité Santé, em 1995, e Life Achievement Award – International Association  of Inflammation Societies (IAIS), em 2005.

No Brasil, em 2008, recebeu da Presidência da República a comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico; em 1991, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

Durante 25 anos, exerceu diversas funções, entre as quais a de Direção Científica na área de farmacologia do renomado Instituto Pasteur, Paris, França.

Em meados de agosto de 2014, foi protagonista de um fato inédito na universidade brasileira: por meio de carta pública ao atual reitor da Unicamp renunciou ao título de Doutor Honoris Causa a ele outorgado por essa prestigiosa instituição de ensino público.

Nesta entrevista exclusiva ao Viomundo, o professor Vargaftig nos informa sua trajetória científica, discute suas convicções sobre a relação ciência e sociedade capitalista, relata sua prisão pela ditadura militar (em 1964, na Faculdade de Ciências Médicas da embrionária Unicamp) e esclarece as razões da sua renúncia ao título Doutor Honoris Causa.

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Caio N. de Toledo

Professor Aposentado da Unicamp

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Viomundo — Em que circunstâncias se deu a outorga do título de Doutor Honoris Causa  concedido ao senhor pela Unicamp, em 1991? 

Boris Vargaftig — Lembro-me que a sugestão para que este título me fosse concedido veio do Departamento de Farmacologia da Faculdade de Medicina da Unicamp, que conhecia meus trabalhos porque compartilhávamos de interesse pelo tema da inflamação. Este departamento também reconhecia os esforços que eu fazia para acolher pesquisadores brasileiros em meu laboratório, então no Instituto Pasteur de Paris.

Provavelmente, levaram em conta minha atividade científica, notadamente os trabalhos que conduziram à descoberta do modo de ação da aspirina e dos demais anti-inflamatórios. Depois de ser informado que o departamento havia proposto que me fosse outorgado o título, nada mais soube até ser convidado à cerimonia de outorga, que se deu em 29 de agosto de 1991. Naquele momento, após discurso de benvinda, foi-me entregue pelo Reitor Professor Carlos Vogt um belo diploma. Agradeci a honrosa distinção e fomos para casa.

Viomundo — Quais os seus vínculos anteriores com a Unicamp?  

Boris Vargaftig — Formei-me na Faculdade de Medicina da USP em dezembro de 1963. Fui eleito orador da turma, mas meu discurso foi proibido pelo diretor da Faculdade, Professor Meira, um dos mais retrógrados membros do establishment.

Curioso observar que, em 2013, 50 anos após a formatura, a leitura do mesmo discurso foi impedida pelo setor mais reacionário dos colegas durante a comemoração deste cinquentenário, pois impuseram um orador fundamentalista, que pronunciou um discurso extremamente exaltado, aos gritos, misto de cômico e trágico.

Solicitei que a Congregação da Faculdade de Medicina reconhecesse a existência da censura de 1963, já que uma diretoria precedente havia “reabilitado” professores punidos pelos agentes uspianos da ditadura. Este pedido não recebeu até hoje resposta do atual Diretor, Prof. Cerri. Como que a mesma mentalidade é compartilhada pelas figuras da atual direita medicinal…

Fiz meu internato durante o sexto ano do curso médico em parte no departamento de farmacologia da Faculdade, onde conheci um assistente que fazia pesquisa num departamento que era notoriamente desinteressado pela pesquisa. Tratava-se do Professor Oswaldo Vital-Brazil, homem de direita e de bem (é raro eu reconhecer estas qualidades no mesmo personagem).

Embora informado de minhas opiniões que, em verdade ele desconhecia, mas abominava, Vital-Brazil me convidou a vir consigo e com mais dois colegas formar o departamento de farmacologia da então Faculdade de Ciências Médicas da então Universidade de Campinas.

Para lá fomos, abandonando eu o começo da residência em clínica médica. Trabalhamos muito, enquanto eu aguardava a aprovação da minha nomeação solicitada em torno de março de 1964 (“sem problemas”, dizia o Professor Vital-Brazil, que havia falado com o democrata Zeferino Vaz, Presidente do Conselho Estadual de Educação e responsável pelos chamados Institutos isolados de ensino superior do Estado e com o outro democrata, Professor Mário Degni, diretor da Faculdade).

Fui detido dentro de sala de aula em 14 de julho de 1964, prisão que se prolongou por quase dois meses no navio “Raul Soares” na cidade de Santos, São Paulo.

Neste intervalo, se bem me recordo de uma cronologia que vai distante, meu contrato de trabalho havia sido negado pelos democratas de serviço, apesar das garantias de boa fé do Professor Vital-Brazil, mortalmente ofendido pelo desrespeito à sua pessoa…

Foi então me concedida bolsa da FAPESP, graças ao apoio de seu então diretor cientifico, o honrado Professor Alberto Carvalho da Silva (que havia sido perseguido e expulso da Faculdade de Medicina pelo grupo sanguinário que tanto mal fez) e à fraterna insistência do Professor Vital-Brazil. Rejeitado por Vaz, Degni e consortes, também não consegui emprego nos meses subsequentes. E decidi partir.

Viomundo — Desde a volta ao país, quais as suas atividades científicas e de docência?

Boris Vargaftig — Minha volta ao Brasil coincidiu com uma tragédia pessoal, a morte de minha esposa Aline. Os óbvios efeitos da doença, dos cuidados constantes indispensáveis, afastaram-me do projeto inicial de pesquisa que havia elaborado quando do concurso para Professor titular no departamento de farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.

Fui muito bem acolhido pelos membros deste departamento, onde colaborei particularmente com um então jovem professor, Wothan Tavares de Lima, que compartilhava e ainda compartilha comigo de amizade e de interesses científicos. Trabalhamos juntos, publicamos e continuo a me beneficiar desta simpática acolhida. Dei aulas de graduação, embora ciente que minha formação na Europa havia contemplado quase que exclusivamente a pesquisa e o ensino de pós-graduação. Não acho que fui um excelente professor e acredito que este sentimento realista é compartilhado por alguns alunos…

De qualquer forma, neste intervalo reorganizei e reconstruí minha vida, tendo recebido uma ordem do mérito do governo brasileiro.

Viomundo — Como se posiciona diante das concepções teóricas – predominantes entre pesquisadores acadêmicos – que defendem a existência de um rompimento entre a ciência e a política? Conhecendo suas convicções marxistas, como concebe as relações de seu trabalho científico com a ordem econômico e social capitalista?

Boris Vargaftig —  Excelentes perguntas, na realidade a procura da quadratura do círculo. As ciências humanas – história, sociologia, economia política, psicologia, antropologia, entre outras – podem ser opor à ideologia dominante ou servem-na ostensivamente. O problema de seu relacionamento com o que os pudicos de serviço denominam “o setor privado”, “a comunidade” etc., para evitar dizerem “o capitalismo”, é de solução relativamente fácil.

Para não se contaminar, fique de lado e efetue seu trabalho, enfrentando evidentemente dificuldades materiais. Se aceitar a colaboração com firmas privadas, estabelece-se uma relação de  “amável” subordinação, acentuada no momento de renovação desta ajuda quando uma boa disciplina social é recomendada… As firmas capitalistas podem ocasionalmente requerer os serviços das ciências humanas e há sempre quem aceite satisfazê-las, mediante honorários e vantagens diversas, mas isto é ainda marginal, ao que me parece.

Já no terreno das ciências biomédicas e particularmente do medicamento, da vacina e dos métodos sofisticados de diagnóstico e de tratamento, o enfrentamento com as firmas farmacêuticas é imediato.

De fato, os medicamentos tradicionais ou inovadores são produzidos e comercializados pelo setor privado, a produção estatal sendo marginal nos países capitalistas e com exceções (vacinologia em Cuba, por exemplo, das primeiras do mundo).

Por outro lado, o instrumento indispensável para esta comercialização privada é a patente, que assegura exclusividade e garante capacidade mercantil.

Embora as grandes firmas farmacêuticas tenham efetuado pesquisa inovadora – para vender, evidentemente – os custos crescentes da pesquisa, os processos geradores de indenizações consideráveis, a concorrência entre grupos gigantescos e as fusões, reduziram seu envolvimento direto com a pesquisa.

Para continuar inovando, voltam-se para o setor público e para-público. Daí resulta uma diferença crescente entre grupos que têm o que vender ao setor privado – tecnologia inovadora e protegida, eventualmente patentes – e o setor privado, sempre ávido de bons negócios. Neste processamento é o setor privado quem ganha, quem detém o poder de escolher seus interlocutores privilegiados.

Eis a contradição: você trabalha com medicamentos e tem, goste ou não, interlocutores que têm o mesmo interesse subjetivo, mas não o mesmo interesse social.

Ninguém dentre os pesquisadores do setor público ou privado quer vender um produto novo e ineficaz, mas o julgamento final não é o mesmo: quem trabalha na indústria é pago para criar inovação que possa ser vendida, com retorno de investimento. Satisfaz uma necessidade comercial ao satisfazer o quando possível (sic) uma necessidade médica e social.

Em outros termos, o processo de inovar no terreno do medicamento ou do diagnóstico contém uma contradição intrínseca: o mercado tem necessidade do produto, mas somente o obterá mediante pagamento privado ou público.

Daí, aliás, resulta o fato dos conglomerados farmacêuticos apoiarem em geral o reembolso dos medicamentos pelos seguros sociais ou privados, pois assim seu mercado é grandemente estimulado. Passam entretanto a depender de regulamentação constrangedora, que podem ignorar devido ao seu notório poder de “influência”, mas precisam assim mesmo escapar de críticas que destruiriam sua reputação.

Em inúmeros casos, quando surgem efeitos colaterais tardios de medicamentos novos, a cessação de comercialização e de investimento é imediata, para evitar o aumento geométrico do número de vítimas e, portanto, de processos e indenizações.

De certa maneira, os pesquisadores do setor público e para-público não enfrentam o controle pelo marketing e pelo setor financeiro que se exerce sobre os do setor privado. Estes têm as vantagens de sua remuneração superior, das consequências práticas de suas descobertas, mas estão à mercê do desemprego, submetidos a dirigentes que mesmo quando originados da pesquisa, progridem em sua carreira adquirindo hábitos gerenciais capitalistas, que o pesquisador de base ou dirigentes médio pode fingir ignorar.

Respondo agora à pergunta: no setor de medicamentos em que trabalhei durante dezenas de anos, é impossível ignorar a existência do setor privado.

Este mesmo setor privado, que pretende efetuar um trabalho social, extrai mais-valia do trabalhador, financia aventuras capitalistas, grupos de direita etc..

Os inventores de medicamentos ou vacinas – Fleming, Sabin e outros – tiveram na realidade suas descobertas investidas pelos donos do capital, que as transformaram em mercadoria, onde se cristaliza um certo valor, como ocorre com qualquer mercadoria produto de invenção ou descoberta.

Há um caso bem típico ocorrido há meio século na USP, com o colega e amigo Sérgio Ferreira, que no começo de sua atividade científica descobriu no veneno de jararaca uma substância que reduzia a pressão arterial.

Em ausência de patente, que a USP não depositava, esta descoberta foi capturada por uma multinacional, cujo assessor era justamente o professor britânico com quem Sérgio Ferreira trabalhava. O assessor em questão havia informado a direção científica desta companhia da importância potencial da descoberta e esta se apressou em sintetizar compostos  patenteáveis que imitavam aqueles presentes no veneno de jararaca. Assim, foram criados dezenas de derivados, até hoje de grande utilidade no tratamento da hipertensão arterial, sempre mercadorias. O que precede envolve um problema complicado, a quadratura do circulo à qual me referi acima.

Viomundo — A multinacional se apossou da descoberta do medicamento anti-hipertensivo do Sérgio Ferreira?

Boris Vargaftig — Sim, porque a USP não depositava patente que protegeria esta invenção. Mas, ao mesmo tempo, denuncio a privatização da pesquisa universitária, que passa inevitavelmente pelo depósito de patente, sem o que não há, no regime capitalista, retorno financeiro possível à entidade inventora.

Há duas soluções (parciais) à contradição. Uma é a proteção das descobertas aplicáveis deve poder ser efetuada sob controle dos pesquisadores envolvidos e das entidades de classe, o que assegura teoricamente que os lucros da venda beneficiarão a Universidade, dentro do regime capitalista. Isto protege a descoberta e o descobridor, mas reforça forçosamente a noção de “falsa vocação”, como que a Universidade deve se comportar como empresa privada, disparate em curso no establishment universitário e nas agência de fomento.

A outra solução seria a estatização da fonte produtora, mas acontece que a Universidade já é dita estatal. Assim, vive-se a contradição, que somente poderá ser resolvida num sistema socialista internacional. Insisto no termo internacional, não somente porque a noção de socialismo num só país mostrou-se impossível, devido ao controle internacional do mercado capitalista, como antecipado por Trotsky nos anos 20, mas porque simplesmente, mesmo se a Universidade proprietária da patente for estatizada, na hora de vender ou de licenciar a patente, seu interlocutor é uma multinacional por definição privada…

Numa sociedade diferente, onde a mercadoria como tal desapareceria porque o mercado capitalista desapareceria, a situação mudaria completamente, o que não alteraria a necessidade de pesquisa e desenvolvimento, mas efetuado em outras bases.

Assim, contrariamente aos ecologistas sonhadores que vêm toda invenção ou inovação como perigosa, acredito que no socialismo estas invenções, devidamente controladas, não somente não tenderão a desaparecer mas, bem ao contrário, a florescer. O que ocorre hoje com a epidemia do vírus Ébola, que parece cair dos céus (ou vir dos infernos!) mostra bem que o setor privado investiga as patologias que prometem retorno de investimento. Será preciso uma extensão mundial da epidemia, com incentivos estatais gigantescos para quem a ela se dedicar, para que as multinacionais encontrem motivação para um esforço igual ou superior àquele que foi preciso desenvolver – no setor público, diga-se de passagem – para controlar, senão suprimir, a patologia provocada pelo vírus HIV.

Viomundo — Que motivos o levaram a renunciar ao título de Doutor Honoris Causa concedido ao senhor, em 1991, pela Unicamp?

Boris Vargaftig — Muito simples. Primeiramente, não queria prosseguir na coabitação forçada com um prescritor (a pessoa que prescreve) de maus tratos e assassinatos, desaparecimentos etc…

Em seguida, para chamar a atenção para a imensa anormalidade reinante, em que um trabalhador grevista ou manifestante é preso ao arrepio da própria lei capitalista, enquanto um prescritor de brutalidade contra opositores políticos está livre e se justifica argumentando de um “acordo nacional” do qual a parte dominante redigiu as regras. Finalmente, acredito que a situação que criei poderá dar ensejo a manifestações do mesmo tipo, que resultariam na eliminação da impunidade.

 PS do Viomundo:  Há uma petição online, solicitando à Unicamp que revogue o título concedido ao coronel Jarbas Passarinho. Para assinar,  clique aqui.

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Maria Ribeiro do Valle

Excelente entrevista para pensar a questão da relação entre a ciência (particularmente as ciências sociais) e a política. Não só na ditadura militar, mas na sua herança tão presente em nossas universidades … hoje…diante do posicionamento político tão reacionário como o de nossos colegas.
Sob à fachada da neutralidade científica/acadêmica são porta-vozes privilegiados de uma política (neo) liberal de desmonte inclusive das conquistas de direitos que já tinham sido conquistados. como, por exemplo, o direito de greve. Tempos sombrios.

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