Marcelo Zero: É hora de o Brasil mostrar que não somos anões diplomáticos

Tempo de leitura: 5 min
Forças armadas em colisão com a soberania e a política externa do Brasil; Exército comprou 36 blindados obuseiros da empresa israelense Elbit Systems ao custo de R$ 1 bilhão; aquisição foi suspensa pelo presidente Lula. Fotos: Reprodução

Não Somos Anões Diplomáticos

Por Marcelo Zero*

A questão da suspensão da compra de 36 blindados obuseiros autopropulsados israelenses pelo Brasil, um contrato de RS$ 1 bilhão, recoloca uma questão de fundo que precisa ser mais bem entendida e debatida.

Me refiro ao atual descasamento entre a política externa e a política de defesa do Brasil.

Por óbvio, a política externa e a política de defesa precisam ser complementares e produzir ampla sinergia. A persuasão diplomática tem de estar articulada com a dissuasão estratégica.

Em conjunto com a política externa, a política de defesa constitui o que se chama de a “Grande Estratégia”, a qual determina a inserção do país no mundo.

Portanto, a plena projeção dos interesses estratégicos do Brasil no cenário internacional não pode prescindir de uma política de defesa sólida, que aponte na mesma direção da política externa.

Acontece que essas políticas apontam, hoje, para direções não necessariamente convergentes, como deveria ser.

A política externa do terceiro governo Lula resulta de uma profunda revisão da política externa que vinha sendo praticada desde o golpe de 2016 e, mais particularmente, desde o governo Bolsonaro.

Naquele período fatídico, o Brasil alinhou-se ideologicamente ao trumpismo e passou a apoiar automaticamente os interesses dos EUA e os interesses de alguns de seus aliados, como Israel, por exemplo. Disso resultou um isolamento, que afetou muito o protagonismo internacional e regional do país.

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A política externa atual busca corrigir esse monumental erro estratégico.

É uma política universalista, centrada no multilateralismo, na multipolaridade, na busca da paz, do desenvolvimento e da construção de uma ordem mundial mais simétrica, na qual os interesses do Brasil e do chamado Sul Global sejam adequadamente representados.

Trata-se, por conseguinte, de uma política que rejeita a lógica arcaica e destrutiva da nova Guerra Fria, que os EUA e alguns aliados, infelizmente, tentam impor a outros países.

Em sentido inverso, essa nova política externa brasileira trabalha com a lógica do não-alinhamento a nenhuma potência e da afirmação independente dos interesses brasileiros, num ambiente de ampla e diversificada cooperação internacional.

Contudo, a atual política de defesa, que não foi revista explícita e sistematicamente na transição, ainda parece se guiar por alguns parâmetros já superados, herdados do governo anterior.

Na realidade, a atual política de defesa ainda parece ser, na sua essência, a mesma política praticada nos governos Temer e Bolsonaro. E essa política, se não revista, pode vir a atritar-se com a nova política externa, dadas suas características básicas.

É o que está acontecendo, agora, nesse episódio.

Com efeito, após o golpe de 2016, a política de defesa do Brasil passou a exibir sinais de alinhamento estratégico aos interesses dos EUA.

Assim, as forças armadas brasileiras foram incorporadas como forças auxiliares ao Comando Sul (SOUTHCOM) dos EUA, e o Brasil foi declarado aliado extrarregional da Otan.

Ao mesmo tempo, essa política passou a apostar na relação com os EUA e alguns aliados (Israel, principalmente), como forma de o Brasil ter acesso a tecnologias relevantes.

Foi também a partir dessa época que o Brasil começou a convidar militares dos EUA (mas não de outras potências) a participar de exercícios militares na Amazônia.

Durante o governo Bolsonaro, a aproximação ideológica ao governo de extrema-direita de Netanyahu, especialmente na área da defesa e da segurança, foi bastante forte, o que levou a um desequilíbrio nas nossas relações com o Oriente Médio e a um incômodo em nosso relacionamento com países muçulmanos de forma geral.

Há, portanto, correção de rumos a ser feita e a necessidade de uma urgente reconstrução das imprescindíveis sinergias entre a política de defesa e a política externa, sob pena de enfraquecimento e apequenamento.

Não se trata, como alegam alguns, de romper relações diplomáticas e comerciais com Israel. Esse seria, do meu ponto de vista, um erro crasso.

Afinal, as nossas relações com Israel são históricas e vão muito além do governo Netanyahu. Precisam ser preservadas, para o bem de ambos os países. Observe-se também que o Mercosul tem um acordo de livre comércio com Israel, o primeiro acordo extrarregional desse bloco, assinado no segundo governo Lula, que deve ser respeitado.

Mas, ante as fortes e grosseiras hostilidades desse governo de extrema-direita, em relação ao governo brasileiro, e ao que acontece em Gaza, que está merecendo a condenação de quase toda a comunidade internacional, inclusive da CIJ e do TPI, parece cristalino que algumas decisões precisam ser revistas ou suspensas.

Nesse sentido, a política de defesa precisa “conversar” mais com a política externa. Não podem ser compartimentos estanques.

Deveria ser evidente que contratos bilionários para adquirir equipamentos militares estratégicos não podem ser fechados apenas com base em requisitos técnicos e comerciais. Outros fatores têm de ser levados em consideração.

A decisão de comprar os caças Gripen suecos, por exemplo, foi uma decisão que levou em consideração as relações internacionais do Brasil, a transferência de tecnologias, o desenvolvimento econômico do país etc. Não se “comprou” apenas alguns equipamentos. Fez-se uma parceria estratégica de longo prazo, a qual inspirou-se em aspectos relevantes das relações exteriores do Brasil.

Frise-se que o caso específico dessa compra de blindados obuseiros envolve uma empresa, a Elbit Systems, que está diretamente envolvida na violência em Gaza.

Lembram do massacre da World Central Kitchen, aquela organização norte-americana, que distribuía comida em Gaza?

Na ocasião, no início de abril deste ano, um comboio dessa organização humanitária foi bombardeado por forças israelenses, mesmo tendo permissão para adentrar Gaza, o que resultou na morte de sete ativistas humanitários. Foi um grande escândalo, já que morreram norte-americanos, britânicos, australianos etc.

Pois bem, o instrumento utilizado para promover esse massacre foi um drone Hermes 450, fabricado justamente pela Elbit Systems.

A Elbit também é acusada de fabricar ou de já ter fabricado ( e usado) bombas de fósforo branco e bombas de fragmentação, as quais são consideradas ilegais, à luz do direito humanitário internacional.

Há, hoje, forte desinvestimento de fundos internacionais na Elbit e em outras empresas de defesa de Israel, por motivos óbvios. Ninguém quer se associar com a violência macabra e com os crimes que acontecem todos os dias em Gaza.

Nessas circunstâncias, convém aos interesses brasileiros firmar um contrato bilionário com tal empresa?

Será que as nossas forças militares não deveriam ter mais sensibilidade política e diplomática em seus processos decisórios?

O contrato não poderia ficar em suspenso até que a terrível situação em Gaza se resolva e o governo de extrema-direita de Netanyahu peça desculpas ao governo brasileiro pelas agressões?

Afinal, o comandante em chefe das nossas forças é, pela Constituição, o presidente Lula, pessoa considerada “não grata” pelo governo Netanyahu, que chegou ao ponto de humilhar nosso embaixador em Tel-Aviv em público.

Será que as forças armadas são incapazes de perceber um conflito de soberania tão evidente?

A classificação ofensiva de “pessoa não grata” tem de ser respondida com gratidão bilionária?

Saliente-se que o acordo na área da defesa firmado entre Brasil e Israel durante o governo Bolsonaro não foi ainda promulgado, justamente por causa dessas questões. Sem a promulgação do decreto correspondente, o acordo inexiste em nossa ordem jurídica interna.

A opção pelo contrato com a empresa tcheca Excalibur International, que ficou em segundo lugar na concorrência relativa aos blindados, caso assim autorizada pelo TCU, seria boa para os interesses brasileiros.

A cooperação em defesa constitui a face mais evidente da cooperação bilateral entre o Brasil e a República Tcheca, país que tem uma tradição notável em indústria armamentista.

A empresa tcheca Aero Vodochody, uma das mais importantes indústrias aeronáuticas da Europa central, foi uma das parceiras da Embraer, no desenvolvimento do cargueiro militar KC-390.

A escolha, pela Força Aérea Brasileira, do Gripen NG da Saab no âmbito do Programa FX-2, oferece também outras possibilidades de cooperação com a República Tcheca no longo prazo, pois as forças daquele país utilizam os caças JAS-39 Gripen, há uma década.

Ademais, a Avibras brasileira assinou, em março desde ano, memorando de entendimento com a Excalibur International, com foco em parcerias para o desenvolvimento e a fabricação de equipamentos de defesa avançados e na participação das duas empresas em projetos das Forças Armadas do Brasil, como o VBCOAP 155mm SR do Exército Brasileiro (EB), justamente o projeto dos obuseiros autopropulsados.

Portanto, temos opções viáveis, que podem ser aperfeiçoadas.

Em 2014, quando houve outra intervenção militar de Israel em Gaza, com grande número de mortos de civis, o Brasil, em protesto, chamou seu embaixador um Tel-Aviv para consultas.

Em resposta, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Yigal Palmor, acusou o Brasil de ser um “anão diplomático”.

É hora de mostrar que não somos.

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Comentários

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José Espare

Uma outra boa maneira de fazer isso seria o governo de Lula deixar de se submeter à política dos EUA no caso da Venezuela.

José Espare

Uma outra boa maneira de fazer isso seria o governo Lula deixar de se submeter à política imperialista dos EUA no caso da Venezuela.

Zé Maria

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“A Sorte Ajuda os Audazes”

(Virgílio, Eneida, Livro X, 284)

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Zé Maria

É hora do Brasil mostrar
tanta coisa ao mundo…
“Audentes Fortuna Juvat”.

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