Paulo Capel: Tratar os hospitais federais do Rio apenas como de ensino é “jogar o pó para debaixo do tapete”

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São seis os hospitais federais no Rio de Janeiro: Bonsucesso (HFB), Servidores do Estado (HFSE), Ipanema (HFI), Lagoa (HFL), Andaraí (HFA) e Cardoso Fontes (HFCF). Fotos: Reprodução de rede social

Hospitais federais do Rio de Janeiro – o pó para debaixo do tapete?

O principal problema dos hospitais federais do Rio de Janeiro é ainda serem hospitais federais no Rio de Janeiro

Por Paulo Capel Narvai*, em A Terra é Redonda

O que a mídia corporativa caracterizou como “a crise da saúde” foi o destaque da reunião ministerial que o presidente Lula realizou, em 18 de março de 2024.

Dentre vários ingredientes, a “crise” na pasta sob o comando de Nísia Trindade seria composta, segundo essa visão, por “fracassos” em três frentes de atuação:

1. na saúde indígena, em que Nísia seria responsável pelo “aumento da mortalidade” de yanomamis, sobretudo crianças;

2. na vigilância epidemiológica, em que teria havido “trapalhadas” no controle e prevenção da epidemia de dengue, que segue matando em vários estados; e,

3. na gestão dos hospitais federais do Rio de Janeiro.

A ministra da Saúde defendeu suas ações, tanto na reunião de ministros quanto no dia seguinte, quando ao lado de integrantes do primeiro escalão do Ministério da Saúde, atendeu ao chamado ao palácio, feito pelo presidente da República.

Basicamente, argumentou que

(a) houve subnotificação das mortes de indígenas nos últimos anos e a interpretação dos dados dos últimos meses requer cuidados, não se observando aumento no número de mortos atribuível a eventual falha de gestão federal;

(b) na epidemia de dengue, o Ministério da Saúde vem realizando as ações que lhe correspondem como órgão federal e que, atendendo priorizações feitas pela área técnica, as vacinas disponíveis se destinaram ao grupo populacional para o qual foram indicadas; e,

(c) providências administrativas vinham sendo postas em prática para enfrentar os problemas crônicos que afetam os hospitais federais do Rio de Janeiro.

Todos esses são problemas de saúde cuja relevância ninguém questiona.

A gestão da saúde indígena, uma competência do governo federal, segue sob Nísia tão complexa e desafiadora quanto sempre foi desde que a lei federal nº 9.836, de 23 de setembro de 1999, criou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, tendo como base operacional os Distritos Sanitários Especiais Indígenas.

O enfrentamento da dengue, que a mídia reduziu à “campanha da vacina”, está muito longe de poder ser resolvida apenas com vacinas sem considerar, simultaneamente, a complexa gama de fatores implicados na presente epidemia e nas características endêmicas da dengue, tanto no Brasil quanto em algumas dezenas de países nas Américas, África, Europa Mediterrânea, Pacífico Ocidental e Sudeste Asiático.

Responsabilizar um ministro de Estado da Saúde, Nísia Trindade ou qualquer outro, pelo fato de vacinas estarem se perdendo por “perda do prazo de validade”, ou é ignorância de quem critica, por desconhecer que no modelo de governança do SUS não incumbe ao Ministério administrar Unidades Básicas de Saúde, ou é apenas má fé.

Nem tomarei o tempo do leitor com considerações adicionais sobre a notável resistência de Nísia às pressões e pretensões do presidente da Câmara, Arthur Lira, diuturnas desde o primeiro dia de Nísia Trindade à frente do Ministério da Saúde.

Sobre a sede de poder e dinheiro, para as insaciáveis emendas de parlamentares, o leitor encontrará mais detalhes em Lira quer governar a saúde?, que publiquei no site A Terra é Redonda.

Sobre isso, registre-se a ordem dada a Nísia por Lula para “melhorar o relacionamento com o Congresso Nacional”, algo que a mídia corporativa comemorou, ainda que a própria mídia finja estar “preocupada” com a sede de Arthur Lira. Preocupada?

Enquanto a mídia corporativa faz declarações de “preocupação” com as ações de Arthur Lira, que violam a Constituição, atropelam a tripartição dos poderes da República e ignoram a legislação que rege o SUS, prosseguem as intromissões de deputados e senadores, por meio das emendas parlamentares, nas atividades do Ministério da Saúde, atrapalhando o planejamento do SUS e desorganizando a governança do sistema, que vem se refazendo desde o início do ano passado.

Mas a “culpa” da “crise”, diz a oposição, é da ministra da Saúde que “não fala grosso, não tem jogo de cintura e não faz política”.

Fosse o oposto, e a ministra seria acusada de “autoritária”, “adepta de holofotes” e de “falar muito e trabalhar pouco”.

Enfim, o problema não é o que ela faz ou deixa de fazer, o problema, para esses críticos, é que ela tem rumo, sabe o que faz e sabe porque faz – e isso desagrada quem tem contrariados os seus interesses pessoais ou de grupos.

Da tal “crise na Saúde” o que resta, relevante, sob a governabilidade de Nísia, são os hospitais federais do Rio de Janeiro e o que ela e sua equipe no Ministério da Saúde poderiam ter feito para “resolver os problemas”.

Problemas, aliás, que são crônicos e cuja origem remonta aos antigos “hospitais do INAMPS” que, no processo de criação do Sistema Único de Saúde (SUS) tiveram suas administrações transferidas, em todo o país, para os governos estaduais e municipais.

Mas, preciso me corrigir: “em todo o país”, não.

Um dos muitos problemas do processo de implantação do SUS, diz respeito, justamente, à gestão de hospitais públicos próprios, herdados da “saúde previdenciária”, na medida em que o SUS foi se estruturando.

Por determinação da Constituição de 1988, que em seu art. 198 determina que as “ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada”, cuja descentralização, implica a “direção única em cada esfera de governo”, os hospitais de propriedade do INAMPS passaram a integrar o SUS.

Suas administrações foram atribuídas, portanto, aos entes federativos incumbidos de exercer, no seu âmbito, a “direção única” do SUS.

Por essa razão, atualmente, não há mais “hospitais federais” do SUS, nos Estados e Municípios.

Não há no Paraná, em Pernambuco, no Acre, na Paraíba, no Amapá, em Santa Catarina… Nem no Distrito Federal há hospitais federais.

Há nos Estados, hospitais de ensino, vinculados a universidades públicas. Busca-se que estejam articulados ao SUS, mas não são, propriamente, hospitais do SUS.

As exceções mais conhecidas a essa orientação geral, são o Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre, e os seis “hospitais federais” do Rio de Janeiro (Andaraí, Bonsucesso, Cardoso Fontes, Ipanema, Lagoa e Servidores do Estado).

São excepcionalidades exóticas à regra geral, mas cuja situação diz respeito à história de cada uma dessas instituições.

Uma das razões alegadas pelos proponentes do SUS para que o comando da gestão do sistema (a “direção única”) fosse competência de cada esfera de governo e não do governo da União, ou seja, o governo federal, era que as decisões da gestão, inclusive financeira, seriam mais apropriadas quanto mais próximo da população e das unidades de saúde, estivessem as autoridades locais incumbidas de tomar essas decisões.

É exatamente a violação dessa diretriz do SUS, que consta do inciso I do art. 198, e que ao determinar a “descentralização” da sua gestão, institui o que se reconhece como pacto federativo na saúde, que se relaciona com o problema que atualmente põe na berlinda os hospitais federais do RJ.

A construção do SUS na capital fluminense está incompleta desde 1988, há 35 portanto. É preciso enfrentar e vencer o desafio de concluir a construção do SUS no Rio de Janeiro.

Essa diretriz, que orientou a estruturação descentralizada do SUS e que constitui a base do pacto federativo na saúde, buscou racionalizar a administração pública nesse setor saúde e se aplicou ao conjunto das unidades de saúde que viria a se constituir no SUS.

Porém, para compreender as implicações e a gravidade do protelamento da construção do SUS no Rio de Janeiro, vale lembrar, no caso dos hospitais federais instalados na cidade, o que escreveu Carlos Gentile de Mello, um atento analista das políticas de saúde nos anos 1970 e 80, em artigo (Caminhos difíceis), publicado na Folha de S.Paulo, em 19/10/1981 (pág. 3).

Referindo-se ao Hospital de Bonsucesso, à época um dos hospitais do INAMPS no Rio de Janeiro, Gentile de Mello dizia que “produz-se cada vez menos e mais caro, com o fim mesmo de demonstrar que a empresa hospitalar pública é inviável. Trata-se de um plano perverso dos que não têm a coragem de propor às claras a privatização da assistência médica. Usam, então, desses subterfúgios desleais, com vistas à imobilização dos serviços”.

Foto aérea do ainda em construção Hospital General do Nascimento Vargas, que era subordinado ao Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Empregados em Transportes e Cargas (Iapetec). Durante a ditadura militar e a fusão dos institutos de previdência, o hospital passou para o INPS, depois para o Inamps. Só em 1990, com a criação do SUS, passou a ser denominado como até hoje é conhecido: Hospital Geral de Bonsucesso, embora em 2007 tenha recebido oficialmente o nome de Hospital Federal de Bonsucesso. Fotos: Reprodução do Arquivo Nacional e de rede social

Como se percebe, nem precisava de qualquer “jornalismo investigativo” para tomar conhecimento da “corrupção, abandono e desperdício nos hospitais federais do Rio”.

A esta altura, o leitor, a leitora devem estar se perguntando o motivo por que essas unidades hospitalares, cuja administração não é nada simples, seguirem sendo administradas, mais de quatro décadas após o alerta de Gentile de Mello, diretamente pelo Ministério da Saúde, cuja sede em Brasília está há mais de mil quilômetros do Rio de Janeiro (e há mais de dois mil quilômetros de Porto Alegre).

“Mas a direção não é única em cada esfera de governo?”

Em dezembro do ano passado, ao findar o primeiro ano do atual governo de Luiz Inácio Lula da Silva, ouvi de um amigo, médico e ex-secretário municipal de saúde de uma cidade do interior paulista, que “ainda bem que o governo Lula conta com a Nísia Trindade na saúde e no comando do SUS”.

Na semana passada, após a repercussão da reunião ministerial de março, voltamos a conversar.

Perguntei sobre o que considerei um atropelo de Lula a Nísia Trindade, desarticulando um movimento dela que considerei muito oportuno e no caminho adequado, que foi chamar Helvécio Magalhães, especialista e experiente no assunto chave do imbróglio fluminense, para gerir a crise do Rio de Janeiro.

“O Lula atrapalhou o movimento correto que ela estava fazendo”, argumentei, emendando que “ela teve de cortar na própria carne e isso não era necessário, além de prejudicar as ações em curso”.

Meu interlocutor, experiente em refregas políticas e coisas da administração pública me ouviu pacientemente e disse: “pode ser que sua perspectiva esteja correta, sim, mas quem tiraria do pescoço do Lula aquela faca que estava na mão do Arthur Lira? Você?”.

Nos dias que se seguiram, em conversas com outros amigos e amigas, em outros espaços, eu não conseguia argumentar sem falar da tal “faca do Arthur Lira no pescoço do Lula”.

Pior: a faca metafórica segue lá, na mão de Arthur Lira. Quem poderia tirar essa faca não apenas não o faz, mas quer a cabeça da Nísia Trindade. Por enquanto.

Quando puderem, quererão também a cabeça do Lula.

Tomara que possamos nos livrar dessas ameaças.

A Academia Brasileira de Ciências e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, dentre dezenas de entidades e movimentos sociais, vêm se manifestando favoravelmente à ministra da Saúde e suas ações no comando da Saúde e do SUS.

Muita gente aposta que Nísia Trindade sairá fortalecida da “crise” fabricada pela oposição ao governo Lula, que a toma como bode expiatório.

Porém, enquanto Lula governa, seria bom dar um salto de mais de quatro décadas e, levando em conta o ensinamento de Carlos Gentile de Mello e os ditames da Constituição de 1988, providenciar para que os hospitais federais do Rio de Janeiro passem à “direção única” do SUS no Rio de Janeiro.

Tratá-los como se fossem hospitais de ensino não seria apenas deseducativo, mas seria como “jogar o pó para debaixo do tapete”.

Não há dúvida: se prevalecer o “ah, mas isso é muito complicado”, daqui a meio século os “hospitais federais do Rio de Janeiro” seguirão ameaçando a estabilidade de ministros da Saúde.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica).

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